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COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
"O Nordeste que você não viu": notas sobre Hip-Hop, axé-music e identidades
juvenis em meio a antinegritude da Capital Afro
Gabriela Costa
1
Gustavo Rossi
2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v15i28.65546
Resumo: Este artigo tem como objetivo refletir sobre as implicações da consolidação do axé-music
enquanto cultura juvenil e música baiana hegemônica em relação ao Hip-Hop, bem como suas
implicações para a formação de identidades juvenis dos anos 1990. Tendo em vista que o axé e o Hip-
Hop emergem na cidade de Salvador no mesmo período, investigamos, por meio de revisão
bibliográfica, trabalho de campo com observação participante e entrevistas a grupos como OPANIJÉ,
o rapper Aspri, do grupo RBF, o Uh!Neto e João Merín. Inicialmente, a primeira geração Hip Hopper
buscou se afastar de referências locais que marcam a estética da baianidade, como religião de matriz
africana, indumentárias e música percussiva, inspirando-se de forma mais assídua na estética
estadunidense e sudestina, uma vez que a baianidade caracteriza também o movimento axé. Em um
segundo momento, após a primeira década dos anos 2000, os rappers adotaram outro posicionamento,
trazendo para o centro de seus trabalhos o cotidiano e a estética soteropolitanos.
Palavras-chave: Hip-Hop; a-music; antinegritude; identidade; baianidade.
"O Nordeste que vonão viu": notes on Hip-Hop and Identities amidst anti-blackness in the
Afro Capital
Abstract: This article aims to reflect on the implications of the consolidation of amusic as a youth
culture and hegemonic Bahian music in relation to Hip-Hop, as well as its implications for the formation
of youth identities in the 1990s. Considering that axé and Hip-Hop emerged in the city of Salvador in the
same period, we investigated, through bibliographical review, fieldwork with participant observation and
interviews with groups such as OPANIJÉ, the rapper Aspri, from the group RBF, Uh! Neto and João
Merín. Initially, the first generation of Hip-Hoppers sought to distance themselves from local references
that mark the aesthetics of Bahianness, such as religion of African origin, clothing and percussive music,
drawing more inspiration from American and Southeastern aesthetics, since Bahianness also
1
Mestranda nos Programas de Pós-Graduação em Antropologia Social e Demografia da Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: costagabrielaconsultoria@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0009-0001-1983-5927.
2
Doutor em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Docente do
Departamento de Antropologia da UNICAMP. Foi Professor Visitante no Departamento de Spanish and
Portuguese Languages and Cultures da Universidade de Princeton. Coordenador do Bitita (Núcleo de
Estudos Carolina Maria de Jesus - IFCH/Unicamp. E-mail: lrossi@unicamp.br. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-7096-9966.
Recebido em 29/11/2024, aceito para publicação em 22/12/2024.
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COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
characterizes the axé movement. In a second moment, after the first decade of the 2000s, rappers
adopted another position, bringing the daily life and aesthetics of Salvador to the center of their work.
Keywords: Hip-Hop; axé music; anti-blackness; identity; bahian identity.
"O Nordeste que você não viu": notas sobre Hip Hop y identidades en medio de la anti-negritud
de la Capital Afro
Resumen: Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre las implicaciones de la consolidación de
la música axé como cultura juvenil y música bahiana hegemónica en relación al Hip-Hop, así como sus
implicaciones para la formación de identidades juveniles en la década de 1990. Considerando que el
axé y el Hip-Hop surgieron en la ciudad de Salvador en el mismo período, investigamos, a través de
revisión bibliográfica, trabajo de campo con observación participante y entrevistas a grupos como
OPANIJÉ, el rapero Aspri, del grupo RBF, Uh!Neto y João Merín. . Inicialmente, la primera generación
del Hip Hopper buscó distanciarse de las referencias locales que marcan la estética de la bahianidad,
como la religión, la vestimenta y la música de percusión de base africana, inspirándose más en la
estética estadounidense y del sudeste, ya que la bahianidad también caracteriza al movimiento axé. En
un segundo momento, después de la primera década del 2000, los raperos adoptaron otra posición,
llevando la vida cotidiana y la estética de Salvador al centro de su trabajo.
Palabras clave: Hip-Hop; a-music; anti-negritud; identidad; baianidad.
"O Nordeste que você não viu": notas sobre Hip-Hop, axé-music e identidades
juvenis em meio a antinegritude da Capital Afro
Salvador, onde a pele habita a
alma
a cada grito um novo karma,
na minhoca de metal
propaganda enganosa sobre o
carnaval
maior tecnologia é o homem e
o tambor
Salvador, onde o ouro habita a
pele
e as coisas vestem os
caboclos
onde o mal tem nome de
jogador e joga bem
com as armas que tem. Divide
espaço com o coronel
que herdou a maldade como
troféu.
A SEMOP rouba dos
trabalhadores ambulantes
que são artistas. Conhecem
cada esquina, sustentando
suas famílias.
"Semop II"
de João Merín (2022)
Introdução
Cartazes sobre o carnaval
permeavam toda a cidade de Salvador
desde janeiro, neles, estampado o título
"Capital Afro". Ao longo de sua história,
a capital baiana recebeu muitos nomes:
Cidade do Salvador, segundo o
professor Milton Santos; Cidade da
Música, nos trabalhos sobre arquivos,
memória e museus. Propomos, aqui,
que apesar de todos esses nomes, nos
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sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
atentemos às memórias subterrâneas
(Pollak, 1989) que nos ajuda a
compreender as dissimulações, os
maus gostos e as contradições que
compõem a história de Salvador, cuja
produção musical e estética funciona
como um eixo para pensar as formas
essas memórias incidiram sobre a
construção de identidade da juventude
Hip Hopper soteropolitana dos anos
1990.
O objetivo deste artigo é refletir
como a antinegritude, que se manifesta
na estética da baianidade e do axé-
music, incidiu sobre as identidades dos
jovens que construíram e vivenciaram o
Hip-Hop de Salvador ao longo dos anos
1990, mas também a forma como se
deu a virada de posicionamento desses
jovens a partir da primeira década de
2010.
Tem-se em vista responder à
pergunta: quais foram as implicações
da consolidação do axé-music
enquanto cultura juvenil e música
baiana hegemônica em relação ao Hip-
Hop em Salvador? Esta pergunta e os
3
Essas reflexões em torno da baianidade, da
música baiana e do axé foram fomentadas a
partir das entrevistas feitas durante o trabalho
de campo, mas não serão centrais na
dissertação. O que é justificado pelo fato de que
o mestrado de Gabriela Costa é voltado para a
objetivos deste texto nascem a partir de
inquietações que foram fomentadas
pelas rebarbas do material de campo
3
da pesquisa de mestrado de Gabriela
Costa e de seu trabalho de campo, em
Salvador, onde vem realizando
entrevistas com os rappers Aspri, do
grupo Rapaziada da Baixa Fria (RBF),
Uh!Neto e João Merín, e com membros
dos grupos como OPANIJÉ
4
e Simple
Rap’ortagem, em diálogo articulado
com a imersão nos discos desses
rappers interlocutores e de artistas
chaves da música baiana. De antemão,
vale sinalizar que existe uma relação
estabelecida entre axé-music e o que é
chamado de música baiana.
Sabe-se que o campo de
estudos em Hip-Hop é relativamente
jovem no Brasil e ainda caminha para
sua consolidação. A forma como a
cultura Hip-Hop chega e nasce em
Salvador é muito parecida com outros
lugares do país que contam com
vasta bibliografia (Hilton, 2021). Ou
seja, bailes blacks e soul music eram o
rolê dos jovens, e filmes como Beat
trajetória do rapper João Merín, que não é da
primeira geração do Hip Hop de Salvador.
4
Organização Popular Africana Negros
Invertendo o Jogo Excludente.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Street (1984) e Wild style (1983) foram
os primeiros vetores de disseminação
de informações sobre o Hip-Hop
(idem), bem como cumpriram o papel
de serem as primeiras referências para
jovens que viriam a se forjarem como
Hip-Hoppers. Contudo, o que diferencia
Salvador de outros territórios do Sul e
Sudeste do país são fatores como: 1) o
perfil demográfico da cidade; 2) o modo
como assimilação e miscigenação
cultural foram mobilizadas e
implementadas no projeto de cidade
antinegra
5
; e 3) o axé-music nascido na
no mesmo período que o Hip-Hop e que
se consolida enquanto cultura juvenil
hegemônica. Portanto, a cidade de
Salvador e sua cultura Hip-Hop
carregam diversas particularidades que
ainda não foram devidamente
estudadas. O que propomos, portanto,
é investigar quais foram as implicações
epistemológicas e culturais destas
particularidades de Salvador ao longo
da história do movimento Hip-Hop, e
produzir contribuições para esse
5
Destaque para o papel da Faculdade de
Medicina nos debates em torno de raça, negros
brasileiros e identidade nacional no final do
século XIX e começo do século XX. Nina
Rodrigues, por exemplo, trabalhou na
Faculdade de Medicina, conquistou seguidores
e esteve profundamente interessado na
campo de estudos olhando para além
do eixo hegemônico Centro-Sul.
Tais questões nos remetem a
uma antiga discussão da Antropologia,
mas que tem recebido pouca atenção
nos estudos de Hip-Hop brasileiros: ao
reconhecer São Paulo e Rio de Janeiro
6
como cenas hegemônicas ou mesmo
“universais” (a única forma de se fazer
rap nacionalmente), artistas de outros
territórios e que experimentam
diferentes grooves e referências
cotidianas acabam sendo interpretados
como particulares ou regionais.
Algo que tem sido discutido
sob a ótica de gênero quando
tensionamos o que estamos chamando
de "rap" e por que o uso da
classificação "rap feminino" - que a
entender que o universal do rap são os
homens e as mulheres que cantam rap
são o particular. existem pesquisas
também que buscam defender que raps
produzidos a partir de referências de
religiões de matriz africana são "Afro
raps" e não apenas "rap" (Cruz, 2022).
Contudo, como argumenta Rose
construção do imaginário racial da Bahia e de
Salvador. Rodrigues foi um dos agentes
fundadores da concepção de Antropologia
Brasileira.
6
Em alguns casos e aspectos poderíamos
incluir RS e Brasília também.
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sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
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Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
(2022), compreender que o rap e,
consequentemente, o Hip-Hop, nascem
a partir de matrizes culturais afro-
diaspóricas faz com que não tenha
relevância essa diferenciação
conceitual (afro rap ou rap).
Entendemos, portanto, que é
preciso descentralizar do Sudeste o
que pode ser compreendido como Rap
Nacional. Afinal, sendo o Brasil um país
com dimensão continental, seria
inconcebível afirmar que apenas dois,
dos seus vinte e seis estados, fossem
capazes de representar uma estética
nacional sobre o que é o Hip-Hop ou
sua história no país. Uma abordagem
que se faz, portanto, a contrapelo de
categorias de nomeação veiculadas e
implicadas pelo poder da indústria
cultural e musical, e que por isso
mesmo chama a atenção para a
importância de pesquisadores e
a(r)tivistas não corroborarem de forma
acrítica com os critérios normativos
utilizados para legitimar o que chamam
7
A 34a Reunião Brasileira de Antropologia, que
aconteceu em 2024 na Universidade Federal
de Minas Gerais, contou com o GT 93: Ritmos
negros e periféricos: Hip-Hop, Música e
Identidades, e nele uma pessoa apresentou
sua pesquisa dizendo que escolheu Emicida
como uma representação do Rap nacional
devido a sua expressividade. Neste contexto,
foi colocado questões como: que
expressividade é essa do Emicida? Quais
(ou o que pode ou não ser chamado) de
rap e Hip-Hop. A bibliografia dos
estudos de Hip-Hop no Brasil ainda se
concentra de forma persistente em São
Paulo e olha para o Hip-Hop de outros
territórios como regionalistas
7
. Se o
Hip-Hop diz respeito às miudezas das
vivências cotidianas, é necessário
reconhecer que o cotidiano não é
universal, e sim, particularizado pelas
dinâmicas próprias do território. Com
esta contextualização, convido as
leitoras e leitores a olharem, neste
momento, para Salvador (BA).
Sugiro pensarmos identidades
negras a partir do emaranhado
complexo do contexto histórico que
ambienta as existências negras em
Salvador, bem como as culturas juvenis
que estão sendo privilegiadas neste
artigo, sob a inspiração teórica do
afropessimismo: abordagem que
compreende a fratura colonial
territorializada nas plantations
enquanto um marco epistemológico
indicadores foram utilizados para chegar a essa
conclusão? Ou seja, se não é exposto o que
respalda a escolha, o que a entender é que
a representação, ou a cara, do rap nacional é
um homem cis do Sudeste porque sim. Em
outras palavras: o Sudeste seria, neste caso, o
universal do Hip-Hop brasileiro.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
que despossui o negro e o define
enquanto nada. Para tal perspectiva,
marcar as plantations enquanto tempo-
espaço de despossessão negra
significa também pensar a dimensão do
capitalismo moderno enquanto um
marco de exploração da terra, da vida,
de pessoas e o experimento de
monocultura em larga escala mais letal
da história do planeta (Ferdinand, 2022;
Wynter, 1971a).
Dizer que o negro é despossuído
de si significa dizer que o processo
colonial e a escravização tiveram
implicações subjetivas, psicológicas,
ontológicas e epistemológicas, bem
como culturais e Antropo-lógicas
(lógicas humanas) nas pessoas negras.
A despossessão diz respeito ao
processo de transformar o negro em
commodity, bem como suprimir sua
agência, seu direito as miudezas
sensíveis existenciais e introduzir em
seu inconsciente uma autovisão de
inferioridade em relação ao Sujeito
Branco (Fanon, 2007).
A despossessão, portanto,
significa não possuir a si mesmo e, por
isso mesmo, virar coisa, porque o negro
na plantation é commodity do homem
branco, o qual reivindica seu direito
exclusivo à sujeitude, de possuir a si
mesmo e ao Outro, bem como para
nomear e representar o mundo e a
humanidade (Homem). A antinegritude,
por sua vez, é a produção subjetiva e
ontológica do Negro enquanto “o
Outro”, fato que faz com que a
antinegritude extrapole o próprio
racismo (Vargas, 2020) e seja relevante
também na abordagem afropessimista.
É neste sentido que o conceito
de groove faz-se central neste artigo
pois à mesma medida que falamos
sobre despossessão, falamos também
sobre reinvenção de sentidos de
humanidade, para os quais a cultura é
uma dimensão privilegiada para refletir
sobre as possibilidades inventivas da
negritude de refazer-se enquanto
gente, como sugerem Sylvia Wynter
(1971a, 1971b) e Osmundo Pinho
(2021). Para Wynter, em Black
Metamorphosis (1971a), reinventar a
humanidade negra requer (re) invenção
cultural e rebelião, pois a humanidade
é reinventada a partir da cultura, fato
que diz respeito à reivindicação das
sensibilidades. O groove é uma forma
de se rebelar contra o
desmantelamento cognitivo
monológico dessas plantations que
despossuem o negro de si, lançando-o
na ordem da natureza e, portanto,
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
destituindo-o de cultura e do direito às
dimensões sensíveis que apenas a
cultura tem poder de produzir. Groove,
portanto, no entender de Wynter, seria
o ritmo, as formas das ondas sonoras,
a sonoridade que mexe com o
sentimento das pessoas, que nos toca
na dimensão mais íntima da nossa
existência fomentando sentimentos
diversos, como raiva, felicidade,
esperança, coragem e rebelião.
a sica, portanto, não é
apenas uma invenção que
subverte e desfaz o senso
comum de trabalhos sobre
racismo; música, produção
musical e a relação entre
música e groovar música,
juntos, demonstram políticas
subversivas de histórias
compartilhadas, atividades
comunitárias e possibilidades
colaborativas nas quais é
preciso que todos participem
do conhecimento (McKittrick
apud Wynter, 2021, p. 163)
8
.
Tais considerações sobre a
fratura colonial das plantations e o
processo de despossessão negra, são
convites de inspiração para uma
reflexão a respeito do lugar do negro
(Gonzalez, 1982; Carneiro, 2023;
Nascimento, 1978:2016) e sobre as
identidades negras no contexto
8
Tradução livre. Opto por utilizar "groovar" no
português, em vez de ouvir ou escutar
(música), pois entendo que, para Wynter, existe
brasileiro e, em particular, o baiano dos
anos 1990 a partir do axé music e do
Hip-Hop. Desde a pré-abolição,
intelectuais e políticos se engajaram
em reflexões em torno da identidade
brasileira. Com o trabalho de Gilberto
Freyre, a identidade brasileira e a arte
nacional tomaram outras dimensões
que se pretendiam apaziguadoras das
desigualdades raciais. Tem-se como
hipótese que Salvador é um micro-
retrato do Brasil, tendo em vista que foi
a primeira capital e o principal porto do
país por mais de 200 anos, é o território
que acomodou de forma mais profunda
a cultura negra e afro-brasileira. A
consolidação da baianidade por meio
da literatura com Jorge Amado, da
música com Dorival Caymmi e das
artes plásticas com Carybé, nos dão
também pistas para compreender os
processos de introdução de
epistemologias negras positivadas
(apesar de, em alguns casos,
idealizadas ou estereotipadas), bem
como de suas práticas culturais
(Queiroz, 2019).
uma dimensão mais íntima e sensível em to
groove que escutar ou ouvir não dão conta.
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transformações da cultura")
Inventividade negra e
sobrerrepresentação branca
Até final dos anos 1980 os
blocos afro trabalhavam de forma
voluntária e tocavam o ano todo sem
receber cachês (Guerreiro, 2000). Os
modos de habitar a cidade de Salvador
mantinha um diálogo muito íntimo com
os modos autorizados de festejar e ser
feliz na cidade, especialmente porque
corpos negros historicamente foram
despossuídos pela escravização, e no
pós-abolição mantiveram-se
despossuídos de cidadania pois os
festejos da abolição eram entendidos
como imoralidade, paixões e
incapacidade de partilhar dos valores
civis. Portanto, até o boom do axé-
music haviam carnavais negros e
carnavais brancos e pós axé, pode-se
dizer, em alguma medida, que esta
segregação racial pretendeu ser
dissolvida a partir de antigas
estratégias de "miscigenação"
(Albuquerque, 2009).
Sobre os carnavais brancos dos
anos 1980, Jonga Cunha (2008) no
livro "Por trás dos tambores" descreve
o nascimento do axé a partir do que foi
sua experiência enquanto jovem e
músico desta época. O autor narra que
é como se a inventividade da música
baiana tivesse tido um hiato durante a
ditadura militar, mas que os rumores da
cidade indicavam que algo grande
estava no forno (p.32). Através do
curso de percussão que a UFBA
organizou com mestres de diversos
países da América Central, músicos da
cidade com diferentes perfis foram
introduzidos à música percussiva e a
instrumentos que, no Brasil, foram
introduzidos como particulares dos
blocos afro e axé music, como timbau e
bongôs.
É interessante como Cunha
deixa claro que até metade desta
década, o carnaval de Salvador não era
veiculado e tampouco fazia parte do
circuito turístico Rio-São Paulo, bem
como o autor ressente uma suposta
ressaca criativa durante a ditadura, o
que nos leva a crer que ele não
reconhece a inventividade dos blocos
afro, que começam a ser fundados nos
anos 1970.
em 1982, blocos passaram a
ser formados por herdeiros de uma
certa elite e classe média consolidada,
com músicos cujo perfil incluía
experiências na Europa e concursos de
bandas desde o ensino médio em
escolas particulares. Neste sentido,
Traz-os-montes, bloco e banda que
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Jonga Cunha foi integrante e fundador,
formou-se no começo desta década
com agenda garantida para fora da
Bahia. Com tais informações, nos
interessa compreender o que no
mercado da música que para algumas
bandas foi tão fácil se lançar, enquanto
para outras bandas e blocos afro não foi
e não é, até hoje. A Guerreiro afirma:
Antes de a produção musical
dos blocos afro penetrar na
indústria fonográfica, o
mercado baiano estava
dominado pela música
carnavalesca produzida pelas
bandas de blocos de trio
elétrico, que podem ser vistas
como contraponto à produção
musical dos grupos negros. E
embora houvesse uma
inevitável troca de
informações, o meio musical de
Salvador, até 87, estava
segmentado em espaços
musicais negros e brancos, e
enquanto os grupos brancos
estavam no show biz, gravando
discos, fazendo shows,
compondo a programação das
rádios, os grupos negros
estavam midiaticamente
invisíveis, na periferia do
mundo da música (p.119).
A segregação racial do carnaval
tornava-se mais evidente nas avenidas
9
Brancopia segundo Paterniani (2022) e Alves
(2020) diz respeito ao sonho branco de
seguridade em meio a uma cidade em que
existem pessoas negras. Neste sentido, a
brancopia é o tempo todo forjada, construída
por meio de muros altos e com arames
farpados, ou sistemas de segurança high-tech,
com os blocos de trio elétrico privados,
sobretudo porque diz respeito à
privatização de uma festa popular, mas
também e principalmente por se tratar
da privatização do principal espaço
público que todos acessam, cidadãos
ou não: a própria rua. Este formato de
bloco de trio consiste, basicamente, em
um trio elétrico no centro com a banda
deste bloco, foliões caracterizados com
abadás acompanhando o trio e, ao
redor dos foliões do bloco, encontram-
se os cordeiros, profissionais mais mal
pagos do carnaval, segurando as
cordas que delimitam o espaço dos
foliões do bloco e dos “pipocas”; isto é:
público não pagante que vai curtir o
carnaval do lado de fora das cordas do
bloco, acompanhando o trio estando
mais distante. Ou seja, mimetizam nas
formas de habitar o espaço urbano e o
carnaval uma brancopia
9
. Guerreiro
indica os conflitos que giram em torno
destes blocos de trios privados, pois
mesmo que não de forma explícita,
existiam critérios raciais para aceitar
seus afiliados.
ou por meio de outras estratégias de vigilância,
policiamento e segregação, que delimitam onde
e quem pode circular por determinados
espaços urbanos.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Os blocos afro e blocos de trio
elétrico se diferenciam entre si, além
dos critérios raciais, a partir dos modos
de ocupar a cidade. Ademais, a
indústria fonográfica tinha muitas
limitações relacionadas à capacidade
de captar a sonoridade dos tambores
com qualidade, até porque neste
momento tinha-se menos tecnologia do
que atualmente. Os instrumentos
percussivos ainda não tinham passado
por modificações, importantíssimas na
otimização das apresentações dos
blocos, na forma de captar som, e
também na facilitação do transporte.
Em Salvador, Wesley Rangel (WR) foi
o primeiro a gravar samba-reggae em
estúdio, em 1987, com o disco "Egito,
Madagascar", do Olodum, e este
lançamento foi um importante marco
para a música baiana.
Evidentemente muitas trocas e
circulações já existiam, mas a inserção
do samba-reggae na indústria
fonográfica foi crucial para o que viria a
ser o axé-music. A burguesia e as
classes média e alta brancas
soteropolitanas, que até então não
consumiam e não eram atraídas pelo
carnaval negro, voltaram seus olhos
para a inovação harmônica casada com
o samba-reggae para forjar, então, uma
nova forma de fazer música. Razão
pela qual Goli Guerreiro (2010) irá dizer
que o axé é um ritmo mestiço, que
emerge no encontro de dois carnavais,
o negro e o branco.
Contudo, temos de fazer
ressalvas acerca deste encontro:
primeiro, porque ao longo de sua
pesquisa, Guerreiro evidencia que
havia circulação de artistas brancos
socialmente abastados interessados no
que os blocos afro estavam produzindo,
mas que não estavam monetizando.
Segundo, porque para falarmos sobre
encontros, é necessário pensar sobre
suas assimetrias de poder. Se as
bandas de trio elétrico tinham agenda
de shows e recebiam cachês enquanto
os blocos afro eram marginais até
mesmo no contexto de Salvador, não
podemos afirmar que não existiam
desproporcionalidades de poder em
relação a raça e classe. O axé-music,
de fato, parece ter se prestado a um
discurso racializado conciliador de
carnavais, ao mesmo tempo em que
inaugurou novas formas de racismo,
despossessão e marginalização
intelectual e inventiva de artistas
negros.
O axé alcançou prestígio
nacional e se consagrou como música
221
COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
popular brasileira nos anos 1990, se
levarmos em consideração cópias de
discos vendidos, mobilidade dos
artistas e rentabilidade na indústria
fonográfica, alcançando inclusive
canais fechados. Evidentemente este
processo de consolidação do axé foi
permeado também de duras críticas de
artistas da MPB, como Dorival Caymmi
e Carlos Lyra (Guerreiro, 2010). A
consolidação do axé no mercado da
música também situou Salvador
enquanto roteiro turístico durante o
carnaval. Conflitos de raça e classe se
atualizaram e o carnaval ficou cada vez
mais policiado: em 29 de junho de
1990, por meio da Lei 4.103, funda-
se a Secretaria Municipal de Ordem
Pública (SEMOP). Dentre as
atribuições óbvias da SEMOP, o rapper
João Merín
10
salienta também a
vigilância dos vendedores ambulantes,
o que renova as formas de vigilância da
população negra na cidade antinegra.
Festa de largo, vendendo
produto
Chamado ambulante, eu sou
sub-humano
Semop tomou meus bagulhos,
10
João Merín é um rapper de Salvador, mas
não é da primeira geração do Hip Hop. Ele
começou a se aproximar do movimento na
primeira década dos anos 2000, mas os
trabalhos solos mais emblemáticos datam em
2018.
bebê
eu só queria te dar um pisante.
Eu achando que ia sair com a
gata,
fui saqueado, isso é tão
frustrante
"Semop"
de João Merín (2019)
Pós-axé, pode-se dizer, em
alguma medida, que a segregação
racial do carnaval pretendeu ser
dissolvida ou, no mínimo, amenizada a
partir de elaborações generalizantes
acerca da música baiana,
desdobrando-se posteriormente em
certas noções sobre a singularidade da
baianidade; isto é: uma suposta
singularidade baiana por meio da
centralidade da cultura afro-brasileira e
artes inspiradas nas religiões de matriz
africana, expressadas pela literatura,
culinária, indumentária essencializada
na figura das baianas de acarajé,
capoeira, e, mais pra frente, por meio
do axé. As experimentações sonoras
do axé-music eram profundamente
inspiradas pela música afro-
percussiva
11
e adicionavam
instrumentos harmônicos com a
percussão. O argumento de Guerreiro é
11
Vários artistas como Sarajane afirmam que
gostavam de circular pelos ensaios dos blocos
afro para “colher” novas ideias (Guerreiro,
2010).
222
COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
que o axé uniu os carnavais branco e
negro, desde a composição sonora até
as formas de habitar a cidade, e por
isso nasceu como um ritmo mestiço,
miscigenado.
Neste mesmo contexto em que o
axé se consolidou nacionalmente, para
os artistas negros, o mercado
internacional foi mais receptivo por
meio da world e ethnic music.
Margareth Menezes, por exemplo, foi a
primeira artista a gravar "Faraó
Divindade do Egito" (1987), música que
trouxe para o Olodum a prestigiosa
marca de inventores do samba-reggae
e que colocou o bloco em um lugar de
relevância - o que, em tese, colocaria a
cantora em condições para ser um
sucesso nacional da música baiana,
como Ivete Sangalo e Daniela Mercury.
Contudo, no cenário nacional, os
discos de Margareth Menezes não
tiveram grandes números de vendas,
com poucos shows, diferentemente de
suas conterrâneas brancas, como
12
Dados retirados do Spotify em maio de 2024.
13
Mestre Jackson foi percussionista do Olodum
bem no comecinho do bloco e narra que esteve
ao lado de Neguinho do Samba, seu cunhado,
durante o processo criativo do que viria a ser o
samba-reggae. É um mestre de percussão
muito expressivo na música baiana.
14
Mestre Jorjão Bafafé é um dos maiores
mestres da percussão soteropolitana vivo. Foi
Daniela Mercury, que chegou a vender,
no mesmo período, 1 Milhão de cópias
do disco O Canto da Cidade (1992). Em
uma linguagem mais recente para
medir a adesão do público, no Spotify
Ivete Sangalo tem 4.8Mi de ouvintes
mensais; Daniela Mercury, 490,8 mil; e
Margareth Menezes apenas 162,3 mil
ouvintes mensais
12
. No cenário
internacional, com a world music, em
contrapartida, Margareth Menezes
ganhou grande destaque e
reconhecimento (Guerreiro, 2010).
Ademais, mestres da música
percussiva como Jackson
13
e Jorjão
Bafafé
14
tiveram um ganho de
reconhecimento expressivo e tiveram
grandes contribuições para a
consolidação do axé, mas existem
outras questões complexas em torno
da contribuição de artistas negros
15
.
Axé, Hip-Hop e a Bahia que não era
para sua gente
fundador do Afoxé Badauê, do bloco Ókánbì, e
teve expressiva contribuição na banda do Ara
Ketu, inclusive circulando internacionalmente
por meio dos arranjos de Jimmy Cliff.
15
Parte desta discussão Gabriela Costa está
tentando desenvolver em sua pesquisa de
mestrado que deve ser defendida em 2025.
223
COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Apesar do axé ter nascido
enquanto um gênero musical
underground, consolidou-se em pouco
tempo como mainstream da cultura
juvenil soteropolitana, contribuindo
para obliterar culturas juvenis que não
se organizavam pela chamada "música
baiana": a galera do rock
16
e das
músicas urbanas, que tinham como
referência a cena musical
estadunidense como o movimento dos
bailes black inspirados no miami bass,
original funk, funk carioca, rap, entre
outros
17
. Com este repertório, o
movimento Hip-Hop da capital afro
nasce no final dos anos 1990,
buscando ao ximo diferenciar-se do
axé, no qual identificavam uma música
baiana performada e materializada por
corpos brancos. A juventude desta
primeira geração do Hip-Hop, como
OPANIJÉ e Rapaziada da Baixa Fria
(RBF) dialogavam, inicialmente, com
referências estadunidenses,
influenciados por filmes como Beat
street (1984) que ganhava grande
circulação na época. Mas também a
partir de referências dos próprios bailes
e rap sudestinos, especialmente do Rio
16
Galera do rock é um conceito utilizado pelos
interlocutores e contempla tanto artistas como
apreciadores do gênero musical.
de Janeiro e São Paulo. O mais
próximo de influências locais das quais
os grupos se aproximavam era o
reggae.
Outros aspectos da dinâmica de
desenvolvimento do rap e da economia
nacional ditavam também as
possibilidades (ou impossibilidades) de
consumo de Hip-Hop em Salvador,
como, por exemplo, o fato de que
grande parte dos estúdios que já
estavam gravando e circulando discos,
fitas e CDs de rap se concentravam no
Rio de Janeiro ou em São Paulo, assim
como as principais lojas de discos que
conseguiam importar os lançamentos
da cena estadunidense. No mais,
grande parte dos grupos e rappers de
Salvador entrevistados mencionam
Racionais MC's, Facção Central,
Thaíde e DJ Hum, MV Bill, Gabriel o
pensador e Marcelo D2 como artistas
que marcaram suas trajetórias.
Desde 1979 os bailes black
tocavam muito original funk e miami
bass (Sansone, apud. Hilton, 2021), até
que em meados dos anos 1990 o funk
carioca passou a ser uma das
referências no repertório dos DJs,
17
Informações coletadas por meio de entrevista
com o grupo de rap OPANIJÉ.
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COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
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Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
assim como as músicas românticas
(Hilton, 2021), que preparavam o
terreno (e as pistas) para os casais
apaixonados. O rap, segundo um dos
membros do grupo OPANIJÉ, era
absolutamente underground, assim
como o rock, sendo que ambos ficavam
sob o guarda-chuva da música
alternativa, entendendo "alternativo"
enquanto tudo aquilo que não fosse
entendido como “baiano”. Tendo em
vista a movimentação de artistas e
produtores do axé-music em torno da
construção do que é música baiana e a
disputa pela baianidade enquanto
marcador de identidade territorial (e
regional), OPANIJÉ nos indica que
estava sendo elaborado um imaginário
de "uma Bahia que não era pra gente" -
para as pessoas negras.
Ademais, o advento da
soberania do axé fez com que a
primeira geração de Hip-Hoppers
buscasse ao máximo se diferenciar
deste gênero, que, para além da
música, estava consolidando a
percepção nacional sobre o que é a
música baiana e baianidade. A fim de
recusar uma essencialização da
música baiana em torno do axé e falar
a mesma linguagem do Hip-Hop que
estava sendo realizado em São Paulo e
Rio de Janeiro, o rap produzido na
Bahia muito se inspirava na forma de
fazer rap de artistas e grupos como MV
Bill, Gabriel O Pensador, Facção
Central e Racionais MC's. No entanto,
o contexto musical de Salvador fazia
com que o rap tivesse que disputar
lugar de música eletrônica, uma vez
que grande parte dos grupos e artistas
se apresentavam com samples ou com
o instrumental gravado. A correlação
criada em torno do axé enquanto
sinônimo de música baiana, e do rock,
rap e outros gêneros musicais como
“alternativo”, colocou, pode-se dizer,
para o Hip-Hop de Salvador e do
Recôncavo um problema de forma e
não de conteúdo. E para disputar
narrativas políticas em torno de
identidades negras e juvenis, o pan-
africanismo emergiu, neste cenário,
enquanto contracultura da juventude
Hip-Hopper.
De 2010 para cá, grupos da
primeira geração do Hip-Hop baiano
começaram a repensar suas
referências, como por exemplo o RBF
(Rapaziada da Baixa Fria), Fúria
Consciente e OPANIJÉ que, em 2020,
começaram o projeto "Ancestralidade
Musicalizada", lançando músicas que
se baseiam em religiões de matriz
225
COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
africana: na composição das letras, na
indumentária dos rappers, na capa dos
EPs e na composição melódica que
mescla atabaques e sons eletrônicos.
Uh! Neto, filósofo, doutor em educação
e rapper de Cruz das Almas (BA),
relatou em entrevista que, quando era
mais jovem, sua música tinha uma
abordagem mais parecida com o
Facção Central, mas ele se sentia
esgotado quando acabava de se
apresentar; após algumas orientações
ancestrais, se reencontrou a partir de
uma outra forma de fazer rap, trazendo
para o centro de suas referências a
vivência do interior baiano e a sua
relação com a ancestralidade e as
religiões de matriz africana. Simples
Rap'ortagem brinca com temáticas e
diferentes levadas, se apresentam em
banda e transitam por vários assuntos
e formas de rimar, e João Merín é
assertivo a respeito das suas
influências sonoras do pagodão, dos
blocos afro e da música eletrônica.
No final das contas, no mesmo
território e/ou região (levando em
consideração o recôncavo baiano
também), encontra-se diferentes
formas de fazer e viver o rap, ora
dialogando e buscando brechas no
mercado, ora recusando-o; diferentes
referências, pontos de partidas, flows,
vivências e elaborações sobre o que é
(e o que pode ser) música(s) baiana(s).
Todos os grupos e rappers aqui
mencionados, pode-se afirmar, não
estão interessados em apenas disputar
os sentidos de música baiana, mas
também disputam as questões raciais e
as referências afro-brasileiras que
rodeiam o debate sobre música baiana
enredado, atualizado e reinventado em
uma nova roupagem pelo axé.
Identidades, cultura popular e
músicas negras
Tendo em vista culturas
nacionais e o debate em torno da
identidade, Hall (2019) traz para o
centro do argumento o discurso
enquanto um dispositivo de poder que
costura as diferenças, transformando-
as em unidades. Em Cultura Brasileira
e Identidade Nacional, Renato Ortiz
(1999: 2006) nos pistas para
compreender tanto o processo de
constituição da cultura brasileira e
identidade nacional quanto a
importância do debate acerca de
identidades negras. Uma vez que falar
em cultura brasileira é falar sobre
poder, Ortiz defenderá que "a
identidade nacional está
226
COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
profundamente ligada a uma
reinterpretação do popular pelos
grupos sociais e à própria construção
do Estado brasileiro" (p.8).
Em outras palavras, o Estado se
constitui à luz de relações assimétricas
de poder, articulando-se em torno da
pretensão de suprimir diferenças
intrarregionais e demarcando suas
diferenças em relação às identidades
de outros países. Processo que foi
levado à máxima no final do século XIX
e início do século XX com intelectuais
brasileiros preocupados com a
transformação da colônia em nação.
Mariza Corrêa nos algumas pistas
sobre este contexto pós-abolição, tão
central para compreender as
articulações entre identidade nacional e
produção de conhecimento sobre as
relações raciais brasileiras:
Em termos teóricos, a ciência
da época tinha preparado
terreno onde o racismo se
acomodava muito bem. Nina
Rodrigues parece apenas ter
levado às últimas
consequências os supostos
científicos de seu tempo. Quem
sabe por ter tentado comprovar
empiricamente as crenças de
sua geração é que recebeu
críticas dos que preferiam
18
Importante mencionar que Nina Rodrigues
atuou na cidade de Salvador e seu trabalho
mais emblemático (O fetichismo do Negro
brasileiro) foi feito em terreiros de candomblé.
deixar ao futuro a solução dos
problemas que enunciaram, ou
que tratavam eles num nível
menos científico (Correa, p. 67,
1998)
18
.
No contexto de pós-abolição, o
negro aparece como fator dinâmico na
vida social e econômica brasileira, e
marca a reavaliação de sua posição
pelos intelectuais e produtores de
cultura que, até então, no Romancismo,
vinham "privilegiandos" narrativas tão
(românticas quanto racistas) em torno
dos indígenas. A questão racial,
portanto, passa a ser associada ao
progresso da humanidade, e o negro e
o indígena o compreendidos como
entraves civilizatórios. Ortiz prossegue:
"a temática da mestiçagem é neste
sentido real e simbólica; concretamente
se refere às condições sociais e
históricas da amálgama étnica que
transcorre o Brasil, simbolicamente
conota as aspirações nacionalistas que
se ligam à construção de uma nação
brasileira".
Em meio a este contexto do final
do século XIX, estudos em torno de
raça antropológica
19
estavam em alta
19
Ortiz apoia-se em Silvio Romero para afirmar
que esta noção de raça antropológica diz
respeito a parâmetros biológicos e qualidades
psicossociais das nacionalidades.
227
COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
em meio aos recentes Estados-Nação
que buscavam consolidar suas
identidades pelas Américas e Caribe.
As ideias sobre mestiçagem emergem
enquanto salvação para a degeneração
das características do povo
afrodescendente e aqui que chamo a
atenção para o trabalho de Gilberto
Freyre. Ortiz irá afirmar:
A ideologia da mestiçagem,
que estava aprisionada nas
ambiguidades das teorias
racistas, ao ser reelaborada
pode difundir-se socialmente e
se tornar senso comum,
ritualmente celebrado nas
relações do cotidiano, ou nos
grandes eventos como o
carnaval e o futebol. O que era
mestiço, torna-se nacional. [...]
Ao retrabalhar a problemática
da cultura brasileira, Gilberto
Freyre oferece ao brasileiro
uma carteira de identidade
(2006, p. 41 e 42).
Freyre, portanto, não pensou o
Brasil a partir da raça antropológica,
mas sim, a partir da cultura, como Franz
Boas, e “positivou” (de forma
romantizada e equivocada) as
qualidades do mestiço, produzindo um
distanciamento entre biológico e social.
Neste sentido, torna-se nebuloso as
fronteiras do pertencimento racial e
inaugura-se uma identidade nacional
mestiça que, em outras palavras, passa
a estimar práticas culturais da
população negra e indígena, sem
deixar de marginalizar e produzir
vulnerabilidades para essas
populações. Utilizando palavras de
Ortiz, poderíamos dizer que o desafio
para o movimento negro é pensar como
retomar manifestações negras que
estão "marcadas com o signo da
brasilidade" (p.44, 2006).
Retomo a ideia de que Salvador
pode ser um micro-retrato do Brasil
para pensarmos conflitos raciais,
identidades e mestiçagem. Podemos
afirmar que a construção da baianidade
tem como pano de fundo o mesmo
emaranhado de ideias e pretensões
que a própria brasilidade, uma vez que
"o mito das três raças é neste sentido
exemplar, ele não somente encobre os
conflitos raciais como possibilita a
todos se reconhecerem como
nacionais" (idem). Um exemplo de
como os conflitos raciais são
acomodados sob a ideia de baianidade
pode ser evidenciado a partir da música
"É d'Oxum", de Gerônimo (1985), que à
época, já estava experimentando o que
viria a se consagrar como axé:
Nessa cidade todo mundo é
d'Oxum
Homem, menino, menina,
mulher
Toda essa gente irradia magia
[...]
228
COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
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Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
A força que mora n'água
Não faz distinção de cor
E toda cidade é d'Oxum
Ao afirmar que toda a cidade é
d'Oxum e que a própria orixá não faz
distinção de cor, o cantor tensiona e
tenta dissolver a dimensão negra das
religiões de matriz africana. O mesmo
poderíamos dizer da sica "O canto
da cidade", quando Daniela Mercury
(1992) afirma "a cor dessa cidade sou
eu". E o cantor Saulo Fernandes (2023)
que comunica também esta baianidade
em sua recente música "Bahia Batuque
Orixá":
Sua boca de Rio Vermelho
A Bahia solar no espelho
Amaralina
O sorriso Barra de Ondina
A menina, maré, melanina
Baiana [...]
Deus me livre de não ser
baiano
De não ter carnaval todo ano
De chegar o verão e eu ficar
sem lhe ver
Pula, pipoca
Pula bonito
Quem me pariu?
Bahia, batuque, orixá
Algo inerente ao Hip-Hop no
Brasil é a íntima ligação com a soul
music e a influência dos bailes black no
nascimento do Hip-Hop brasileiro. Ortiz
traz a seguinte provocação:
Quando os movimentos negros
recuperam o soul para afirmar
sua negritude, o que se es
fazendo é uma importação de
matéria simbólica que é
ressignificada no contexto
brasileiro. É bem verdade que
o soul não supera as
desigualdades de classe ou
entre países centrais e
periféricos, mas eu diria que de
uma certa forma ele "serve"
melhor para exprimir a angústia
e a expressão racial do que o
samba, que se tornou nacional
(2006, p.44).
Quando digo provocação, refiro-
me a ideia de que o samba parou de dar
conta da afirmação da negritude,
angústia e expressão racial, como Ortiz
sugere. Discordamos, nesse sentido,
mas chamamos a atenção para a
particularidade de cada cidade do
Brasil que em maior ou menor grau
produz continuidades e
descontinuidades a partir das heranças
culturais locais, bem como renova seus
aparatos e estabelece novas conexões.
No mais, o argumento nos serve para
refletir sobre a identidade Hip-Hopper
construída em Salvador no que diz
respeito a importação de matérias
simbólicas exteriores ao território,
tendo em vista as materialidades locais
da sica baiana e da baianidade que
já não lhe cabiam.
Aspri (RBF) relembra que nos
anos 1990, no início do movimento Hip-
Hop em Salvador, a galera usava touca
e camiseta preta no sol do meio dia de
229
COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
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Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Salvador, e indica como foram muito
influenciados pelo o que estava sendo
produzido no sudeste, se afastando
fortemente da música baiana. O grupo
OPANIJÉ afirma, por outro lado, que o
axé se consolidou como cultura juvenil
mainstream, de modo que não cabiam
outros gêneros musicais produtores de
diálogos com a juventude não tivessem
espaço. Neste sentido, o rap,
classificado sob o guarda-chuva de
música alternativa, dividia lugar com a
galera do rock e da música eletrônica,
onde tudo que não fosse música baiana
era, portanto, música alternativa. Em
um cenário em que a música era um
vetor de forjar identidades e
humanidades, a "soberania do axé"
20
,
para aquela geração de jovens, parecia
significar um afastamento com as
práticas culturais locais; fato que
justifica também a maior atenção para
o sul, sudeste e cenário internacional.
Uma vez que "todas as
identidades estão localizadas no
espaço e no tempo simbólicos" (Hall, p.
41, 2019), a baianidade reivindicada e
monopolizada na sobrerrepresentação
20
Esta expressão foi utilizada pelo grupo e por
este motivo a citamos entre aspas.
21
Pensando aqui estética enquanto conteúdo
discursivo, roupas que utiliza em shows e
branca no axé, significou para a
juventude negra Hip Hopper um
afastamento do que lhes era comum no
que diz respeito ao território e ao
discurso. Contudo, a partir de 2010,
estes mesmos rappers começam a
experimentar novas formas de fazer
rap. Aspri, por exemplo, em nossa
entrevista, apontou para a importância
de descentralizar as referências
estéticas do Hip-Hop do eixo Sul-
Sudeste para ampliar o olhar para
outras culturas populares e referências
do Norte e Nordeste, especialmente
para compreender que existem muitas
formas de fazer rap.
Uh! Neto salienta que o Hip-Hop
teria o objetivo de reconectar as
pessoas, de atentar para si e para a
ancestralidade negra. Elementos que
em sua carreira revelam essas
mudanças de posicionamento, no
sentido de buscar mobilizar novas
linguagem a partir de sua vivência no
interior do recôncavo baiano e nos
aprendizados de terreiro em suas
composições e estética
21
. O grupo
OPANIJÉ grava, em 2012, o disco
referências que mobiliza em videoclipes e
capas de música ou álbuns.
230
COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
"Encruzilhada", que é fortemente
marcado pelo candomblé e pelas
referências sonoras soteropolitanas,
com a presença de Letieres Leite
22
, por
exemplo. O ápice deste movimento
aconteceu durante a pandemia, quando
os grupos RBF, OPANIJÉ e Fúria
Consciente
23
se juntam e começam o
projeto "Ancestralidade Musicalizada",
no qual eles gravam raps e produzem o
videoclipe inspirados, principalmente,
pelas vivências de terreiro e pelo pan-
africanismo.
Considerações finais
Tendo em vista os conflitos
raciais particulares do território de
Salvador, mas os debates acerca da
identidade nacional e cultura brasileira,
foi interesse dos autores refletir sobre
como os jovens de Salvador forjaram
suas identidades em meio aos
dissensos e cinismos da cidade
antinegra e sobrerrepresentação
branca, explorando o groove da música
negra. Este movimento descrito como
22
Letieres Leite foi músico e educador e
expressivamente reconhecido na cidade de
Salvador a partir do estudo da música afro-
percussiva e dos diálogos transatlânticos, em
especial, com a música cubana. Nasceu em
1959 e faleceu em 2021.
23
Fúria Consciente é um grupo de rap que
dialogou e dialoga muito com a galera de
afastamento e reaproximação após
quase 20 anos é particular desta
primeira geração de Hip-Hoppers e não
necessariamente se desdobra nos
jovens de 2024, até porque a nova
juventude está se forjando a partir de
um outro contexto e com um outro
aparato de referências. João Merín, por
exemplo, em 2019 inaugura seu estilo
que mescla pagodão e rap, em 2022
lançou um disco de rap e música
percussiva, com foco especial para o
samba-reggae.
Diante deste contexto de
afastamento e aproximação, vale
destacar ainda os debates que
perpassam, por exemplo, a moralidade
conservadora e machista incrustada no
Hip-Hop do final do século XX. Em
algumas entrevistas, os rappers
destacam, por exemplo, como o
dançarino Jacaré
24
era visto de forma
negativada por parte do Hip-Hop por
ser um homem gay. Segundo o rapper
Aspri (RBF):
Então, eu tive a oportunidade
de conversar com ele (o
Salvador, mas que na verdade é de Lauro de
Freitas.
24
Edson Gomes Cardoso dos Santos, vulgo
Jacaré, foi dançarino do grupo de pagode É o
Tchan! e foi expressivamente reconhecido
como um grande artista, coreógrafo e
dançarino a partir de meados dos anos 1990.
231
COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Jacaré) sobre essa questão
artística e o que ele curtia e ele
curtia rap. Ele ainda ia pros
shows de rap, em paralelo ao
Tchan. Aí, ele me deu uma
camisa do Racionais MCs, né?
Eu achei louco assim, porque a
relação entre o rap e a música
baiana era bem rachada por
conta da influência que nós
tivemos do sul na nossa
música, da parte do Brasil do
sul na determinação de como a
gente deveria se comportar no
norte ou no nordeste. Então,
essa parte regional influenciou
muito. A gente bloqueava, a
gente achava que não existia
diálogo, o que menosprezava a
outro tipo de cultura, outra
forma de fazer arte. Então, a
arte, a partir do momento que
eu estava conversando com
ele, eu percebi que se as
bandas, os grupos de Salvador,
ou da Bahia, ou do Nordeste,
tivessem um diálogo maior com
outros tipos das culturas
populares, outros tipos de
dança e tudo, a gente estaria
hoje em outro patamar artístico
e também com
profissionalismo em alta, mais
ainda, e até com poder
aquisitivo maior em relação a
grana mesmo, entendeu?
Discussões em torno de
masculinidades, sexualidades e
moralidades não foram o foco deste
artigo, mas é importante destacar que
certamente essas questões
possibilitariam outros caminhos para
discussões sobre identidades. Não
propomos aqui nenhuma reflexão
totalizante sobre o contexto musical da
Salvador dos anos 1990.
Ademais, diante do contexto de
sobrerrepresentação branca e
consolidação do axé como música
baiana, os Hip-Hoppers dos anos 1990
assumem a postura disruptiva e miram
seus olhares em outras referências que
contemplem corpos negros, como o
reggae e o rap do sul e sudeste. Neste
contexto em que os blocos afro eram
também latentes, esses jovens do Hip-
Hop também apreciavam música
percussiva e participavam destes
circuitos, mas não se utilizavam destas
referências ainda. na primeira
década dos anos 2000 uma
mudança de posicionamento devido a
diálogos em torno do panafricanismo e
da vivência com as religiões de matriz
afro-brasileira. O que significou
também uma mudança na cena
soteropolitana.
Por fim, sobre a capital afro que
é uma cidade antinegra, vale
retomarmos o trabalho de Osmundo
Pinho (p. 234, 2021): "como Christen
Smith descreve, em Salvador, vivemos
paradoxo, ou dualidade, muito
semelhante à celebração, exaltação da
cultura negra e ao genocídio do povo
negro".
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COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
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