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MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.165-184, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
(Re)construção do ethos e da identidade negra em duas canções do álbum
Ladrão, de Djonga
Leandro Moura
1
Benedicto Roberto Alves Carlos
2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v15i28.65326
Resumo: Conforme a língua portuguesa, “ladrão” é aquela pessoa que pratica o ato de roubar ou furtar,
além de ser corresponder, também, a uma pessoa desonesta. Frequentemente, jovens negros são
vistos e/ou julgados como ladrões devido à cor da pele. É a partir dessa perspectiva que o rapper
mineiro, Djonga, lançou o álbum intitulado Ladrão, em 2019. No álbum, o músico tenta desconstruir
essa imagem prévia (ethos) que é formada em volta da população negra. É por meio da arte e do
discurso que o rapper busca empoderar o sujeito negro, ao mesmo tempo em que reforça a
reinvindicação de espaços e direitos. Desse modo, o presente artigo busca investigar a maneira como
o músico, a partir de suas músicas, utiliza técnicas argumentativas para descontruir e, efetivamente,
construir uma nova imagem acerca da população negra.
Palavras-chave: argumentação; ethos; rap; doxa; retórica.
(Re)construction of ethos and black identity in two songs from the album Ladrão, by Djonga
Abstract: According to the Portuguese language, a “thief” is a person who commits the act of stealing
or stealing, in addition to also being a dishonest person. Often, young black men are seen and/or judged
as thieves because of the color of their skin. It is from this perspective that the rapper from Minas Gerais,
Djonga, released the album entitled Ladrão, in 2019. In the album, the musician tries to deconstruct this
previous image (ethos) that is formed around the black population. It is through art and speech that the
rapper seeks to empower the black subject, while at the same time reinforcing the demand for spaces
and rights. Therefore, this article seeks to investigate the way in which the musician, based on his songs,
uses argumentative techniques to deconstruct and, effectively, construct a new image about the black
population.
Keywords: argumentation; ethos; rap; doxa; rhetoric.
(Re)construcción de ethos e identidad negra en dos canciones del disco Ladrão, de Djonga
1
Doutor em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail:
leandro_slm@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6777-5773.
2
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Universidade Federal de
Minas Gerais (POSLIN/UFMG). E-mail: benedictorcarlos@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-
0003-1593-4255.
Recebido em 10/11/2024, aceito para publicação em 22/12/2024.
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MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.165-184, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Resumen: Según el idioma portugués, un ladrón” es una persona que comete el acto de hurtar o
hurtar, además de ser también una persona deshonesta. A menudo, los jóvenes negros son vistos y/o
juzgados como ladrones por el color de su piel. Es desde esta perspectiva que el rapero minero Djonga
lanzó en 2019 el álbum titulado Ladrão. En el álbum, el músico intenta deconstruir esta imagen previa
(ethos) que se forma en torno a la población negra. Es a través del arte y el discurso que el rapero
busca empoderar al sujeto negro, al mismo tiempo que refuerza la demanda de espacios y derechos.
Por ello, este artículo busca investigar la manera en que el músico, a partir de sus canciones, utiliza
técnicas argumentativas para deconstruir y, efectivamente, construir una nueva imagen sobre la
población negra.
Palabras clave: argumentación; ethos; rap; doxa; retórica.
(Re)construção do ethos e da identidade negra em duas canções do álbum
Ladrão, de Djonga
Introdução
A história do Brasil é marcada
pelo processo de colonização,
realizado pela coroa portuguesa, entre
os anos de 1530 e 1822. A música
sempre se fez presente para os negros
e, segundo Nascimento (2019), no
início do período da colonização, a
música servia como alívio para os
negros escravizados, depois de um
longo e doloroso dia nas colônias.
Nesse sentido, a música servia como
uma possibilidade de futuro. Em outras
palavras, a música era um vislumbre de
um futuro com melhor qualidade de
vida.
Conforme Mariani (2004), o
processo de colonização pode ser
entendido como um sistema violento no
qual uma nação e/ou cultura impõe-se
sobre a outra. Além disso, a autora
compreende que a única maneira de
relatar os acontecimentos do passado e
ressignificar ideias é por meio da língua
deixada pelo colonizador, ou seja, por
meio da língua, é possível lutar contra
o processo de colonização, contra a
discriminação e contra o preconceito.
Mais do que isso, é necessário se
apropriar da língua do opressor para
combater os seus preconceitos, pois é
por meio da linguagem do dominador
que as pessoas subalternas irão se
libertar. Nesse sentido,
muitas vezes não como
dizer essa outra história a não
ser pelo uso da língua vinda
com o colonizador. Mesmo que
seja para dizer de um outro
jeito, renomear os
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identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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acontecimentos, por exemplo,
que se passar por uma
política de sentidos organizada
inicialmente na língua da
metrópole (Mariani, 2004, p.
24).
Assim, é exatamente por meio
desse recurso, qual seja, o de utilizar a
língua colonizadora, que cantores de
rap, como Djonga, Mano Brown,
Emicida, entre outros, buscam retomar
o passado para criar alternativas no
presente.
Nesse sentido, compreendemos
que o rap é um gênero que integra o
quadro cultural do Hip-Hop, visto que “o
rap é um dos elementos que fazem
parte do Hip-Hop, um movimento
cultural que surgiu no início dos anos
1970, no bairro do Bronx, em Nova
Iorque, criado por jovens negros e
imigrantes” (Dutra, 2006, p. 179).
Devido à sua relevância para a
população, o Hip-Hop e,
consequentemente, o rap conquistaram
espaço nos cenários culturais ao redor
do mundo, especialmente no Brasil.
Atualmente, “o rap é um gênero musical
mundialmente conhecido que comporta
uma grande heterogeneidade” (Dutra,
2006, p. 179).
No contexto brasileiro, a cultura
do rap se manifesta como uma forma
de resistência e valorização da cultura
afro-brasileira, além de representar um
instrumento de emancipação para a
população historicamente
subalternizada. Nessas trilhas, cabe
lembrar do sankofa, provérbio africano
cuja ideia é retomar o passado para
ressignificar o presente. No trabalho
musical desenvolvido pelo rapper
Djonga, é possível perceber que o
músico brasileiro busca retomar o
passado para que, desse modo,
reivindique todo o espaço negado para
os negros.
Ademais, é válido dizer que a Lei
Áurea, assinada em 1888, não
concedeu ao negro a possibilidade de
emancipação e ascensão social. Uma
das estratégias utilizadas para manter a
população negra subjugada foi a
racionalização, quando se colocava
uma raça contra a outra, pois tal noção
opera como uma forma de manter o
controle sobre os corpos negros. Nessa
perspectiva, Sodré (2023) aponta que o
processo de racionalização, que
ocorreu após a abolição, serviu como
uma estratégia endocolonial, uma vez
que “o racismo passa a funcionar como
estratégia de hierarquização social
dentro de uma cadeia de continuidade
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identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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transformações da cultura")
que se pauta por novas regras” (Sodré,
2023, p. 44).
Desse modo, o processo
endocolonial pode ser caracterizado
pela criação de barreiras que
impossibilitam o sujeito negro de atingir
determinado nível econômico e social.
Além disso, entendemos que um
controle sobre a identidade negra, uma
vez que, embora tal identidade seja
socialmente reconhecida, a imagem
que se constrói em torno dela não
reflete sua verdadeira identidade. Em
vez disso, essa representação funciona
como um reflexo do racismo presente
em nossa sociedade. Nesse sentido,
entendemos que o rap, enquanto
gênero musical, busca o resgate da
identidade e da valorização da cultura
negra.
Por conseguinte, com a
retomada dos estudos retóricos e com
a publicação do Tratado da
Argumentação: a nova retórica, em
1958, o campo da Análise do Discurso
tem oferecido importantes
contribuições para a reflexão sobre a
construção dos mais variados tipos de
discurso. Para além disso, a obra de
Perelman e Olbrechts-Tyteca buscou
demonstrar como o orador constrói sua
argumentação em função do outro,
utilizando recursos linguísticos que
visam fortalecer sua argumentação.
Desse modo, para que
possamos investigar as técnicas
argumentativas utilizadas por Djonga
para desconstruir e, efetivamente,
construir uma nova imagem acerca da
população negra em suas músicas,
adotaremos, como arcabouço teórico,
os escritos de Perelman e Olbrechts-
Tyteca. Mais do que isso, as análises
aqui propostas se voltam para a
problemática da argumentação como
discurso, que está diretamente
relacionada à problemática retórica,
pois, conforme Emediato (2022, p.
432), “a problemática retórica é
retomada atualmente pelos trabalhos
que se orientam para o discurso e seus
objetos diversos, como o espaço do
debate público, os auditórios, a
subjetividade e as intenções dos
sujeitos”. Entendemos, ainda, que é
necessário analisar como a relação
entre o orador e o auditório pode ser
construída por meio da sica, uma
vez que
o sujeito tem um estatuto social
(um papel social) que gera
expectativas sobre suas
atitudes discursivas (papéis
discursivos). Os fatores de
determinação não apenas
ideológicos, mas ligados ao
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funcionamento complexo e
multivariado das estruturas
sociais, das normas, dos rituais
conversacionais, das
tecnologias, dos dispositivos
comunicacionais, das
situações das diferentes
lógicas de relações entre
sujeitos” (Emediato, 2020, p.
31).
Além do Tratado, haja vista que
este artigo foi desenvolvido com foco
na problemática da argumentação e no
papel do ethos como uma forma de
reconstrução de identidades, valemo-
nos de filósofos da Retórica, como
Aristóteles (2011); de estudiosos da
argumentação e de analistas do
discurso, como Amossy (2018),
Emediato (2020, 2022), Galinari (2014),
Lima (2023) e Perelman & Olbrechts-
Tyteca (2020).
Por fim, visamos investigar como
as provas retóricas e as cnicas
argumentativas foram utilizadas para
conquistar a adesão de seu público e
como elas auxiliam na reconstrução da
identidade da população negra. Antes
de passarmos às análises, serão
apresentados, brevemente, alguns
pensamentos sobre argumentação e
retórica na próxima seção.
3
Nossa tradução do texto original em espanhol:
“desde los poemas homéricos, que son los
primeiros textos de la literatura grega, la
Entre a Argumentação e a Retórica
Muito se discute sobre o
surgimento e/ou a origem dos estudos
retóricos, mas não é possível definir
com exatidão sua criação. Entretanto,
compreendemos que a utilização da
retórica se faz presente desde o
momento em que os seres humanos
passaram a utilizar a linguagem como
forma de comunicação, o que dificulta a
definição do local de seu surgimento. O
poeta Homero, por exemplo, é
notoriamente reconhecido pela
utilização constante de discursos em
seus poemas épicos, além de reflexões
acerca das diversas formas de
discursar. Nesse sentido, Pernot (2016)
nos lembra de que “Desde os poemas
homéricos, que são os primeiros textos
da literatura grega, as palavras e a
persuasão ocupam um lugar de
destaque” (Pernot, 2016, p. 27)
3
.
Na Antiguidade, os estudiosos
concebiam a retórica como uma
ferramenta utilizada para persuadir o
outro, ou seja, ela era sinônimo de
eloquência. Essa definição de retórica
fez com que ela fosse compreendida de
palavra y la persuasión ocupan um lugar
preeminente” (Pernot, 2016, p. 27).
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identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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uma maneira pejorativa entre os
cidadãos, pois ela era entendida como
um modo de enganação. Nas palavras
de Galinari (2014), “a palavra retórica
acha-se constantemente associada à
manipulação, ou seja, a
comportamentos discursivos pautados
na demagogia, por lidar,
perigosamente, com emoções, desejos
e anseios das subjetividades humanas”
(Galinari, 2014, p. 261). Além disso,
Pernot (2016) aponta que o
aparecimento da retórica na
Antiguidade é marcado pelo surgimento
da polis que, consequentemente,
influenciou os diferentes usos públicos
da linguagem.
Alguns pesquisadores da área
atribuem o surgimento da retórica aos
sofistas, mais precisamente a Córax e
Tísias. Cabe destacar que Córax teria
sido o professor de Tísias, tendo em
vista que o segundo teria recorrido ao
primeiro em busca de ganhar um
processo judicial. Córax era
reconhecido por ensinar a arte oratória
a qualquer um mediante pagamento.
Pernot aponta que “un joven, muy
ansioso de aprender retórica, fue em
busca de Córax, comprometiéndose a
pagarle el salario que él fijara, a
condición de ganhar su primer jucio”
(Pernot, 2016, p. 38). Os dois foram
responsáveis por publicarem o primeiro
manual de retórica, fazendo com que
ela se tornasse uma disciplina, mas
suas obras não sobreviveram com o
passar dos anos e as únicas
referências que temos a eles são em
autores como Aristóteles, Cícero,
Quintiliano e Platão.
O estudo da retórica surge,
então, a partir da necessidade de os
cidadãos da polis defenderem seus
bens nos tribunais. Córax e Tísias são
reconhecidos por desenvolverem a
ideia da verossimilhança, uma vez que
compreendem que um argumento não
apresenta uma verdade concreta, mas
uma verdade aparente. Ainda que
tenham sistematizado um manual de
retórica, não é possível creditar o
surgimento da retórica a tais
estudiosos, tendo em vista que existem
outras histórias sobre o invento da
referida disciplina.
Acontece que, embora tenha se
baseado nos estudos dos sofistas, a
retórica se popularizou com Aristóteles
e se difundiu a partir do filósofo grego.
Os estudos de Aristóteles sobre
retórica são mais conhecidos do que os
dos sofistas, devido ao fato de sua obra
ter “sobrevivido” com o passar dos
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séculos. Para Aristóteles (2011, p. 44),
a retórica é “a faculdade de observar,
em cada caso, o que este encerra de
próprio para criar a persuasão”.
Nessa busca pela persuasão, o
orador tem à sua disposição três provas
retóricas, as quais podem ser
mobilizadas para que ele conquiste a
adesão: o ethos, o pathos e o logos. O
primeiro é voltado para a imagem
pessoal do orador (ethos); o segundo é
a capacidade do orador de despertar as
emoções de seu público (pathos); e o
último é referente ao próprio discurso
no que diz respeito ao que apresenta ou
parece apresentar (logos).
Apesar de, classicamente, as
provas serem apresentadas de modo
individualizado, é importante mencionar
que, em uma análise argumentativa,
essas três provas retóricas se
complementam e não funcionam
separadamente, tendo em vista que o
ethos e o pathos se tornam realidade
a partir do discurso, ou seja, do uso de
sua estrutura, de seus raciocínios, em
suma, de tudo que se chamou [...] de
logos” (Galinari, 2014, p. 264).
Após os estudos de Aristóteles,
Reboul (1998) aponta que “a retórica se
instala na cultura grega helenística
como disciplina essencial, tão
importante quanto para nós a
matemática” (Reboul, 1998, p.72). Com
o passar dos séculos, o ensino da
retórica esteve presente em diversas
culturas e sociedades, tais como no
Império Romano, na Europa medieval e
no mundo islâmico, por exemplo.
Entretanto, no século XIX, “a retórica
realmente declinou, a ponto de quase
desaparecer” (Reboul, 1998, p. 77). Um
dos motivos para tal é a relação
estabelecida entre a retórica e o
Cristianismo, ou seja, a apropriação
problemática dos estudos retóricos,
feita por parte dos religiosos.
Assim como lembra Moura
(2022), é importante salientar que, após
esse período de deslegitimação da
retórica, ocorrido durante a passagem
do século XIX para o XX, os estudos de
argumentação precisaram se
reinventar. Assim, ao nos debruçarmos
sobre as trilhas percorridas por
estudiosos contemporâneos da
argumentação, notaremos que, hoje,
não existe somente uma definição de
argumentação, mas sim um conjunto
de possíveis definições, ou melhor, o
que temos hoje são teorias da
argumentação, entre as quais se
destacam O Tratado da Argumentação,
de Perelman e Olbrechts-Tyteca, e Os
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transformações da cultura")
usos do Argumento, de Toulmin. Essas
obras foram publicadas em 1958 e
foram extremamente importantes, pois
marcaram o novo momento vivido pelos
estudos da argumentação na segunda
metade do século XX.
A inscrição da argumentação nos
estudos discursivos
No Tratado da Argumentação: a
nova retórica, publicado em 1958,
Perelman e Olbrechts-Tyteca
buscaram recuperar os estudos de
Aristóteles acerca da retórica para ser
aplicado no campo do Direito. Além
disso, com a Nova Retórica, buscou-se
estabelecer certo distanciamento dos
estudos lógicos, tendo em vista que,
para o positivismo lógico, a
argumentação deve ser sustentada a
partir de raciocínios lógicos e de fatos
que fundamentam a sua arguição. Em
vista disso, os autores reconhecem que
o campo da argumentação, assim
como pensavam os sofistas, é “o
campo do verossímil, do plausível, do
provável, na medida em que este último
escapa às certezas do cálculo”
(Perelman; Olbrechts-Tyteca, 2020, p.
1).
Embora o discurso possa ser
utilizado como uma ferramenta de
ataque, tendo em vista que “o uso de
um termo como ‘machucar’ sugere que
a linguagem pode ter efeitos
semelhantes aos da dor física ou de um
ferimento” (Butler, 2021, p. 16),
Perelman e Olbrechts-Tyteca
compreendem que os estudos acerca
da argumentação possam servir como
recurso para evitar a violência física.
Para os autores,
a razão é totalmente
incompetente nos campos que
escapam ao cálculo e de que,
onde nem a experiência, nem a
dedução lógica podem
fornecer-nos a solução de um
problema, nos resta
abandonarmo-nos às forças
irracionais, aos nossos
instintos, à sugestão ou à
violência (Perelman; Olbrechts-
Tyteca, 2021, p. 3).
Dessa forma, é possível dizer
que, a partir da argumentação, os
sujeitos serão capazes de chegar a um
consenso, evitando, assim, possíveis
agressões físicas em situações de
conflito.
Ademais, com o Tratado da
Argumentação, Perelman e Olbrechts-
Tyteca pretendem ampliar os estudos
retóricos de Aristóteles em novas
perspectivas e reflexões. Assim,
diferentemente dos retóricos da
Antiguidade, que priorizavam os
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discursos orais, Perelman e Olbrechts-
Tyteca (2020) afirmam que não
pretendem limitar seus estudos apenas
às análises de discursos orais. Assim,
os autores reconhecem a importância
de discursos escritos, como os
literários. Percorrendo essas trilhas e
considerando o contexto atual do
século XXI, com a popularização da
Web 2.0 e da internet, os analistas de
discursos são agora convidados a
considerar, também, os discursos feitos
e publicados online, o que nos
propomos a fazer neste trabalho.
Um dos objetivos dos autores
com o Tratado da Argumentação é
investigar o modo como os recursos
linguísticos são utilizados pelos
oradores para conquistar a adesão dos
espíritos. Em vista disso, Perelman e
Olbrechts-Tyteca (2020) entendem que
a argumentação corresponde às
estratégias discursivas utilizadas por
um orador para aumentar e/ou provocar
a adesão dos espíritos às teses
apresentadas. A argumentação
acontece, então, a partir da relação
entre um orador e seu auditório, sendo
o último responsável por qualificar a
argumentação. Em outras palavras,
cabe ao auditório avaliar e julgar o
discurso que lhe é apresentado, pois “é,
de fato, ao auditório que cabe o papel
principal para determinar a qualidade
da argumentação e o comportamento
dos oradores” (Perelman; Olbrechts-
Tyteca, 2020, p. 27).
O auditório, segundo os autores,
é constituído por aqueles a quem o
orador busca persuadir com sua
argumentação. Assim, a argumentação
é toda construída e moldada a partir do
auditório ao qual o orador se dirige.
Cabe destacar a importância que é
concedida ao auditório no Tratado, uma
vez que “o ouvinte, em suas novas
funções, assumiu uma personalidade
nova, que o orador não pode ignorar”
(Perelman; Olbrechts-Tyteca, 2020, p.
24). Em síntese, o orador necessita
projetar seu auditório o mais próximo
possível da realidade para conquistar
sua adesão, uma vez que a
argumentação é toda desenvolvida a
partir do auditório o qual o orador
pretende conquistar.
Com relação à argumentação
escrita, Perelman e Olbrechts-Tyteca
apontam a dificuldade que um escritor
enfrenta ao projetar seu auditório, visto
que, em um discurso escrito, o autor
não tem controle sobre quem será seu
público. Os autores afirmam que “é
difícil determinar, com a ajuda de
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identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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transformações da cultura")
critérios puramente materiais, o
auditório de quem fala; essa dificuldade
é ainda maior quando se trata do
auditório do escritor, pois, na maioria
dos casos, os leitores não podem ser
determinados com exatidão”
(Perelman; Olbrechts-Tyteca, 2020, p.
22). Ao longo da obra, Perelman e
Olbrechts-Tyteca dividem o auditório
entre o auditório universal, particular,
de elite, heterogêneo etc.
Para auxiliar na construção e/ou
na adaptação ao auditório, o orador
tende a se apoiar nos valores que
cercam o seu auditório, visto que “os
valores intervêm, num dado momento,
em todas as argumentações [...].
Recorre-se a eles para motivar o
ouvinte a fazer certas escolhas em vez
de outras e, sobretudo, para justificar
estas, de modo que se tornem
aceitáveis e aprovadas por outrem”
(Perelman; Olbrechts-Tyteca, 2020, p.
85).
Desse modo, os autores
apontam que, embora o orador não
compactue com os valores de seu
auditório, não seria interessante que
ele os negasse completamente, pois,
assim, não conquistaria sua adesão. A
noção de valores trabalhada por
Perelman e Olbrechts-Tyteca se
assemelha à concepção de doxa, da
retórica antiga, recuperada e
acrescentada aos estudos discursivos
contemporâneos. Amossy (2018), por
exemplo, reconhece a doxa como parte
do campo da verossimilhança e/ou da
probabilidade, uma vez que, segundo a
autora, a doxa fornece meios para que
se alcancem pontos de acordo entre o
orador e seu auditório.
Em seu livro A Argumentação no
Discurso, Amossy (2018) aponta as
problemáticas que envolvem a noção
de doxa e/ou valores, destacando que,
no século XX, essa noção era estudada
de forma negativa. A autora explica que
os estudos sobre a noção de doxa
buscavam ilustrar “como a opinião
comum aliena a consciência individual,
obstruindo a verdadeira reflexão, e
prende o sujeito falante a uma ideologia
que se oculta sob as aparências
exteriores do senso comum ou natural”
(Amossy, 2018, p. 109). Entretanto, na
mesma obra, a autora busca trazer
outra reflexão acerca da doxa, pois
compreende que é possível fazer um
movimento contrário e desconstruir
determinados valores dominantes.
A partir das considerações
apresentadas até este momento,
buscamos investigar, também, como o
175
MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.165-184, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
rapper Djonga “persegue a doxa,
assinala o engano e a manipulação; em
outros termos, desmitifica” (Amossy,
2018, p. 111). Nesse contexto,
entendemos que o músico, por meio de
sua argumentação e de sua música,
tenta instaurar novos valores para
elevar a autoestima da população
negra.
Compreendemos que, ao fazer
esse movimento de discursar contra os
valores dominantes e de elevar a
autoestima da população negra, o
rapper mineiro possibilita uma
reconstrução do ethos pré-discursivo
que é criado em torno da população
negra. Para além disso,
compreendemos que a música de
Djonga possibilita a reconstrução da
identidade negra, tão perseguida no
Brasil. Então, para analisar essa
elaboração argumentativa do rapper,
investigamos quais as possíveis
técnicas argumentativas utilizadas por
ele para validar seu discurso e
conquistar a adesão de seus ouvintes,
pois “é levando em conta essa
sobreposição de argumentação que se
conseguirá explicar melhor o efeito
prático, efetivo, da argumentação”
(Perelman; Olbrechts-Tyteca, 2020, p.
214).
No próximo tópico, como forma
de contextualização, abordaremos
brevemente a trajetória de Djonga e,
por fim, faremos uma análise de duas
músicas, a saber, Hat-Trick e Ladrão,
as quais estão no álbum "Ladrão"
(2019). A escolha dessas músicas
baseia-se no fato de Hat-Trick ser o ato
de abertura do álbum, enquanto Ladrão
corresponde à faixa que título à
obra. Além disso, acreditarmos que
ambas demonstram, na prática, como
Djonga utiliza a argumentação para a
reconstrução da identidade da
população negra.
Notas sobre o rapper
Gustavo Pereira Marques,
conhecido por seu nome artístico
Djonga, nasceu em Belo Horizonte, no
ano de 1994. Atualmente, é
considerado um dos maiores rappers
brasileiros dos últimos anos, tendo
lançado sete álbuns e um EP. Djonga é
conhecido por trazer em suas letras
referências a filmes, a pensadores
negros e à cultura pop de modo geral.
Além disso, as composições do rapper
abordam, de forma objetiva e
contundente, a luta contra o racismo,
contribuindo para a relevância de
Djonga no cenário musical brasileiro.
176
MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.165-184, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
No terceiro álbum do cantor,
Ladrão (2019), o artista constrói um
discurso rodeado de críticas sociais ao
tentar resgatar a autoestima do povo
negro que há tanto tempo segue sendo
enquadrado como “ladrão”. Em uma
entrevista para a revista Rolling Stone
Brasil (2019)
4
, o rapper relatou que:
quando eu era criança, eu
andava na rua e me sentia
ladrão. Mesmo quando nunca
tinha roubado nada, as
pessoas olhavam com medo. O
tempo passou e eu entendi que
tipo de ladrão eu devia ser,
esse que busca e traz de volta
pras minhas e pros meus. Aí eu
fui e fiz o que eu sempre fiz:
roubei, roubei e trouxe de volta
(Djonga, 2019).
A partir do trecho da entrevista
apresentado acima, é possível
perceber as motivações que levaram
Djonga a compor o álbum Ladrão. Entre
elas, podemos perceber como ele
utiliza a indignação para comover,
conscientizar e, consequentemente,
mobilizar seu público em prol da causa
que defende. Lima (2023) aponta que
utilizar da indignação como forma de
mobilização pode ocasionar “medo e
desejo de vingança” (Lima, 2023, p.
113). O desejo de vingança é um dos
4
Cf.
<https://rollingstone.uol.com.br/noticia/lista-13-
segredos-de-ladrao-o-terceiro-disco-do-
motores que conduzem Djonga na
tentativa de reconstrução de valores
acerca da identidade negra.
Outro ponto de apoio utilizado
pelo artista, mesmo de maneira
inconsciente, é o uso do ressentimento
como forma de mobilização social. Uma
pessoa ressentida compreende que
“por acreditar ser desprovido de poder,
por acreditar ser prejudicado pelas
instituições jurídica, política,
educacional , o sujeito se (re) sente,
sente-se injustiçado” (Lima, 2023, p.
108). No entanto, o ressentimento
utilizado pelo artista pode ser
compreendido como uma forma de
reparação histórica em benefício do
sujeito negro que, por tantos anos,
sofreu (e ainda sofre) com as
consequências do racismo. Além disso,
compreendemos que o processo de
conscientização acerca das questões
raciais acontece por meio de um
processo de ressentimento, tendo em
vista que essa sensação leva a
desconfiança de que uma situação está
errada.
djonga-e-um-dos-melhores-de-2019/>. Acesso
em: 11 jun. 2024.
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MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.165-184, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Ethos e identidade negra: a música
como estratégia de (re)construção
das imagens de si
O álbum Ladrão, de Djonga, é
composto por 10 músicas autorais.
Para a análise, separamos duas
músicas, quais sejam, Hat-trick e
Ladrão. Sobre o critério de seleção das
músicas, vale destacar que optamos
por selecionar a faixa que abre o álbum
e a faixa que leva o nome do trabalho,
considerando, também, as temáticas
desenvolvidas durante as canções.
Para dar início à análise, optamos pela
faixa Hat-trick. Cabe destacar que
foram selecionados apenas alguns
trechos de destaque das músicas para
análise.
A primeira música
5
,
possivelmente, se chama Hat-trick por
compor o terceiro álbum consecutivo do
artista. O termo em questão, comum na
língua inglesa, é utilizado no futebol
quando um jogador marca três gols em
uma mesma partida, uma vez que seu
significado está atrelado a algo que
acontece, sucessivamente, por três
vezes. O primeiro verso da música diz
o seguinte:
5
Letra da música “Hat-trick” retirada da página
<https://www.letras.mus.br/djonga/hat-trick/>.
Acesso em: 11 jun. 2024.
falo o que tem que ser dito
pronto pra morrer de pé
pro meu filho não viver de
joelho
(Djonga, 2019)
marcas linguísticas na
composição, como o emprego da
primeira pessoa do singular, as quais
nos autorizam dizer que,
possivelmente, o eu-lírico corresponde
ao cantor. Nesse sentido, o artista
utiliza a modalidade enunciativa em
pessoa para se projetar em sua própria
música e gerar um efeito de
subjetividade. A modalização contribui
para a compreensão dos argumentos
do orador e para a construção de sua
autoimagem (ethos), a qual ele
pretende transmitir ao seu auditório.
Nas palavras de Emediato (2022),
pelos modos de dizer, o texto
expressa pontos de vista,
atitudes, sentimentos e
percepções do sujeito; pode
mostrar fatos como reais,
hipotéticos, possíveis ou
desejáveis; pode insinuar
efeitos de sentido que queira
causar no destinatário,
comportamentos e reações
que queira ver desencadeados
(Emediato, 2022, p. 237).
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MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Nesse sentido, no primeiro verso
da música, Djonga afirma, de maneira
assertiva, que ele diz apenas o
necessário, ou seja, evidencia fatos.
Desse modo, no segundo verso o
rapper afirma que, por conta das
verdades ditas por ele, está pronto para
morrer em pé, o que demostra que,
além de estar preparado para a morte,
ele não teme o fim da vida. Por
conseguinte, Djonga afirma que toda a
luta dele é para que o seu filho possa
viver, possivelmente, em um mundo
justo e de melhores condições de vida.
Assim, na primeira estrofe da música,
é possível construir um ethos do rapper
como sendo alguém focado e
preparado para combater os
preconceitos. Na próxima estrofe,
encontramos seguinte:
cê não sabe o que é acordar
com a responsa
que pros menor daqui eu sou
espelho
cada vez mais objetivo
pra que minhas irmãs deixem
de ser objeto
(Djonga, 2019)
O rapper, aparentemente, faz o
uso novamente da modalidade
enunciativa, mas, dessa vez, em
pessoa para gerar um efeito de
interlocução. Desse modo, ao utilizar
modalidade enunciativa na pessoa, o
artista gera um efeito de interlocução,
tendo em vista que projeta um tu no
verso ao alegar que, possivelmente,
esse alguém não imagina o peso que é
ser destaque do rap nacional, além de
ser um artista negro em um país
explicitamente racista. No verso
seguinte, Djonga utiliza o dêitico daqui
que aponta para um lugar de origem, de
lar. Dando continuidade, no verso
subsequente, o rapper retoma o que foi
dito na primeira estrofe sobre falar
apenas os fatos, de uma maneira
direta. no final da segunda estrofe,
Djonga demostra que toda sua luta é
pelo bem coletivo do seu povo. Nesse
sentido, o músico busca ressignificar a
identidade cultural das mulheres
negras, que costumam ser vítimas de
objetificação sexual. No refrão da
música, encontramos:
abram alas pro rei, ô
me considero assim
pois só ando entre reis e
rainhas
(Djonga, 2019)
Djonga faz uso da modalidade
volitiva, que tem o valor semântico e
modal de designar ordem, a fim de
solicitar que as pessoas abram espaço
para ele. Nesse sentido, ele projeta um
ethos de potência, ao reivindicar seu
lugar na sociedade. Em um primeiro
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MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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transformações da cultura")
momento, somos levados a pensar que
o rapper constrói o próprio ethos,
associando-o à figura de um rei,
possivelmente, devido ao sucesso que
alcançou. Na sequência, o músico
busca explicar que o motivo de se sentir
como um rei são as pessoas que estão
ao seu redor, valendo-se, então, da
modalidade autonímica, que possui o
valor semântico e/ou modal de reflexão.
Desse modo, Djonga projeta um ethos
coletivo, uma vez que tenta fazer com
que o sujeito negro se reconheça nesse
ethos de potência construído pelo
cantor.
No decorrer da música, Djonga
continua afirmando seu ethos de uma
pessoa assertiva, forte, além de
militante. Na estrofe seguinte, ele
afirma:
eu sigo falando o que vejo
Tem uns irmão que tá falando
o que essa mídia quer ouvir
alguns portais nem me citam
é que eu já ultrapassei, pô!
(Djonga, 2019)
O rapper, além de reafirmar seu
ethos, possivelmente, faz uma
denúncia contra outros músicos, que se
omitem em relação aos casos de
racismo, de desigualdades sociais e
outros problemas em voga na
sociedade brasileira. Além disso, no
verso “é que eu ultrapassei, pô”, é
possível perceber o modo como o
músico recorre ao argumento da
superação para exemplificar seu atual
momento social e para validar seu
argumento e sua imagem de si. Nas
palavras de Perelman e Olbrechts-
Tyteca (2020): “os argumentos da
superação insistem na possibilidade de
ir sempre mais longe num certo sentido,
sem que se entreveja um limite nessa
direção, e isso com um crescimento
contínuo de valor” (Perelman;
Olbrechts-Tyteca, 2020, p. 327).
Djonga também apresenta uma crítica
contra as grandes mídias, que se
mostram omissas e coniventes com o
racismo, pois “o quadro de pessoal nos
jornais é praticamente todo composto
de brancos, e isso, é claro, acarreta
sérias consequências na produção de
notícias, no estilo de redação, no
acesso às fontes e no ponto de vista
geral do discurso jornalístico [...]” (Van
Dijk, 2008, p. 98).
Esse desinteresse, por parte das
grandes mídias, ao não abordar esses
assuntos, faz com que o racismo
continue presente em nossa sociedade,
uma vez que as pessoas não são
educadas para desconstruírem seus
preconceitos. Isso faz com que músicos
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MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
como Djonga não tenham seus
trabalhos divulgados pela imprensa.
Em outras palavras, a branquitude
segue confiando nesse ethos que foi
imposto aos negros desde o início do
período colonial. Os sujeitos negros
carregam um ethos de pessoas
violentas, irresponsáveis, arrogantes,
incivilizados etc.
No final da música, o rapper
recita o seguinte poema autoral:
o dedo
desde pequeno geral te aponta
o dedo
no olhar da madame eu
consigo sentir o medo
cê cresce achando que cê é
pior que eles
irmão, quem te roubou te
chama de ladrão desde cedo
ladrão
então peguemos de volta o
que nos foi tirado
mano, ou você faz isso ou
seria em vão o que nossos
ancestrais teriam sangrado
de onde eu vim, quase todos
dependem de mim
todos temendo meu não, todos
esperam meu sim
do alto do morro, rezam pela
minha vida
do alto do prédio, pelo meu fim
ladrão
no olhar de uma mãe eu
consigo entender o que pega
com o irmão
tia,vou resolver seu problema
eu faço isso da forma mais
honesta
6
Letra da música “Ladrão” retirada da página:
<https://www.letras.mus.br/djonga/ladrao/.>
Acesso em: 11 jun. 2024.
e ainda assim vão me chamar
de ladrão
ladrão
(Djonga, 2019)
O poema serve como explicação
e/ou justificativa para o título do álbum,
tendo em vista que Djonga busca
ressignificar o conceito de ladrão, de
modo que as ações que são realizadas
pelo artista possam ser pensadas como
uma tentativa de reparação histórica.
Assim, percebemos que, embora o
rapper utilize a modalidade enunciativa
com efeitos de subjetividade, ele
aborda fatos da própria vivência e, ao
mesmo tempo, preza pela coletividade.
Portanto, como forma de legitimar o seu
discurso, Djonga faz o uso do
argumento de autoridade para legitimar
sua fala e encorajar a população negra
a combater a discriminação racial.
Na próxima música a ser
analisada, intitulada Ladrão
6
, Djonga
afirma, de maneira consistente, sua
posição de ladrão. A canção está na
primeira pessoa do singular e
encontramos nos primeiros versos os
seguintes dizeres:
eu vou roubar o patrimônio do
seu pai
181
MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
dar fuga no Chevette e
distribuir na favela
não vão mais empurrar sujeira
pra debaixo do tapete
e nem pra debaixo da minha
goela, eu sou ladrão!
os cara faz rap pra boy
eu tomo dos boy no ingresso,
o que era do meu povo
todo ouro e toda prata, passa
pra cá.
De onde se tira o pão não se
come a carne
Falar em carne, faço a preta
ser a mais cara do mercado
(Djonga, 2019)
Nesses versos, é possível
observar que o rapper se apropria da
modalidade deôntica para afirmar que
busca roubar os bens dos chefes de
produção e distribuí-los para as classes
sociais baixas. É a partir desta visão de
mundo que o rapper se intitula como
ladrão, pois busca reivindicar direitos e
melhores condições de vida para os
jovens negros e para a população
periférica. Nesse sentido, o artista
busca construir um novo ethos em
torno da palavra “ladrão”.
Além disso, no final da estrofe,
Djonga busca a valorização da
identidade e da cultura negra, ao
afirmar que faz a carne preta ser a mais
cara do mercado. Ademais, nessa
última estrofe destacada, pensando no
conceito de dialogismo proposto por
Volóchinov (2018), Djonga estabelece
um diálogo com a música A carne
(2002), de Elza Soares, a qual alega
que a carne mais barata do mercado é
a carne negra. Assim, o rapper buscar
fazer uma releitura desta concepção da
música.
No decorrer da canção, o sico
segue seu comprometimento em
devolver para a população negra tudo
aquilo que lhes foi tirado, como vemos
nos versos:
Dei voadora na cultura branca,
corda no pescoço
Eles passam e eu rasgo o
pano
Não sou querido entre a nata
de apropriadores culturais, ó
que onda!
(Djonga, 2019)
Djonga alega que está
questionando e criticando a valorização
em demasia dos valores culturais das
pessoas brancas, vindos do ocidente.
Devido a esses questionamentos, o
artista afirma que não é apreciado por
grande parte das pessoas brancas. O
argumento de autoridade também se
faz presente nessa segunda canção,
pois o eu-lírico expõe seus feitos para
tentar emancipar a população negra do
local social em que foram colocados.
Vejamos os próximos versos:
Eu só não quero ser menor
que eles
Não é pela grana que eu tô me
182
MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
gabando, yeah, hey!
Tiro onda, porque mudo
paradigmas
Meu melhor verso só serve se
mudar vidas
Pois construí um castelo vindo
dos destroços
Resumindo: Eu tiro onda
porque eu posso
(Djonga, 2019)
Nos versos destacados acima,
ao projetar um tu, o rapper demonstra o
desejo de sair desse local de
inferioridade no qual a sociedade
enquadrou a população negra. Nesse
sentido, Djonga faz uso do discurso de
autoridade como forma de validar suas
afirmações e conquistas pessoais.
Além disso, ele expõe um dos objetivos
de suas canções, que é a
transformação social na vida das
pessoas, mas especificamente da
população negra. No final do verso, o
verbo “resumir” aparece no gerúndio
para reafirmar esse discurso de
autoridade proposto pelo cantor.
Sobre a adaptação ao auditório,
podemos, inicialmente, assumir que o
músico tenta atingir um auditório
particular, ou seja, ele busca
estabelecer um diálogo com seus
semelhantes. Porém, ao mesmo
tempo, é possível cogitar a projeção
para um auditório universal, levando
em consideração as reivindicações
feitas na música. Nesse sentido, o
auditório universal, segundo Perelman
e Olbrechts-Tyteca, tende a versar
sobre “aquilo que é válido para a razão
de todo ser humano,
independentemente do tempo e do
lugar” (Perelman; Olbrechts-Tyteca
apud Amossy, 2018, p. 75).
Cabe destacar, ainda,
que nas demais canções do álbum, o
músico busca balancear essas
denúncias sociais em meio a algumas
músicas românticas. Porém, ainda que
o álbum contemple algumas canções
mais “leves”, o rapper não deixa de
fazer reflexões importantes em relação
à causa de mulheres e de homens
negros. Enfim, acreditamos que com as
duas músicas analisadas nesta seção,
conseguimos perceber a importância
do rap na vida das pessoas que se
enxergam nas letras e nos fatos
narrados pelo músico.
Considerações finais
Com base nas reflexões feitas
ao longo do artigo, além da análise das
músicas, é possível perceber a
importância do rap para a construção
da identidade cultural dos jovens
negros e das pessoas periféricas. Cabe
destacar que as identidades são
183
MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.165-184, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
construídas a partir da diferença e/ou
da comparação a alguém, sendo esse
o princípio da alteridade. Pensando no
trabalho de artistas do rap nacional, tais
como Djonga e Mano Brown, é possível
perceber que eles buscam construir a
identidade cultural das pessoas negras
e periféricas a partir da oposição da
identidade cultural e dos valores das
pessoas brancas. Na maioria das
canções feitas por Djonga, existe um
caráter coletivo e de fácil identificação
para a população negra. Nesse sentido,
“na cultura popular negra
contemporânea, o rap se tornou um dos
espaços onde o vernáculo negro é
usado de maneira a convidar a cultura
dominante a ouvir a escutar e, em
certa medida, a ser transformada”
(hooks, 2017, p. 228).
A partir da análise realizada no
artigo, podemos perceber o modo como
os estudos retóricos e os da
argumentação nos auxiliam na
compreensão dos mais diversos tipos
de textos sociais. Além disso, os
estudos da argumentação, em conjunto
com as provas retóricas, possibilitam a
ruptura de determinados valores
vigentes da sociedade. Nesse sentido,
o presente artigo buscou demonstrar
como o rapper Djonga se fez valer da
argumentação e das provas retóricas
para descontruir o ethos pré-discursivo
em torno da figura do negro.
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