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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
Slam Xamego: amor como resistência no Hip-Hop do Espírito Santo
João Otávio Almeida
1
Lara Brum de Calais
2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v15i28.65114
Resumo: O Slam é uma arte periférica de protesto que pertence à cultura Hip-Hop. Na região da
Grande Vitória, no Espírito Santo, existem vários Slams, dentre eles o Slam Xamego, que é, até então,
o primeiro e único Slam afetivo da região, ou seja, um Slam que traz, em primeiro plano, os afetos, em
especial o amor. Este estudo teve como objetivos compreender a afirmação do amor como dispositivo
de resistência e produção de vida para jovens negros e periféricos participantes do Slam Xamego, bem
como o contexto e motivo de sua criação, além de acessar a função da poesia sobre amor para os
Slammer e sua localização como enunciado político. A metodologia incluiu entrevistas semi-
estruturadas e análise de produção de sentido. Como resultado, entendemos os caminhos desses
jovens negros e periféricos para uma aposta ético-estético-política no amor como forma de resistência
e de criação de outros modos de existir na cidade que fissura a lógica hegemônica.
Palavras-chave: slam; Slam Xamego; amor; amor político; Hip-Hop.
Slam Xamego: love as resistance in the Hip-Hop of Espírito Santo
Abstract: Slam is a peripheral art of protest that belongs to Hip-Hop culture. In the region of Grande
Vitória, in Espírito Santo, there are several Slams, among them Slam Xamego, which is, so far, the first
and only affective Slam in the region, that is, a Slam that prioritizes affections, especially love. This study
aimed to understand the affirmation of love as a device of resistance and a way of producing life for
Black and peripheral youth participating in Slam Xamego, as well as the context and reasons for its
creation. Additionally, it sought to explore the function of poetry about love for the Slammers and its
positioning as a political statement. The methodology included semi-structured interviews and an
analysis of meaning production. As a result, we understood the paths of these Black and peripheral
youth towards an ethical-aesthetic-political stance on love as a form of resistance and the creation of
alternative ways of existing in the city, disrupting hegemonic logic.
Keywords: slam; Slam Xamego; love; political love; Hip-Hop.
1
Graduando em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Integrante do Grupo
de Pesquisa Infâmias Resistências (UFES) e do Coletivo Ocupação Psicanalítica - ES. E-mail:
joaootavio64@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0541-7203.
2
Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Docente do Departamento
de Psicologia e do Programa de Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo
(PPGPSI/UFES). E-mail: lara.calais@ufes.br. ORCID: https://orcid.org/0009-0006-0346-630X.
Recebido em 24/10/2024, aceito para publicação em 07/12/2024.
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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
Slam Xamego: amor como resistencia en el Hip-Hop del Espírito Santo
Resumen: El Slam es un arte periférico de protesta que pertenece a la cultura Hip-Hop. En la región
de Grande Vitória, en Espírito Santo, existen varios Slams, entre ellos el Slam Xamego, que es, hasta
ahora, el primero y único Slam afectivo de la región, es decir, un Slam que pone en primer plano los
afectos, en especial el amor. Este estudio tuvo como objetivos comprender la afirmación del amor como
dispositivo de resistencia y producción de vida para jóvenes negros y periféricos participantes del Slam
Xamego, así como el contexto y los motivos de su creación, además de analizar la función de la poesía
sobre el amor para los Slammer y su ubicación como enunciado político. La metodología incluyó
entrevistas semiestructuradas y análisis de producción de sentido. Como resultado, entendimos los
caminos de estos jóvenes negros y periféricos hacia una apuesta ético-estético-política en el amor
como forma de resistencia y creación de otros modos de existir en la ciudad, que fisura la lógica
hegemónica.
Palabras clave: slam; Slam Xamego; amor; amor político; Hip-Hop.
Slam Xamego: amor como resistência no Hip-Hop do Espírito Santo
Introdução
Cantando sobre o que acontece
vejo que poucos mudaram
Quantas vezes você foi amado?
Cantar sobre amar talvez seja mais
revolucionário
Baco Exu do Blues
No bojo da cultura Hip-Hop,
adolescentes e jovens negros e
periféricos, historicamente, e aos seus
modos, constroem passos e versos de
resistência embalados pela arte e pelos
manifestos. Neste sentido,
compreender a cultura Hip-Hop,
especificamente pelo slam como modo
de produção de resistência na relação
de jovens com suas vidas e territórios,
se torna potencial. Neste artigo,
daremos destaque, por meio da escuta
de jovens poetas, aos processos de
resistências que são produzidos por
meio da arte, da política, da cultura e da
estética, que atuam como dispositivos
políticos e artísticos de produção de
subjetividades.
Em meio às estratégias de
vigilância que se configuram em nossa
sociedade, especialmente sobre os
corpos e performances de pessoas
negras e periféricas, as juventudes
aparecem como alvo, sendo
constantemente entendidos como
supostamente perigosos e,
consequentemente, tomados pela
lógica de uma política de morte. Na
perspectiva de autores como Coimbra;
Nascimento (2005); Foucault (1997);
Mbembe, (2018), tais corpos são mais
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facilmente passíveis da morte seja ela
real ou simbólica. Engendra-se a
política de fazer morrer quando o
Estado elege um inimigo passível de
fazer guerra para justificar as mortes
que ocorrem, como se estivesse num
estado de sítio. A necropolítica, aqui
tomada na perspectiva de Mbembe
(2018), funde-se ao ato de apontar qual
corpo é passível de ser descartado,
fazendo com que o controle deixe de
ser pela vida e passe a ser gerido na
escolha de quem vai morrer.
Sob esta égide, é valioso pensar
a constituição da subjetividade desses
jovens, entendendo-a como modos de
ser, estar e sentir que não se originam
no interior do indivíduo, mas que se
formam através de constantes
atravessamentos. Assim, a expressão
'processos de subjetivação' preenche
de sentido a dimensão processual que
emerge do encontro do sujeito com o
mundo (Tavares, 2011) e, nesse caso,
também com as práticas de violência
perpetradas cotidianamente. Os
processos de subjetivação incididos
pela desigualdade social trazem,
portanto, um gama de efeitos para as
populações periféricas e
marginalizadas. Neste sentido, no que
se refere especificamente a
adolescentes e jovens, prioritariamente
negros e pobres, pode-se anunciar uma
ótica de produção da subjetividade
infame ou seja, aqueles que são
alocados como sem notoriedade e que,
supostamente, não fariam falta na cena
social. Tais corpos só se tornam dignos
de nota quando, de algum modo,
entram em conflito com o Estado
(Almeida, 2021; Foucault, 2003; Lobo,
2007).
Desta forma, o presente artigo,
fruto de uma pesquisa de iniciação
científica fomentada pela Universidade
Federal do Espírito Santo, aproximou-
se de jovens envolvidos com a arte do
slam e suas expressões poéticas.
Tendo, como objetivo, compreender a
afirmação do amor como dispositivo de
resistência e produção de vida para
jovens negros e periféricos
participantes do Slam Xamego, a
investigação ocupou-se, também, do
contexto e motivo da criação dessa
modalidade de slam, além de acessar a
função da poesia sobre amor para os
Slammers e sua localização como
enunciado político.
Segundo D’Alva (2014), o slam é
parte da cultura Hip-Hop e pode ser
definido de diversas maneiras, dentre
elas: i) como uma competição de
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performances de recitação de poesia;
ii) como um espaço livre para
expressão das construções poética dos
participantes; iii) como espaço para
debater questões políticas e iv) como
local de lazer e entretenimento. A
autora afirma que definir o slam é
complexo, pois ele se transformou ao
longo do tempo, expandindo-se,
globalmente, como um acontecimento
poético em um movimento cultural,
artístico e social. Afirma-se, portanto,
como um movimento de literatura
marginal, existindo um duplo enredo
para tal: sendo uma literatura que não
está nas prateleiras das bibliotecas,
não está do lado das literaturas
canônicas; e, sendo uma arte
produzida por pessoas que estão à
margem, está nas periferias. Esse
duplo enredo torna o slam um
movimento de literatura marginal
(Neves, 2017).
De composição eminentemente
política, o slam é um espaço para
debater questões da sociedade, do
cotidiano, afirmando-se como um
movimento estético-cultural que
envolve a poesia falada destacando o
potencial criativo e inventivo dos jovens
como principal instrumento para se
expressar (D’Alva, 2014). Torna-se,
portanto, um espaço de subversão que
fissura a lógica hegemônica. O slam,
sendo um espaço de denúncia, grito,
desabafo, resistência, produção de
sentido, literatura, conhecimento,
subjetividade e estética, cria, assim,
lugares para uma outra existência
possível. (Neves, 2017). Este trabalho,
portanto, entende o slam como esse
espaço de fissura, de relevância social
e política para jovens negros e
periféricos, especialmente no que diz
respeito à construção de suas
subjetividades (Tavares, 2011).
O slam, de modo geral, tem seu
foco poético em críticas ao racismo, a
violência policial, as estruturas políticas
do país e denunciam as mazelas do
país. Contudo, em meio a esse amplo
movimento, destacamos aqui a
existência de um grupo de Slam que
tem, em seu foco poético, as
afetividades. Isto, por si só, já aponta a
estética desse movimento de
reexistência (Silva Neto, 2023; Neves,
2017). O Slam Xamego, já reconhecido
no estado, é o primeiro e até o
momento único Slam afetivo do Espírito
Santo, atuante na Região Metropolitana
da Grande Vitória (RMGV), onde
existem vários Slams.
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Em linhas gerais, o grito dos
Slammers anuncia e denuncia a
demanda por vida, quando ecoam as
frases de jovens em suas poesias: “a
cada 23 minutos morre um jovem negro
no Brasil”. Atravessamentos subjetivos
também ecoam em suas poesias,
demonstrando uma luta por
sobrevivência expandida no palco do
slam. Assim, tornam-se também
estratégia política falar dos afetos,
pautar outras formas de existência a
partir da performance em que as
críticas sociais ganham outros
contornos, apontando que, além de ser
urgente viver, também é urgente amar,
como ressalta o Slam Xamego.
Portanto, permitir-se ser afetado
é uma aposta ético-estético-política que
esses jovens fazem para se agarrar à
vida, para produzir modos a partir dos
quais a vida faça sentido. Nesta toada,
hooks
3
(2020) destaca o amor como
crescimento espiritual e fala de uma
ética amorosa. Noguera (2020) afirma
que o amor é uma emoção coletiva e
um ato político e, além disso, Souza
3
O nome da autora bell hooks, é escrito em
letra minúsculo, pois a autora escolhe esse
pseudônimo e adota o minúsculo para desviar
a atenção de si mesma enquanto indivíduo e
focar na importância de seu trabalho e legado,
valorizando a coletividade e o impacto de suas
(2021) diz que amor é a esperança de
viver junto aos seus, pois está atrelado
à ancestralidade. Assim, a autora bell
hooks (2020), que dedica parte
importante de sua obra aos afetos e,
em especial ao amor, sugere que o ele
se manifesta nas ações, refletindo, tal
como anunciam os jovens do Slam
Xamego, que, apesar da violência
(Lanna et al., 2021; Silva Neto, 2023),
vale falar de amor e afeto como uma
decisão consciente e política (Noguera,
2020; Souza, 2021; Rodrigues, 2021).
Nessa sociedade da
necropolítica onde corpos negros,
periféricos são sistematicamente
descartados, seja pela morte concreta
ou simbólica (Mbembé, 2018), o amor
não é prontamente apresentado a
essas pessoas. Para pessoas negras, o
amor é negado, tanto para homens,
pois entende-se que não existe uma
cultura de amor em relação aos
homens negros (Farias et al., 2023),
como para mulheres, que relatam uma
vivência de mal-estar por conta da
negação do amor (Fernandes, 2024).
ideias. Isto é explicado no site da própria
autora: <https://bellhooksbooks.com/faq-
items/why-did-bell-hooks-want-her-name-
lowercase/?form=MG0AV3>. Acesso em: 30
jan. 2025.
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Para hooks (2020), uma
busca e ânsia pelo amor mesmo diante
da impossibilidade de ele ser
encontrado. Nesse sentido, uma
inventividade que se na
necessidade de amar e ser amado.
Fazer poesias e declamá-las em
espaços blicos nas competições de
slam fala sobre essa invenção de amar,
de demonstrar seus afetos. A poesia
marginal revela, então, a dimensão
estética-política-afetiva das relações
destes jovens com os espaços que
ocupam, desafiando o Estado e
apontando-o como o autor da violência
sistemática contra eles. O grito do slam
ressoa a urgência de viver.
Tornar evidente os afetos em
uma sociedade que mata real e
simbolicamente pessoas negras é o
que materializa ações de resistência,
de subversão e de invenção,
apontando que, mesmo diante das
violências que negam a vida e negam o
amor, viver e amar é parte do processo
de subjetivação desses sujeitos (Pinho,
2023; Tavares, 2011). Engendra-se,
então, um processo inovador em
afirmar a possibilidade do amor,
quando a morte é passível a qualquer
momento. Tornam-se esteticamente
revolucionários ao declamar poesias
nas ruas da cidade, anunciando que o
amor é possível para jovens negros e
periféricos; criam-se cenários de outros
modos de existir e estar no mundo,
subvertendo a história única sobre suas
próprias vidas, criando a possibilidade
de sonhar outros modos de viver
(Adichie, 2019; Lanna et al,. 2021;
Mbembe; 2018; Moten, 2023; Silva
Neto, 2023; Tavares, 2011).
Metodologia
Ladrão, então peguemos de volta
o que nos foi tirado
Mano, ou você faz isso
Ou seria em vão o que os
nossosancestrais teriam sangrado
Djonga
Em concordância com os
objetivos deste trabalho, delimitou-se
que os participantes seriam os jovens
do Slam Xamego acima de 18 anos,
sem restrição a gênero e raça. Em um
dos eventos do slam, foi feito o anúncio
sobre a pesquisa e sua relevância,
oportunidade em que alguns poetas se
dispuseram a participar. Foi utilizado,
como critério de seleção, que metade
dos participantes fossem de criadores
do Slam Xamego. Ao todo, foram
entrevistados quatro participantes, três
homens e uma mulher, todos
cisgêneros, autodeclarados negros,
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com faixa etária entre 21 e 26 anos, e
escolaridade variando de Ensino Médio
completo à Superior Completo.
As entrevistas semiestruturadas
realizadas com integrantes do coletivo
tiveram, como base, o método de
Triviños (1987), cujo intuito foi de
investigar: i) como surge o Slam
Xamego e em qual contexto; ii) o que
leva esses jovens a escreverem sobre
o amor; iii) como eles percebem nessas
poesias os atravessamentos pelos
marcadores sociais de raça, classe e
gênero; iv) se esse movimento que
busca falar dos afetos tem alguma
função e impacto social na vida dos
jovens que frequentam o Slam
Xamego.
Além disso, cabe dizer que essa
pesquisa segue os critérios
estabelecidos pelas resoluções 466,
de 12 de dezembro de 2012, e
resolução 510, de 07 de abril de
2016, e foi aprovado pelo Comitê de
Ética em Pesquisa da Universidade
Federal do Espírito Santo (UFES)
4
,
assegurando o respeito à dignidade,
bem como a autonomia dos
participantes, por meio do Termo de
4
CAAE: 70300623.2.0000.5542, aprovado na
data 21 de julho de 2023.
Consentimento Livre Esclarecido
(TCLE). A participação é voluntária, e,
caso seja necessário, eles podem
desistir a qualquer momento. Além
disso, é garantido o retorno dos
resultados obtidos. Antes de iniciar as
entrevistas, foi apresentado o TCLE
aos participantes para que assinassem.
Todos autorizaram que fossem
captados áudios com um aparelho de
telefone celular. Neste trabalho, serão
usados os mesmos nomes que eles
utilizam no slam.
Para a análise das entrevistas,
foi utilizada a Análise de Produção de
Sentidos (Lanna et al., 2021; Spink
2010). Nesse método, o processo de
categorização é realizado sem
categorias pré-definidas, uma vez que
elas vão emergindo à medida que o
trabalho de análise é realizado. De
certa forma, as categorias acabam
refletindo os elementos elencados
como relevantes para o roteiro da
entrevista (Lanna et al. 2021). Após
esta etapa, foi elaborado um Mapa de
Associação de Ideais, conforme Lanna
et al., (2021), apontando as categorias
e os sentidos atribuídos às narrativas
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resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
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dos participantes da pesquisa, com o
objetivo de alinhar os conteúdos, ou
seja, os sentidos obtidos com base
nessas categorias. Neste trabalho,
compreende-se o sentido como um
processo social, coletivo e interativo,
influenciado por relações históricas e
culturais, gerado por atravessamentos
coletivos, sendo a linguagem um ponto
crucial nesta produção, caracterizando
Práticas Discursivas (Lanna et al.,
2021).
Após a transcrição das
entrevistas, por meio do programa
Transkriptor, e feitas as devidas
correções, foi possível realizar a leitura
e sistematização dos trechos de falas
nas seguintes categorias: afeto-amor;
corpo político; sonhos e autoanálise. Ao
todo, por meio das narrativas das
entrevistas, foram elencados 9
sentidos, conforme demonstrado na
Tabela 1.
Tabela 1 Mapa de associação de ideias.
Categoria
Sentidos
AFETO-AMOR
1.1 Amor romântico
1.2 Amor pelos familiares e amigos
1.3 Amor por si próprio
CORPO POLÍTICO
2.1 Resistência
2.2 Amor político
SONHOS
3.1 Possibilidade de amar/desejar
3.2 Continuidade
3.3 Ocupar espaços
AUTOANÁLISE
4.1 Mudança
Fonte: Autores.
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Vozes de reflexão: “Que os corações
sejam aquecidos, amores
correspondidos”
5
Muitos aqui têm ódio e nem sabe
por que, cara
Ouve a dor na minha voz, me
responde: Por quê, cara?
Djonga
O campo desta pesquisa
compreende o próprio Slam Xamego,
corroborando com a noção de uma
formação artística de pessoas que
estão à margem da sociedade e são
produtoras de literatura marginal. Essa
literatura produzida pelo slam é
fissurante nos contextos onde existe,
pois acaba utilizando de aparatos
estéticos para reivindicar seu local
social. Nesse sentido, provoca a olhar
para cidade e a pensar como essa
manifestação imbrica em suas ruas,
praças, espaços. O poder público pode
se fazer presente para promover ou
reprimir essa movimentação marginal;
de ambas as formas, a existência do
slam provoca, no Estado, alguma ação.
Para além da sua marginalidade, o
Slam Xamego tem outro
5
Todo slam tem seu grito, que é entoado antes
de algum poeta fazer sua performance. No
Slam Xamego, o grito é: "que os corações
desdobramento na sua forma de
ocupar a cidade, bem como outras
potencialidades como coletivo por sua
característica singular de colocar à tona
os afetos e o amor (Silva Neto, 2023;
Silva; Losekann, 2020). Essas
características serão exploradas nas
categorias a seguir.
Quando garotos negros amam,
quando garotos pretos se
amam
Quase sempre se inventou um
jeito
E percebi ser são cada vez
que fui amado
(Rico Dalasam; Céu).
A categoria Afeto-Amor é a
primeira a ser identificada e a que tem
mais volume de informações, tendo três
sentidos atribuídos: 1) Amor romântico;
2) Amor pelos familiares e amigos; 3)
Amor por si próprio.
Nos amparando na perspectiva
de hooks (2020), o conceito de amor é
entendido como o desejo de promover
o crescimento espiritual seu e de outra
pessoa, sendo, esta, uma ação
intencional. Essa definição se aproxima
da perspectiva sobre o amor de um dos
entrevistados, que diz: “A definição do
amor, velho, eu acho que é baseado no
sejam aquecidos, amores correspondidos e
não nos falte contatinhos. Slam XAMEGO!”.
106
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transformações da cultura ")
querer o bem. Querer o bem, quem
ama, deseja o bem” (Trecho da
entrevista realizada, em 23/04/2024,
com Do Carmo).
Nestes termos, a teoria e a
realidade se encontram. Além disso,
Noguera (2021) afirma que essa
dimensão do bem-estar não se
individualmente, mas sim
coletivamente, entendendo que amar é
escutar, é ouvir os desejos, as
necessidades, o corpo; tanto o seu
próprio como do outro, num movimento
de criar intimidade. Ou seja, “para
conhecer o amor, é necessário, antes
de tudo, conhecer a si mesmo e ao
outro” (Noguera, 2021, p. 24). É neste
sentido que hooks (2020) entende o
amor como tendo uma dimensão social,
que possibilita uma vivência cidadã por
via da ética amorosa.
Tal conjuntura afeta diretamente
a existência de pessoas negras, tendo
em vista que o amor e a cidadania
foram e continuam lhes sendo
negados. O negro não era uma pessoa,
nem cidadão livre na condição de
escravizado, sendo excluído do corpo
social (Nogueira, 1998). Porém, é pela
via do amor que se torna possível a
afirmação de estar vivo com os seus,
com a comunidade e seus ancestrais
e despertar, com intensidade, a nossa
capacidade de ação, que foi
cotidianamente vilipendiada (Souza,
2021).
A escolha por amar e ser amado
implica em confrontar o medo, a
alienação e a separação. Escolher
amar é escolher ir ao encontro e
estabelecer conexão: é uma escolha
que leva ao encontro, seja de si
mesmo, seja com o outro. Pela via do
amor é possível restituir a cidadania e a
possibilidade de viver, pois o amor,
mesmo sendo negado, não é nulo e
confere ao sujeito uma capacidade de
ação (hooks, 2020; Souza, 2021).
Em uma das entrevistas, João
Martins aponta:
O livro que eu tenho que o
nome do livro é ‘o eco do seu
nome’ é sobre amor, porém
não é somente sobre um amor
romântico. Esse livro, inclusive,
é um livro totalmente dedicado
às minhas avós, que pra mim
são, são os maiores exemplos
que eu tenho na minha vida de
amor, de afeto, de carinho
(Trecho da entrevista realizada
14/03/2024).
Souza (2021) discorre a respeito
da reverberação da ancestralidade,
entendendo que, além das gerações
anteriores a esses jovens em sua
própria linha genética, uma
107
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mar. 2025.
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transformações da cultura ")
dimensão ampliada na ancestralidade
para pessoas negras que é
experimentada dentro de um singular-
coletivo, nesse caminho, há quem guie
até a jornada pelo amor (Almeida et al.,
2023; hooks, 2020). Na perspectiva de
hooks (2020, p. 71), “embora o desejo
de amar esteja presente em todas as
crianças pequenas, ainda assim, elas
precisam de orientação quanto às
formas de amar”, o que reafirma a
dimensão relacional como ponto de
profunda relevância na construção
humana.
Outro entrevistado, em um
trecho de seu relato, aponta que:
eu não sei se é certo falar que
o Xamego me deu tudo, mas eu
sei que o Xamego me levou
para as pessoas certas. Me
levou para o João, me levou
para a Thales, para a Italo, para
a Marquinhos, para a Júlia, me
aproximou dos meus pais.
Mesmo tendo uma certa
distância, me aproximou deles.
Então, começo de tudo, o
menor revoltado, hoje, o menor
que se ama, ama a namorada,
ama os pais e ama os amigos
(Trecho da entrevista realizada
em 06/03/2024 com Filipe
Soul).
Esse trecho engloba todos os
três sentidos desta categoria. No que
diz respeito ao amor pelos amigos é
“outra possibilidade importante dessa
experiência de comunidade é a
amizade, que para muitos é o primeiro
contato com uma ‘comunidade
carinhosa’” (Silva, 2021, p. 17). A
comunidade é o melhor lugar para
aprender sobre a arte do amor:
aprende-se a lidar com os conflitos,
com as diferenças e a processar os
problemas enquanto o vínculo
permanece ativo. Amar as amizades
traz um fortalecimento para que esse
amor seja levado para outras relações,
familiares, românticas, consigo mesmo
(hooks, 2020).
Sobre o amor próprio, hooks
(2020, p. 94) afirma que ele “não pode
florescer em isolamento”, o que torna
mais significativa a fala do entrevistado
que, ao relatar que o slam lhe trouxe
amigos, e que, na relação com esses
amigos, ele passou a amar a si mesmo,
os próprios amigos e seus familiares,
começou a namorar e amar sua
namorada também. Nogueira (1998)
afirma que esta configuração do amor
próprio é, de fato, um desafio para
pessoas negras em relação à
construção da sua própria identidade, e
da sua construção enquanto indivíduo
que pertence ao grupo de pessoas
negras. Contudo, nesse processo,
revelar o amor enquanto possibilidade
108
ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
cria laços consigo e com outros,
conferindo outras alternativas de ser no
mundo.
a respeito do amor romântico,
outra entrevistada relata que teve
algumas questões até compreender
que o amor romântico também era
possível pra ela e que passa a perceber
isso no Slam Xamego, por meio da
interação dos amigos e dos casais que
se constituíram naquele espaço:
Nunca desacreditei do amor em
relação à amizade e essas coisas, mas do
romântico eu desacreditava muito que eu
poderia viver isso. E foi muito importante
pra minha coletividade nesse sentido,
porque eu não fazia poesia de amor
romântico, mas eu ouvi pessoas fazendo e
vi pessoas amando no Slam Xamego. [...]
Eu penso muito sobre o cuidado, mesmo,
de entender, por exemplo, como é que
funciona o cabelo da minha mulher, por
exemplo, os cuidados com a pele. É muito
o cuidado, sabe, disso tudo, e com pessoas
que se entendem muito por serem pessoas
pretas, pessoas com vivências parecidas
(Trecho da entrevista realizada em
13/04/2024 com Adrielly).
O direito à liberdade e de viver
plenamente e bem são pressupostos
de uma ética amorosa (hooks, 2020).
Imergir nessa ética significa fazer uso
das dimensões do amor no cotidiano,
ou seja, o cuidado, a confiança, o
compromisso, a responsabilidade, o
respeito e o conhecimento. Na medida
em que se autoanalisa criticamente, é
possível ajustar o que é preciso para
dar carinho, cuidado, respeito e
aprender a se relacionar na medida em
que se relaciona (hooks, 2020).
Noguera (2020) aponta que o processo
de amar e ser amado perpassa o
cotidiano, a aventura de conhecer o
outro e a si a cada dia. Amar é fazer um
percurso de intimidade com o outro. A
visão dos autores se encaixa na fala de
Adrielly, que destaca a facilidade de
criar intimidade com quem compartilha
experiências semelhantes.
Pode tentar, mas vocês nunca vai
calar minha voz
Mas talvez
Meu povo se levanta algum dia
Mas talvez
A paz reine pelas periferias
Mas talvez
Meu morro volta a viver com
alegria
(Mc Poze do Rodo)
Em relação a categoria Corpo
Político, foram atribuídos os seguintes
sentidos: 1) Resistência; e 2) Amor
político. No tocante ao sentido da
resistência, os jovens negros e
periféricos entendem, desde cedo, que
seu corpo carrega aquilo que Foucault
(1997) chama de virtualidade, ou seja,
109
ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
aquele que pode vir a ser. Esses jovens
são marcados com olhares, falas,
gestos, ações da sociedade para com
eles (Kilomba, 2019). Afinal, ser jovem
e pobre é perigoso?
6
(Coimbra;
Nascimento 2005).
Nesse sentido, é pela
experiência dos mais velhos que se
apreendem os modos de se mover na
cidade, de resistir, de existir, por meio
de uma tecnologia de resistência: o
aquilombamento. Jovens, negros e
periféricos formam coletivos como
forma de continuarem vivos:
“aquilombar-se é o ato de assumir uma
posição de resistência contra-
hegemônica a partir de um corpo
político” (Souto, 2020, p. 144). Pelo
processo de alijamento social das
pessoas negras durante os períodos da
abolição e no que se seguiu a ela,
foram e ainda são constituídos espaços
para resistir às violências,
principalmente para que tenham um
espaço para serem sujeitos, um lugar
onde as representações de si e dos
seus semelhantes têm um outro olhar
(Nogueira, 1998; Souto, 2020).
Além disso, o recurso de
linguagem utilizado por esses jovens é
6
Título da obra das autoras.
o da poesia falada. Grifamos o termo
para recorremos a Fanon (2020, p. 31),
que destaca: “falar é existir
absolutamente para o outro”. Pode-se
dizer que os jovens poetas buscam dar
forma aos seus corpos, às suas
existências. Ao falarem suas poesias,
reafirmam suas existências em coletivo
no quilombo que formam (Souto, 2020).
Ademais, ao mesmo tempo em que
ocupam os espaços da cidade
recitando suas poesias aos quatro
cantos, afirmam sua existência para o
próprio coletivo e para a cidade, para
que esta reconheça a existência tanto
coletiva do grupo quanto da
singularidade de cada integrante.
É na formação dos quilombos e
no aquilombamento que os negros
tendem a superar as consequências do
seu processo de tentar se constituir
enquanto indivíduo social. Nesse
processo de “tentar se constituir como
indivíduo social, desenvolveu um horror
a se identificar com seus iguais”
(Nogueira, 1998, p. 36). Vemos essa
superação nas seguintes falas: “eu
falava, caraca, e eles tem tudo isso, né,
de ter um amor preto, de vivências
parecidas. E eu falei, caraca, eu queria
110
ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
viver isso” (Trecho da entrevista
realizada em 13/04/2024 com Adrielly),
e “uma pessoa preta sobe e fala o que
sente, sem medo nenhum, de forma
boa, um amor bom, um amor legal, fala
o que sente e fala que ama uma outra
pessoa preta que ali, presente e
felizona, isso é importante pra caralho e
nós temos que aprender a fazer isso”
(Trecho da entrevista realizada em
06/03/2024 com Filipe Soul). Entende-
se que não mais um horror; pelo
contrário, existe um sentido, uma
admiração em olhar seus semelhantes
e tê-los como referência.
movimentações de
resistência na cena do slam no Espírito
Santo, especialmente contra o aparato
de controle realizado por meio da
necropolítica (Mbembe, 2018). Neste
ponto, uma das vias entende que a
polícia procura impedir o amor, o afeto
e o lazer de jovens de periferia na praça
no centro da cidade, implicando uma
morte simbólica alicerçada na
necropolítica (Silva Neto, 2023).
A gente não sofreu tanta
repressão policial ou social e
tal. Acredito que, ainda mais
nós, por carregar essa ideia do
xamego de serem coisas um
pouco mais leves, por dizer,
não que o discurso político e
social não estivesse presente,
embutido ali no texto, mas
parece que tem uma
passabilidade. [...] A galera que
estava antes capinou uma
estrada para que isso
acontecesse, sacou? Da galera
ser presa, de ser parada dentro
do ônibus, de apanhar de
polícia, estar respondendo por
coisas até hoje (Trecho da
entrevista realizada em
14/03/2024 com João Martins)
Assim como as mulheres do
Complexo da Maré no Rio de Janeiro
criam estratégias de resistência
(Ribeiro, 2022), o Slam Xamego
também cria suas formas, afirmando a
todo tempo que falar de amor é um ato
de resistência.
O poeta Do Carmo diz: “o que
me leva a escrever poesia sobre amor
é enxergar o amor negro e periférico
como um ato de resistência” (Trecho da
entrevista realizada em 23/04/2024). O
amor, portanto, alcança seu caráter
político, o outro sentido dessa
categoria. Assim, pensar o coletivo, a
formação de um quilombo, em um
espaço de produção de vida, de
sentido, de afeto, impede que a morte
simbólica alcance esses jovens, uma
vez que a morte simbólica está
justamente no impedimento do lazer,
amor, afetos, da circulação e ocupação
dos espaços da cidade, e também no
do próprio viver (Silva Neto, 2023;
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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
Souto, 2020). Portanto, falar sobre
amor dentro do coletivo possibilita a
resistência por meio da dimensão
política do amor. “Eu acho que é uma
parada extremamente revolucionária
parar e falar sobre amor” (trecho da
entrevista realizada em 14/03/2024
com João Martins), que isso
possibilita transformar.
E, para além disso, o ato de falar
também exerce uma função
terapêutica, “porque a gente começa a
falar sobre coisas que a gente quer
falar, que confortam as pessoas e até
quando é sobre traição, morte de
alguém ou algo do tipo, o deixa de
ser um desabafo [...] o que você sente,
ninguém vai falar sobre isso, você”
(trecho da entrevista realizada em
06/03/2024 com Filipe Soul). Assim,
essa fala tem endereço e tem
acolhimento justamente por estar
dentro de uma comunidade que
também se forma por meio dela.
Além do mais, Noguera (2020)
traz uma reflexão, a partir de Somé, ao
apontar que o bem-estar é de
responsabilidade coletiva; e, se
tratando de uma emoção coletiva, é
pela escuta do outro e de si que se
conhecerá o amor. Nesse caminho, a
dinâmica de falar trazida por Fanon
(2020), que entende que falamos para
existir para o outro, se complementa
pela escuta apontada por Noguera
(2020). Instala-se, portanto, uma ética
amorosa (hooks, 2020) que implica na
disposição de confrontar os impasses e
mudar o que for preciso.
Um dos entrevistados vai
apontar os processos de aprendizado
com o grupo: “militância quebrando,
falou coisa errada, toma, testemunho
errado, toma, tipo, foi aquele processo
de aprendizado” (trecho da entrevista
realizada em 06/03/2024 com Filipe
Soul), que só é possível a partir da fala
e da escuta. A partir desta ideia, o slam
vai se tornando um espaço onde
a única coisa que não pode, e
que vai ser repreendida de
todas as maneiras se
acontecer no slam, vão ser
falas misóginas,
preconceituosas, racistas,
homofóbicas, porque não
espaço para isso. Então a
gente está ali exatamente para
poder ouvir essa verdade e
essa realidade que atravessam
as pessoas que estão lá.
(Trecho da entrevista realizada
em 14/03/2024 com João
Martins)
Eu sou a continuação de um
sonho
Da minha vó, do meu vô
Quem sangrou pra gente
poder sorrir
(BK; JXNV$)
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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
Na categoria que versa sobre os
Sonhos, foram atribuídos três sentidos,
sendo eles: 1) Possibilidade de
amar/desejar; 2) Continuidade; 3)
Ocupar espaços. Essa categoria
aborda a possibilidade de um futuro, de
um presente diferente do que se espera
para jovens negros e periféricos. O
próprio Slam Xamego configura-se
como um sonho pelo desejo de viver
algo diferente das violências e do
racismo. O coletivo dá um passo além
nesse desejo-sonho trazendo o amor e
os afetos para esse campo, apontando
que, além de querer viver sem
violências, sem racismo, esses jovens
querem amar e serem amados.
Para além dos contornos
clássicos, conhecidos pela perspectiva
dos sonhos a partir da lógica freudiana
(Freud, 2001), que entende os sonhos
como a manifestação do inconsciente
constituído de desejos reprimidos, o
movimento político artístico anuncia
novos contornos. Como no verso
“sempre fui sonhador, é isso que me
mantém vivo” (Racionais MC’s, 2003),
vê-se sustentada a ideia da
possibilidade de amar/desejar/sonhar
como combustível para as práticas
desejantes da vida. Além disso, a
dimensão da expressão “sonhar
acordado” faz-se como essencial para
a produção da arte, pois tem uma
intenção concreta: formar e moldar as
fantasias (Franco, 2017; Rodrigues,
2021).
A partir desse sonho consciente,
compreendemos algumas das falas dos
entrevistados: I) “e aí falaram: mano,
vamos fazer um slam de amor?
Vamos fazer um slam de amor!”
(Trecho da entrevista realizada em
14/03/2024 com João Martins). O slam
“só de amor” traz essa conotação do
desejo, da vontade de fazer algo novo,
algo diferente, o que complementa a
fala “rapaz, papo retão, vamos criar um
Slam que a gente não fala sobre isso
[militância, protesto, denúncia]? pra
gente falar sobre outras coisas” (Trecho
da entrevista realizada em 06/03/2024
com Filipe Soul). O desejo o sonho
é que impulsiona esses jovens a querer
fazer algo novo, algo que traga uma
nova perspectiva sobre suas próprias
vidas (Franco, 2017; Rodrigues, 2021).
Em seu relato, o poeta Do
Carmo anuncia que “o amor negro
periférico é possível” (Trecho da
entrevista realizada em 23/04/2024).
Essa afirmação pode ser aproximada
da reflexão de hooks (2020) quando
afirma que, por vezes, a estratégia de
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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
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mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
endurecer o coração parece tornar a
vida menos difícil, pois -se atenção
às demandas mais práticas da vida,
deixando de lado a possibilidade de
amar. Os jovens que se reúnem para
declamar suas poesias anunciam: “nós,
jovens, ali, querendo fazer poesia e
falar sobre amor” (Trecho da entrevista
realizada em 14/03/2024 com João
Martins).
Em coletivo, vão inspirando
outros jovens a enxergar essa
possibilidade de amor: “eu ficava vendo
aquilo e eu falava, caraca, e eles tem
tudo isso, né, de ter um amor preto, de
vivências parecidas, e eu falei, caraca,
eu queria viver isso” (Trecho da
entrevista realizada em 13/04/2024
com Adrielly). Como destaca Noguera
(2020), as pessoas amam porque têm
um desejo do que está fora e que, sem
esse desejo, a vida seria insuportável.
Assim, hooks (2010; 2020)
apresenta que, apesar do processo de
escravização e de suas consequências,
que têm gerado feridas aos povos
negros e marginalizados em relação ao
amor, ainda há uma vontade de amar e
ser amado e, por vezes, uma
incapacidade de dar e receber amor. As
entrevistas corroboram que a vontade
de amar tem sido um ato de resistência,
afirmando que esta capacidade existe
apesar da dificuldade de entrar nessa
dinâmica (de amor) por conta do
processo de negação da humanidade
às pessoas negras.
Dois entrevistados relataram
que “sobre a possibilidade de ser
amado em qualquer aspecto, porque eu
acho que é muito difícil para a gente
entender que a gente pode ser amada”
(trecho da entrevista realizada em
13/04/2024 com Adrielly) e “começou o
amor romântico [uma vivência], que eu
fui entendendo como é que é
importante falar sobre o amor do bem
também, até porque é difícil falar sobre
o amor do bem se você nunca tem. E
quando votem, você entende,
fica fácil de falar” (trecho da entrevista
realizada em 06/03/2024 com Filipe
Soul). Além disso, o Slam Xamego
tornou-se um espaço em que é possível
cuidar dessas feridas a partir do
processo de aquilombamento (Souto,
2020). O coletivo se torna um quilombo
onde repousar. Afirma o entrevistado:
“E eu acredito que o Slam Xamego é
algo onde as pessoas vão pra ser
saradas [...] Eu enxergo o Slam
Xamego como uma via de descanso,
assim, dos poetas” (Trecho da
entrevista realizada em 23/04/2024
114
ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
com Do Carmo). Além de ser uma via
de descanso para o público, abre a
possibilidade dos sonhos e da vontade
de amar e ser amado. Enquanto houver
desejo e sonho, haverá vida; sem o
desejo/sonho, uma morte simbólica
(Mano Brown, 2017).
No caminho histórico, o slam é
um movimento de longa data (D’Alva,
2014), porque quem o começou passou
para outras pessoas para que o
movimento permanecesse, dando
contornos ao sentido de continuidade.
Na fala de uma poeta: “eu falo do Slam
Xamego hoje em dia como potencial de
pessoas que entenderam a
continuidade [...] a gente com a
chave agora, mas a gente tem que
passar essa chave pra tudo isso aqui
funcionar” (Trecho da entrevista
realizada em 13/04/2024 com Adrielly).
Sua fala entra em consonância com o
que outro entrevistado aponta:
eu quero que a galera que
vindo realize, mano, porque,
tipo, eles realizando coisas que
eu nunca imaginei na minha
vida, pra mim também é uma
satisfação enorme de ter
certeza de que todas as
atividades, todas as coisas que
a gente fez, serviu pra poder
florescer e a galera colher os
frutos, ligado? (Trecho da
entrevista realizada em
14/03/2024 com João Martins)
Nesse sentido, algo de
transmissão, de continuação, que fez e
faz com que a culturas marginalizadas
sejam preservadas, isso também
acontece no movimento do slam. A
transmissão, por vezes, se pela
oralidade, pela palavra, porque por
mais que tentem destruir ou impedir
sua continuidade, a palavra não é
destruída (Santos, 2015). Por vezes, se
por outros meios como este
trabalho, que também busca registrar a
importância do Slam Xamego na
história, por outras vias.
Em relação a ocupar espaços, é
preciso enfatizar que isto é fundamental
para a existência e acontecimento do
Slam. Segundo o poeta João Martins, o
Slam Xamego realizou
Novamente, dentro do teatro,
uma transmissão ao vivo em tv
aberta de uma competição de
Slam no Espírito Santo. Sei lá,
a gente é convidado, em 2019,
a gente é convidado pela
SEDU [Secretaria de
Educação] para poder ir fazer
uma cerimônia de fechamento,
de encerramento dos jogos na
rede em Guarapari. Então, tipo
assim, a passo do tempo a
gente é convidado para poder
realizar uma programação no
Parque Casa do Governador
(Trecho da entrevista realizada
em 14/03/2024 com João
Martins)
115
ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
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mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
Sendo assim, o Slam Xamego
instaura um movimento de produção de
fissuras na lógica hegemônica, traz
uma ocupação estético-política da
cidade e busca tensionar a lógica da
desigualdade dos acessos e esses
espaços: “viver os variados aspectos
relacionados ao direito à cidade passa
pela possibilidade de acessar e ocupar
criativamente os espaços urbanos”
(Martin e Bueno, 2021, p. 59). Assim
como outros Slams, o Slam Xamego
também fortalece a luta pelo direito à
cidade, bem como promove a
apropriação dos espaços urbanos,
oferecendo ao seu público e aos
moradores da cidade espaços de lazer,
cultura e literatura (Martin e Bueno,
2021).
uma produção de cultura
crítica e criativa inserindo seu público
jovens negros e periféricos em
ambientes de sociabilidade, até mesmo
espaços por eles não acessados
(Martin e Bueno, 2021): “por exemplo,
hoje eu consigo estar na UFES”
(Trecho da entrevista realizada em
13/04/2024 com Adrielly) ou
“UFESLAM, fazem um slam dentro de
um shopping… Porra! É dentro de um
shopping, mano. Se os moleques
conseguem ocupar a universidade pra
poder fazer a parada” (Trecho da
entrevista realizada em 14/03/2024
com João Martins). Independente de
qual coletivo ocupe os espaços
urbanos, é uma vitória para o
movimento Hip-Hop como um todo.
Sou feito de ruas do Taboão
Alê, Paula, Ju e Ana
Sabe, às vez', minha vista
pesa
Mas eu olho vocês e vou
caminhando
(Rico Dalasam)
Por fim, a categoria de
Autoanálise refere-se a falas das
reflexões e análises de si próprio, tendo
um único sentido, a mudança.
Papo de sentimento mesmo,
me deu muita dor de cabeça,
não vou mentir não, pra você.
Deu muita dor de cabeça, em
questão emocional, entender
que uma pessoa preta precisa
amar, precisa ser amada,
precisa se amar. Xamego me
deu assim: acorda, meu irmão,
muito doido. Tem gente que
te ama pra caralho, você
que não vendo (Trecho da
entrevista realizada em
06/03/2024 com Filipe Soul)
Segundo hooks (2020), o amor
tem um papel fundamental na
transformação de cada indivíduo.
Noguera (2020) complementa ao
afirmar que essa transformação
acontece de maneira coletiva, sendo o
amor e a comunidade os meios através
116
ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
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mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
dos quais é possível se autoavaliar.
Além disso, Gomes (2017) destaca o
papel educador do movimento negro
para as pessoas negras, demonstrando
que a dinâmica de existência,
resistência e cuidado do movimento
social também ensina aos seus
membros. O Slam Xamego, como um
movimento social-cultural periférico e
predominantemente negro, também
atua nesse processo educacional. O
movimento Hip-Hop tem sua função
educadora com seus participantes.
Podemos ver isso como acontece
também nas batalhas de rima, pois elas
revelam o racismo estrutural e criam
um espaço de ressignificação e
resistência, permitindo que jovens
negros sonhem e discutam questões de
classe e gênero (Santos, 2023).
Portanto, as questões de gênero
e classe aparecem nas narrativas ao
longo das entrevistas nesses trechos:
“[a] comunidade LGBTQIA+, estarem
presentes e falarem sobre as coisas
delas. E aí, uma parada é, se essas
pessoas não estão nesse lugar falando
sobre essas coisas, alguma coisa
errada” (Trecho da entrevista realizada
em 14/03/2024 com João Martins). Tal
colocação destaca a importância do
slam como um movimento democrático,
periférico.
Em outro trecho de entrevista, é
perceptível como o movimento faz suas
cobranças em relação aos
ensinamentos: “militância, quebrando,
falou coisa errada, toma, testemunho
errado, toma, tipo, foi aquele processo
de aprendizado” (Trecho da entrevista
realizada em 06/03/2024 com Filipe
Soul). O entendimento de acolhimento
também se faz presente: “Você falou da
questão de classe, por exemplo, você
está com pessoas que entendem as
suas dificuldades. É tudo parte do
entendimento, né? Entende as
dificuldades que você passa. Você não
precisa ficar provando algo” (Trecho da
entrevista realizada em 13/04/2024
com Adrielly).
O slam também se torna local de
aprendizagem sobre o amor, já que:
nós, jovens, negros,
periféricos, a gente não
acostumado a falar sobre isso
[amor]. A gente não
acostumado a falar sobre isso.
A gente acostumado a falar
sobre dor. A nossa narrativa,
ou a narrativa que construíram
e sempre mostraram pra gente,
é uma narrativa de dor. Então,
talvez, seja um bloqueio por
não ser um processo de dor
(Trecho da entrevista realizada
em 14/03/2024 com João
Martins)
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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
hooks (2010) aponta que
pessoas negras têm, como estratégia
de sobrevivência, a prática de reprimir
os sentimentos e acabam entendendo
esse ato como uma ação positiva. Por
esse motivo, torna-se “muito difícil para
a gente entender que a gente pode ser
amada” (Trecho da entrevista realizada
em 13/04/2024 com Adrielly). Tal
construção, ainda a partir de hooks
(2010), produz inúmeros desafios de
existência e, até mesmo, para a
garantia da sobrevivência. Por isso,
entendemos que, a partir das trocas
que acontecem no Slam Xamego, é
possível um exercício cotidiano sobre o
amor, como vemos nesse trecho:
E aí isso também vai moldando
muito, vai amadurecendo muito
a gente, de como a gente age,
de como a gente pensa sobre
determinadas coisas. Quando
a gente chega no slam e ouve
fulano de tal falar uma parada
diferente ou de uma outra
perspectiva que você talvez
nunca tenha parado pra
pensar, sabe? Você fica tipo,
pô, isso aqui me pega [...]
quantas vezes eu já fui num
slam, ouvi alguém falar alguma
coisa e falei, mano, isso aqui
me pegou. E eu chegar em
casa e automaticamente
escrever sobre. Sabe? (Trecho
da entrevista realizada em
14/03/2024 com João Martins)
Por fim, entendemos que o
movimento Slam Xamego promove um
processo educador que forma tanto os
indivíduos quanto sua percepção do
mundo. Neste sentido, os participantes
se autoanalisam e, a partir desse
processo, são capazes de mudar,
transformar-se e encontrar novas
estratégias para agir e de ser no mundo
(Gomes, 2017; Santos, 2023; Tavares,
2011).
Considerações finais
Pôs o sonho no carretel,
descarreguei tudo que eu tinha
Nunca vai tocar o céu quem
tiver medo de dar linha
Cesar MC
Este trabalho investigou parte da
cultura Hip-Hop, com foco no Slam
Xamego, bem como a aposta desse
coletivo em falar sobre como o amor é
revolucionário, especialmente diante
das violências que os jovens negros e
periféricos sofrem constantemente,
seja pela via armada do Estado, seja
por outras tantas formas estabelecidas
na sociedade. Essa aposta emerge do
desejo desses jovens de falar sobre
algo além das violências, racismos e
dores, trazendo leveza e encontrando,
no amor, uma resposta. A análise do
material coletado revela que as poesias
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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
de amor declamadas no Slam Xamego
são fundamentais, pois proporcionam a
esses jovens a oportunidade de sonhar.
Além de inspirar sonhos, o amor
também assume uma função política a
partir da criação de um corpo político e
permitindo que esses jovens aprendam
uns com os outros por meio de suas
experiências, em consonância com
outros movimentos da cultura Hip-Hop.
Os achados desta pesquisa,
mesmo que limitados à uma pesquisa
de iniciação científica com duração de
um ano, reafirmam a enunciação do
amor como transformação da vida.
Portanto, destaca-se a importância de
dar continuidade e aprofundar esse
estudo com a juventude participante do
Slam Xamego.
O estudo evidencia a força do
coletivo na vida dos jovens, a
possibilidade de planejar, amar e viver,
resistindo às dificuldades e violências
cotidianas, evitando a morte sica e
simbólica, ocupando espaços urbanos
e expressando suas necessidades
através da arte e das expressões
poéticas. A criatividade e sagacidade
desses jovens desafia a lógica
hegemônica de que jovens negros e
pobres são perigosos; como podem ser
perigosos se seus gritos clamam por
amor e declaram seus amores e suas
decepções amorosas? A sagacidade
está na dupla satisfação em falar de
amor e subverter a lógica hegemônica.
Nesse processo, o Slam Xamego
conquista espaços importantes, como a
transmissão do campeonato estadual
na TV aberta e a realização do evento
no teatro, fomentando nos jovens um
senso crítico sobre a ocupação dos
espaços na cidade, apontando como a
cultura Hip-Hop, na
contemporaneidade, tem uma função
educativa e atua como fomentadora de
produção de conhecimento pela
juventude.
Em suma, o maior achado desta
pesquisa foram as considerações sobre
os sonhos. Falar de amor permite a
possibilidade de sonhar, de expressar e
construir desejos, entendendo que
estão profundamente conectados à
própria vida e existência. Falar de amor
é falar de maneiras de viver e de se
manter vivo. Os sonhos estão
entrelaçados com o presente e o futuro;
enquanto houver sonhos, haverá luta,
resistência e vida. A transformação
torna-se possível, pois um futuro a
ser vivido, e o Slam Xamego se destaca
como revolucionário por potencializar o
desejo de sonhar através do amor.
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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
Esse ato revolucionário está na
sagacidade de abalar a lógica
dominante que busca exterminar a vida
desses jovens. A cultura Hip-Hop e o
Slam Xamego criam um furo na
narrativa, estabelecida pela
hegemonia, de que jovens negros e
periféricos são perigosos, bem como
criam a possibilidade de ser mais, ou
seja, de sonhar em ser além do que
dizem. Falar de amor cria a chama de
desejar e, consequentemente, de
sonhar.
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