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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
ontem. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.282-304, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Entre o biográfico e o coletivo: fabulações em torno do Hip-Hop no
Documentário AmarElo: é tudo pra ontem
Caio Barbosa
1
Rosane Sampaio
2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v15i28.65564
Resumo: Este artigo constitui um exercício investigativo sobre a articulação entre o biográfico e o
coletivo em narrativas ao redor do rap. Para isso, analisamos o movimento poético-performático
construído no documentário-concerto AmarElo: é tudo para ontem (2020). Quer-se entender como esse
filme faz emergir sentidos que possibilitam o diálogo entre aspectos coletivos e individuais na busca
pela inscrição de uma determinada perspectiva nos debates sobre a cultura Hip-Hop e sobre as
matrizes culturais negras do Brasil. A hipótese apresentada foi que as experiências individuais podem
servir de esquemas para a reorganização da memória coletiva e podem promover articulações
temporais, além de tensionar as convenções no campo simbólico do Hip-Hop brasileiro. Como
perspectiva teórico-metodológica, foi adotada uma conexão entre as proposições de Paul Ricoeur,
sobre tempo e narrativa, associadas à discussão sobre o conceito de performance, apresentado por
André Brasil e Diana Taylor, e ao conceito de tradição seletiva, de Raymond Willians. Foi possível
concluir que a fabulação realizada através da seleção e organização discursiva de acontecimentos
históricos, sonoridades, sujeitos e performances durante o documentário-concerto é fundamental para
reorganizar o campo simbólico do Hip-Hop no Brasil, produzindo novos sentidos e convenções.
Palavras-chave: rap, narrativa, tradição, performance.
Between the Biographical and the Collective: Fabulating Around Hip-Hop in the Documentary
AmarElo: é tudo pra ontem
Abstract: This article constitutes an investigative exercise on the articulation between the biographical
and the collective in narratives revolving around rap. To this end, we analyze the poetic-performative
movement constructed in the concert-documentary AmarElo: É Tudo para Ontem (2020). The goal is to
understand how this film brings forth meanings that enable dialogue between collective and individual
aspects in the pursuit of inscribing a particular perspective within the debates on Hip-Hop culture and
the Black cultural matrices of Brazil.The hypothesis presented is that individual experiences can serve
as frameworks for the reorganization of collective memory and can promote temporal articulations, in
addition to challenging conventions within the symbolic field of Brazilian Hip-Hop. As a theoretical-
1
Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-
mail: caiobn.j@gmail.com. ORCID: orcid.org/0000-0002-4212-7961.
2
Doutoranda em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Mestre em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-
mail:sampaiorosane042@gmail.com ORCID:orcid.org/0009-0000-7792-4891.
Recebido em 30/11/2024, aceito para publicação em 20/12/2024.
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
ontem. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.282-304, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
methodological perspective, we adopted a connection between Paul Ricoeur’s propositions on time and
narrative, the discussion on the concept of performance presented by André Brasil and Diana Taylor,
and Raymond Williamsconcept of selective tradition. It was possible to conclude that the fabulation
carried out through the selection and discursive organization of historical events, sounds, subjects, and
performances throughout the concert-documentary is fundamental for reorganizing the symbolic field of
Hip-Hop in Brazil, producing new meanings and conventions.
Keywords: rap, narrative, tradition, performance.
Entre lo Biográfico y lo Colectivo: Fabulaciones en Torno al Hip-Hop en el Documental AmarElo:
é tudo pra ontem
Resumen: Este artículo constituye un ejercicio investigativo sobre la articulación entre lo biográfico y
lo colectivoen narrativas en torno al rap. Para ello, analizamos el movimiento poético-performativo
construído em el documental-concierto AmarElo: É Tudo para Ontem (2020). Se busca entender cómo
esta película hace emerger significados que posibilitanel diálogo entre aspectos colectivos e
individuales em la búsqueda por La inscripción de una determinada perspectiva em los debates sobre
la cultura Hip-Hop y sobre lãs matrices culturales negras de Brasil. La hipótesis presentada es que las
experiencias individuales pueden servir como esquemas para La reorganización de la memoria
colectiva y pueden promover articulaciones temporales, además de tensionar las convenciones en el
campo simbólico del Hip-Hop brasileño. Como perspectiva teórico-metodológica, se adoptó una
conexión entre las proposiciones de Paul Ricoeur sobre tiempo y narrativa, La discusión sobre el
concepto de performance presentada por André Brasil y Diana Taylor, y el concepto de tradición
selectiva de Raymond Williams.Se pudo concluir que La fabulación realizada a través de La selección
y organización discursiva de acontecimientos históricos, sonoridades, sujetos y performances a lo largo
del documental-concierto es fundamental para reorganizar el campo simbólico del Hip-Hop en Brasil,
produciendo nuevos significados y convenciones.
Palabras clave: rap, narrativa, tradición, performance.
Entre o biográfico e o coletivo: fabulações em torno do Hip-Hop no
Documentário AmarElo: é tudo pra ontem
Introdução
O interesse por tematizar a
história, as práticas, estilos e os atores
do movimento Hip-Hop sempre
mobilizou o campo cinematográfico. No
início da década de 80, apenas dez
3
Faça a coisa certa (Lee, 1989) e Style Wars (Silver, 1983) são exemplos de produções ficcional e
documental, que apresentam o Hip-Hop e o graffiti e suas influências na construção do imaginário
simbólico da cultura afro-estadunidense e dos subúrbios nova iorquinos em específico.
anos após a eclosão desse fenômeno,
surgiram os primeiros filmes
3
retratando a efervescência cultural,
política e social que emergia das ruas
do subúrbio de Nova York e se
espalhava pelo mundo.
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
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Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.282-304, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Nos anos seguintes, novas
narrativas fílmicas foram construídas
trazendo perspectivas diferentes das
narrativas hegemônicas que atuavam
pela manutenção de estigmas sobre o
Hip-Hop na sociedade (Guimarães,
2015, p.50). Estratégias eram
construídas para mobilizar a indústria,
preservar memórias e produzir
discursos sobre esse movimento que
atuava renovando estéticas da dança,
da música e da arte visual e
apresentando diferentes (e
contraditórios) valores que se
originavam das intensas trocas
culturais, e também dos conflitos entre
negros norte-americanos e a população
hispânica. Isso tudo em um contexto de
resistência às violências física, material
e simbólica violências essas que o
Hip-Hop, justamente, visava combater
através dos principais elementos que
formam essa cultura: o break, o DJ, o
graffiti e o rap.
Entre esses elementos, um dos
que mais se popularizou foi o gênero
musical rap, sigla do termo rhythm and
poetry, que, no final dos anos 80,
teve seu estilo adotado por grupos
musicais ao redor do mundo, inclusive
4
Rap da felicidade (Cidinho e Doca, 1995).
no Brasil. Diversos grupos, sobretudo
nas favelas das capitais do país,
encontraram, na batida eletrônica e nos
versos falados, um modo apropriado
para evidenciar o contexto
socioeconômico de comunidades
marginalizadas, tanto no que diz
respeito à falta de assistência do
Estado e alto índice de violência quanto
no sonho de construir novos futuros
para que o desejo de “ser feliz e andar
tranquilamente na favela em que eu
nasci”
4
pudesse se tornar uma
realidade.
O sucesso musical dos artistas
do gênero foi alavancado pela indústria
fonográfica e midiática, sobretudo pelas
rádios e pelas redes de televisão, além
da publicidade e do cinema, que
organizavam não apenas modos de
produzir, circular e consumir essa
sonoridade, mas também
apresentavam performances de escuta,
estilo de vida e valores associados aos
integrantes dessa cultura, evidenciando
que esse fenômeno trazia em si
“possibilidade de reexistir em espaços
distintos, delineando um estilo de vida
no mercado de bens simbólicos e
econômicos para além da música”
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
(Santos, 2022, p.18). Dessa forma, as
estratégias da indústria para a
consolidação desse gênero articulavam
as vivências nas ruas a uma forte
presença nas ambiências midiáticas,
permitindo que a musicalidade, os
discursos, atores e códigos identitários
desse movimento ganhassem força.
As estratégias para legitimação
e consolidação do Hip-Hop,
particularmente do rap no cenário
musical, ganharam um novo salto com
o ecossistema da cultura digital “[que]
entrelaçou os modos de produzir,
circular e consumir música e apontam
para a emergência de novos
agenciamentos entre música,
tecnologia e relações sociais” (Janotti
Jr., 2020, p.12). Esses agenciamentos
passam por novos modos de
vinculação entre o local e o global, pelo
embaralhamento das fronteiras entre o
que é voltado a um público massivo e o
que é nichado, bem como criam novas
frentes para mobilizar a disputa por
valores como “autenticidade”,
“legitimidade”, “herança cultural”,
“ancestralidade” na relação com os
enquadramentos próprios da indústria
da mídia, que ora empoderam, ora
arrefecem essas concepções.
Nessa ambiência digital,
variadas materialidades áudio-verbo-
visuais têm sido exploradas por grande
número de atores do Hip-Hop ou para
circulação e consumo de produções,
construção discursiva, para
proximidade entre público e artistas do
campo, ou para a emergência de novas
carreiras. Também a organização de
narrativas sobre a história da cultura
Hip-Hop, suas raízes, valores e a
biografia de seus atores tem sido um
fenômeno crescente nesse
ecossistema. São produções pautadas
pela reivindicação de uma política
estética que marca tanto a parte
específica que cabe ao Hip-Hop no
todo da cultura afro-diaspórica, quanto
aquilo que ela compartilha com todos,
no que é comum (Rancière, 2009).
Diante disso, esse artigo visa
discutir como produções audiovisuais
sobre a cultura Hip-Hop acionam
imagens e elementos afro-diaspóricos
na fabulação das narrativas
construídas em torno do gênero rap e
das suas interfaces com outros gêneros
musicais , relacionando-os com
percursos biográficos/históricos dos
agentes históricos desse movimento.
Para tanto, tomamos como
fenômeno a narrativa visual (tanto
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fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
pessoal quanto coletiva) apresentada
por Emicida, no documentário AmarElo:
é tudo para ontem (2020) parceria
entre a Laboratório Fantasma e a
Netflix , na busca por entender como
esse documentário-concerto tensiona
sentidos alternativos com os
hegemônicos a partir da performance,
dos discursos e do entrelaçamento das
suas fabulações visuais que, ao
articular a experiência biográfica à
experiência coletiva como estratégia de
estabelecimento de uma tradição,
operam tanto exclusões como
elaboram novas convenções no campo
da cultura.
A partir da perspectiva de que a
narrativa artístico-biográfica de Emicida
está sugerida como resultante de uma
série de elementos constitutivos de
uma narrativa coletiva afro-diaspórica
brasileira, levantamos a hipótese de
que a construção de uma narrativa
5
Não será abordada aqui, numa reflexão
aprofundada, a teoria do romance, mesmo
sabendo que poderia ajudar a justificar o uso do
adjetivo romanesco. Contudo, considera-se o
estudo de Georg Lukács sobre o romance
auxiliar no entendimento das narrativas
analisadas nesse estudo, a saber: “Princípio e
fim do mundo romanesco, determinados por
início e fim do processo que preenche do
conteúdo do romance, tornam-se assim marcos
impregnados de sentido de um caminho
claramente mensurado. Por menos que o
romance esteja efetivamente vinculado ao
começo e ao fim naturais da vida, a nascimento
poético-performática, que emenda o
biográfico ao coletivo no documentário-
concerto, constituiu movimento de
reorganização e disputado campo
simbólico relacionado ao Hip-Hop
brasileiro. Isso porque as experiências
individuais podem servir de esquemas
para reencaixar a memória coletiva
mais ampla e podem promover novas
articulações entre passado, presente e
futuro com o objetivo de estabilizar
novos sentidos e convenções.
Teias de AmarElo: das biografias
particular e coletiva a uma tradição
contemporânea do Hip-Hop
Pode-se dizer que AmarElo: é
tudo pra ontem, documentário-concerto
concebido por Emicida, em 2020,
apresenta uma estrutura facilmente
reconhecível: desde o início, esboça
um diálogo romanesco
5
entre células
narrativas que, por fim, culminará no
e morte, ele indica, no entanto, justamente pelo
meio dos pontos onde se inicia e acaba, o único
segmento essencial determinado pelo
problema, abordando tudo que lhe seja anterior
ou posterior em mera perspectiva e em pura
referência ao problema; sua tendência, pois, é
desdobrar o conjunto de sua totalidade épica no
curso da vida que lhe é essencial” (Lukács,
2000, p. 83). Então, em uma analogia possível,
as narrativas contadas nessa obra áudio-verbo-
visual funcionam como aquelas agenciadas em
narrativas escritas e possuem, pela sua
natureza, início, problema, resolução e final.
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
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ontem. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.282-304, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
espetáculo de mesmo nome no teatro
municipal de São Paulo. Na sua
realização, encontram-se aspectos
metafóricos, mudança de estados dos
sujeitos, transformações de
perspectivas individuais e coletivas,
além de dramaticidade e de relações de
causa e efeito. E mais, se se considerar
a estrutura como romanesca, arrisca-se
dizer que em seu bojo, existe um herói
moderno/romântico que conduz todos
os enredos: Emicida.
Foi por esse caminho que
observamos a existência de um
fenômeno que ainda carece de
investigação: como sujeitos da cena do
Hip-Hop brasileiro, particularmente do
rap, produzem em seus trabalhos
áudio-verbo-visuais um entrelaçamento
entre a narrativa biográfica e a narrativa
coletiva afro-diaspórica no Brasil?
Consideramos que investigar narrativas
verbais e visuais utilizadas pelo
documentário AmarElo: é tudo pra
ontem (2020), visando articular esses
dois campos, o pessoal e o coletivo,
permitirá entender a construção das
estratégias discursivas sobre o Hip-Hop
no Brasil que intencionam reorganizar a
história desse movimento,
particularmente de sua sica e de
seus principais atores, em relação à
cultura afro-diaspórica, sobretudo na
manifestação de suas performances
culturais que, como explica Futata
(2021), não tem um viés utilitário como
acervo de patrimônios históricos, mas
exerce “função vivificadora, pela força
vital que impulsiona os corpos, e
criadora de futuros, pela experiência
disruptiva que interfere inclusive na
concepção das espacialidades”
(Futata, 2021, p.191).
Observamos que todo o
documentário-concerto é narrado em
primeira pessoa, pela voz do próprio
Emicida. É o seu olhar, a sua
perspectiva, a sua percepção da
história do povo negro através do
século XX que seleciona, legitima e
deslegitima, destaca os eventos,
conhecimentos, práticas, produtos,
agentes históricos e todo um passado
que é filtrado e organizado por sua
visão que constrói, nos termos de
Williams (1977), uma tradição seletiva.
Segundo o autor, existem três
níveis de cultura: o primeiro é o da
cultura vivida, que é acessível
inteiramente apenas às pessoas que
são contemporâneas a determinado
cenário e vivem em um tempo e lugar
específicos; outro nível é a cultura
registrada, ou documentada: o conjunto
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transformações da cultura")
dos artefatos, conhecimentos, práticas,
objetos que sobreviveram ao momento
de sua emergência e estão disponíveis
em momentos históricos
marcadamente distintos; por fim, o
terceiro nível de cultura, a tradição
seletiva, que é o processo deliberado
pelo qual a cultura vivida (primeiro
nível) é conectada à cultura registrada
(segundo nível), construindo, a partir do
presente, uma visão organizada sobre
o passado que serve para legitimar
determinadas práticas, atores e valores
no próprio presente e em direção ao
futuro.
Esse processo é complexo na
medida em que olhar para o passado
através dos seus registros permite
entrever apenas uma pequena parcela
de uma vivência cultural muito mais
profunda e sofisticada. Partindo da
perspectiva de Williams (1977), Leal e
Sacramento (2019), pode-se notar que
a tradição seletiva constitui um recorte
sobre essa parte reduzida pelos
documentos, deixando de fora diversos
outros elementos que escapam ou são
estrategicamente excluídos porque não
contribuem para o discurso que se
pretende fortalecer.
Dessa forma, ao desenvolver
qualquer linha da tradição há sempre a
possibilidade de criar outras seleções e
alternativas, trazendo para o centro
fatos, produtos, práticas que foram
desconsideradas em uma organização
específica. Dessa forma, seria possível
transformar perspectivas dominantes
sobre determinado universo cultural
através de uma nova conexão entre
passado, presente e futuro.
Para isso, Emicida utiliza sua
visão pessoal como justificativa para a
produção do show e entrelaça aspectos
selecionados da história da cultura
africana e do Hip-Hop a falas sobre vida
cotidiana, sobre sua história
profissional e sobre processo de
criação artística relacionadas ao álbum
e ao show que não deixam de
evidenciar uma justaposição político-
identitária que se vislumbra na história
contada sobre um coletivo que
interferiu, por sua vez, na construção
da sua própria história pessoal.
Entretanto, nesse percurso, para
compreendermos os contornos
biográficos presentes no documentário
articulados à narrativa coletiva,
primeiramente, consideramos a
afirmação de Ricoeur (2016, p.85) de
que “o tempo se torna tempo humano
na medida em que é articulado de um
modo narrativo, e que a narrativa atinge
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seu pleno significado quando se torna
uma condição da existência temporal”.
Ou seja, para que se haja dimensão
cronológica da existência humana, é
necessário organizar os fatos ocorridos
a partir de uma operação ficcional; por
outro lado, para que uma história
ficcional seja plenamente acessada, é
preciso fazê-la parecer um
acontecimento vivido.
A primeira operação proposta
por Ricoeur (2016) pode ser observada
em AmarElo, que existem
construções narrativas biográficas ali
presentes. Emicida organiza fatos de
sua vida e os imbrica com fatos e
narrativas de personagens históricas
importantes para o povo negro e para a
história cultural e social do Brasil. A sua
vida particular é apresentada em
alguns trechos, como quando ele
começou nos shows de rap, quando ia
a lojas de discos e quando divide o
cotidiano com suas filhas ou regando
plantas ou escrevendo
6
.
6
Inclusive, Emicida aparece escrevendo em
uma antiga máquina de escrever. Nesse
momento, ele faz uma referência em sua fala
ao fato das coisas se dissiparem rapidamente
no campo digital. Precisamente, ele diz “não
pode deixar que isso tudo se dissipe no digital.
Evidentemente que o gesto de Emicida
representa uma resistência à debandada de
Ele organiza esses momentos e
os ficcionaliza, ao escolher momentos-
chave para a compreensão da sua
trajetória (em imagem e som ou em
palavras), como os primeiros shows e a
busca por referências musicais até o
dia a dia com sua família, além do
desfile de moda de sua marca
Laboratório Fantasma, na o Paulo
Fashion Week. Construindo uma linha
cronológica em torno de sua premissa
a de que ele é a epítome de uma série
de personagens, fatos histórico-
culturais brasileiros , ele produz e
permite uma percepção coerente com a
proposta de realizar o show no Teatro
Municipal. Sobre esse aspecto, deduzir
que Emicida lança sua trajetória para o
espaço simbólico do herói, não seria
equivocado, pelo menos nesse viés de
análise.
Em seguida, partindo para
entender o encontro (há que se dizer
teleológico) entre indivíduo e coletivo,
proposto pelo documentário, a partir
das narrativas particular e coletiva, a
informações no meio digital e uma possível
perda de sentido delas nessa conjuntura. A
escrita em máquina de escrever, então, pode
comunicar que um gesto largo e demorado de
um escrever mais lento do que num dispositivo
eletrônico é reflexo de um pensamento
consolidado.
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transformações da cultura")
outra ponta a considerar: os
acontecimentos e personagens que
marcaram a construção de São Paulo.
Eles foram selecionados para justificar
o caminho construído pelo próprio
Emicida, a partir de releituras e
seleções de experiências do passado
que encaminham o olhar para suas
próprias práticas e produções, criando
uma configuração específica sobre
esse fenômeno.
É possível observar como o
autor elabora uma visão,
aparentemente óbvia e naturalizada,
que conecta o passado ao presente em
direção ao futuro. Ele vai desde fins do
século XIX, com a propagação da ideia
de que era necessário embranquecer a
população brasileira, passando pela
afirmação de que o metrô São Bento foi
importante para a periferia de São
Paulo e chega à ascensão do Hip-Hop
nas periferias de São Paulo, pela fusão
do rap com gêneros musicais de matriz
brasileira, em finais do século XX e
início do século XXI. Portanto, um
traçado cronológico que atravessa
7
O conceito de polifonia foi desenvolvido por
Bakhtin após estudos sobre a obra de
Dostoiévski. Ele aponta o caráter plurivocal e
independente das vozes dentro de um
romance, como se fossem consciências
espaços físicos e simbólicos, que
ficcionaliza essa narrativa histórica e
permite a percepção de causa e efeito,
de início, meio e fim entre os
acontecimentos elencados como os
mais importantes.
Essa ordem está agenciada na
justificativa do percurso de Emicida.
Não por menos, fica evidente quando,
como uma pista, ele fala sobre a
emancipação dos jovens negros,
inclusive econômica, em ambiente
digital. Ainda declara que faz parte do
grupo dos jovens que pretende
“reescrever a história desse país”
(Amarelo, 2020). Nesse contexto, ele
finaliza declarando: “eu, Emicida,
(Leandro - como a mãe me chama) sou
um desses jovens” (Amarelo, 2020),
para destacar que seu papel é também
reapresentar o lugar que cabe ao Hip-
Hop na realidade cultural brasileira.
Há, então, uma narrativa
composta por narrativas, uma narrativa
polifônica
7
, que desaguam no show
AmarElo
8
enquanto um fazer, um agir e
também um sofrer que “pressupõe da
independentes que se equiparam à voz do
narrador (Bakhthin, 2013).
8
que se ressaltar que a composição do
show também é uma narrativa. No entanto, no
que concerne ao exercício de análise aqui feito,
foram eleitas as duas comentadas ao longo
291
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transformações da cultura")
parte do narrador e de seu auditório
uma familiaridade com termos tais
como agente, objetivo, meio,
circunstância, ajuda, hostilidade,
cooperação, conflito, sucesso,
fracasso” (Ricoeur, 2016, p. 98-99).
Objetivamente, a narrativa pode
ser entendida como um repositório de
referências da experiência dos seus
partícipes, do narrador ao receptor. Ou
seja, é preciso entender os elementos
que compõem as histórias antes de ter
entrado em contato com elas. Além do
mais, ação e sofrimento (ancorados em
agir e sofrer) promovem a
compreensão da mudança tímica que
deve ocorrer em uma estrutura
narrativa canônica. Por fim, para que
haja o fazer, é preciso a compreensão
do agir, do sofrer e dos termos
relacionados a eles.
Por outro lado, não se pode
entender a narrativa somente por esses
termos, porque, para construí-la, são
necessários aspectos discursivos
(Ricoeur, 2016) que a transponham
poeticamente e que, portanto,
propiciem a emergência de sentidos.
Esses aspectos possibilitam uma
do texto por conta do diálogo profundo
estabelecido entre elas.
ordem sintagmática e uma percepção
da narrativa no campo prático. Em
tempo, a ordem sintagmática é o que
proporciona o agenciamento dos fatos,
a intriga (Ricoeur, 2016). Segundo
Ricoeur:
[...] a ordem sintagmática do
discurso implica o caráter
irredutivelmente diacrônico de
toda a história narrada. Mesmo
que essa diacronia não impeça a
leitura de trás para frente da
narrativa, característica, como
veremos, no ato de recontar, essa
leitura que remonta do fim para o
começo da história não abole a
diacronia fundamental da
narrativa (Ricoeur, 2016, p. 99).
AmarElo é dividido em três atos:
ATO 1 Plantar; ATO 2 Regar; ATO
3 Colher. Nesses atos, os temas
abordados se repetem, que com
enfoques diferentes e materialidades
audioverbovisuais diferentes. Como
mesmo sugerem os seus títulos, veem-
se início, meio e fim metaforizados,
compreendendo, portanto, que os
elementos narrativos, tanto biográficos
quanto histórico-culturais, e os temas
que atravessam essas histórias, desde
sua passada invisibilização até a
presente materialização e importância,
serão organizados para que emerjam
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
ontem. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.282-304, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
aspectos discursivos que caracterizem
os acontecimentos como
irremediavelmente inevitáveis.
O desenvolvimento do enredo
a vida de Emicida e a história social e
cultural pela perspectiva afro-
diaspórica da cidade de São Paulo e do
Brasil , as peripécias, as escolhas
dentro da tradição, o clímax e a catarse
estão dentro dessa estrutura nomeada
como plantar, regar e colher por
Emicida. Acrescenta-se nessa análise
um prólogo e um epílogo, o que
arrematam os contornos narrativos de
AmarElo.
Performatividades em AmarElo: dos
repertórios vividos a uma
experiência imaginada
Chama-se de prólogo o
momento no documentário em que
Emicida apresenta, em linhas gerais,
reflexões sobre o significado, para ele,
da produção e da culminância do show
no Teatro Municipal de São Paulo.
Tudo se inicia quando ele fala um
ditado de Exu, de matriz Iorubá, que
anuncia o que virá nos próximos
momentos no documentário: “Exu
matou um pássaro ontem com a pedra
que jogou hoje” (Amarelo, 2020).
A princípio, esse ditado pode
não deixar explícita a sua função dentro
da história que vai ser contada, mas, ao
longo do caminho, entende-se a sua
presença. É como se os
acontecimentos e os personagens
históricos ali elencados tivessem uma
ligação direta com o presente e vice-
versa. Ou seja, é a ação realizada no
presente (o documentário) tanto
organiza o entendido do que foi feito
antes (a história da cultura negra),
quanto é o resultado direto de todo esse
conjunto de experiências vividas.
Seguindo no desenvolvimento
do prólogo, vemos imagens aéreas da
periferia de São Paulo; ouvimos sobre
a história do Brasil, especificamente
sobre o desenvolvimento de São Paulo;
sobre a escravidão e sobre,
principalmente, o desenvolvimento de
São Paulo atrelado à escravidão e à
abolição. No entanto, de maneira
contumaz, ouvimos Emicida falar sobre
suas vivências. São recorrentes falas
como “meus sonhos e minhas lutas (...)
sinto que eu voltei e para contar minha
história, preciso contextualizar umas
paradas” (Amarelo, 2020).
Aliada a essas falas, resta uma
incerteza sobre para quem ele se
dirige. Inclusive, na abertura do
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
ontem. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.282-304, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
documentário, é projetada uma citação
de Mário de Andrade, em Pauliceia
Desvairada: “(...) os curiosos terão o
prazer de descobrir minhas conclusões,
confrontando obras e dados. Para
quem me rejeita, trabalho perdido
explicar o que, antes de ler, não
aceitou (...)” (Amarelo, 2020). É como
se Emicida se enxergasse nessa
reflexão de Mário sobre quem se
debruça sobre sua história, sobre o que
ele tem a dizer. Ele até vislumbra
possíveis interlocutores e os coloca
como possíveis curiosos ou
indiferentes, mas nada fica claro.
Como num fluxo de consciência,
Emicida fala sobre o Brasil ser o último
país a abolir a escravidão, sobre o ciclo
do café ser apoiado nela. Além disso,
refere-se ao abandono dos negros no
processo s-abolição e da política de
embranquecimento da população
brasileira. E mais, fala de
multiculturalismo e como o movimento
Hip-Hop foi importante para a juventude
negra de São Paulo. Figuras como
Mateus Aleluia, velhinhas da Penha e
jovens negros da periferia de São Paulo
vão se misturando ao discurso de
caráter político, permitindo a percepção
de que todos os espaços geográficos e
simbólicos e todas as personagens,
cotidianas e histórico-culturais, estão
interligados.
Por outro lado, avançando pelas
diversas perspectivas materializadas
no documentário, se pode
vislumbrar, nas primeiras passagens,
que as narrativas contadas em
AmarElo orbitam a narrativa biográfica
de Emicida e a construção de sua
persona artística. Ou seja, os fatos são
organizados por um gesto ficcional que
articula os acontecimentos de sua vida
a uma sequência cronológica de
eventos políticos, sociais e artísticos de
um movimento que perpassa a história
de toda uma cultura. Infere-se que,
somente assim, será possível acessar
corretamente essa realidade.
Em tempo, ao considerar essa
premissa, pode-se dizer que o discurso
construído chama em causa o
arquétipo do herói, daquele que serve
de exemplo, que erige uma trajetória
exemplar. Ele mesmo apresenta o
porquê de contar essa narrativa,
atribuindo a ela a importância de um
exemplo a ser seguido.
Considerando essa leitura, é
possível enxergar nessa narrativa um
ato performativo, nos termos de André
Brasil (2011), que se refere à
performance como o que está entre o
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
mundo vivido e o imaginado. Segundo
ele,
[...] não são poucas as
experiências em que as imagens
parecem não apenas representar
ou figurar não apenas,
ressaltemos logo mas inventar,
produzir formas de vida, estas que
mantêm com a obra uma relação
de continuidade (em certos
aspectos) e descontinuidade (em
outros). (Brasil, 2011, p.5)
Depreender que uma
aspiração heroica na conduta de
Emicida, portanto, significa,
considerando esse conceito de
performance, dizer que ela está entre o
que foi projetado em imagens (vida de
pai, de filho, de artista, de empresário)
e o que se imagina heroico e/ou, em
outras palavras, predestinado a partir
dessas imagens. Ou seja, o que se
apresenta visualmente é a busca
incessante da performance, que é uma
intenção, algo imaterial, uma força
(Brasil, 2011), pela forma, pela
materialização.
Em seu trabalho, Emicida não
apenas expõe símbolos e
personalidades que dão consistência à
sua experiência, mas também
apresenta uma performance em torno
delas, pelo modo como ele mobiliza, na
perspectiva de Diana Taylor (2023),
arquivos (objetos, documentos,
espaços, vídeos) e repertórios (língua
falada, dança, rituais, modos de fazer)
de uma experiência cultural tensionada
entre continuidades e transformação na
comunidade negra que ele representa
de um modo próprio no documentário.
Sua performance, nesse caso,
constitui um ato de transferência de
conhecimento, de memória e de
sentido social “refletindo a
especificidade cultural e histórica
existente na encenação quanto na
recepção” (Taylor, 2013, p.27),
possibilitando uma compreensão mais
acurada da narrativa por ele construída
e do modo como ele pensa a si mesmo
e sua comunidade de pertença.
Isso ocorre, por exemplo, na
apresentação da música “Principia”,
que conta com participação do pastor
Henrique Vieira. A canção e
participação do religioso são
precedidas pela sucessão de dois sons
extradiegéticos: primeiro, o som do
atabaque sendo tocado enquanto
contemplamos uma imagem da
movimentada Avenida Tietê em São
Paulo e, logo em seguida, o som de
sinos. Nesse ponto, inicia-se a fala do
cantor baiano Mateus Aleluia, dizendo
“de manhã, logo cedo, nós éramos
acordados pelos sinos da igreja católica
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
que reprimia o candomblé! Aquilo era
bonito, mostrando que pronto - nós
nascemos para viver incluído, e não
desassociado” (Amarelo, 2020).
Na cena seguinte, escutamos
um diálogo de Emicida com a cantora
Fabiana Cozza no qual ele apresenta o
pastor, amigo dele, “que fala uns
negócios bonitos” (Amarelo, 2020) e
que participa da música que abre o
disco, “Principia”. O pastor citado
aparece logo em seguida, com vestes
eclesiásticas, em um púlpito, em
gravação feita num templo cristão,
pregando o Evangelho. A pregação se
torna um poema e um templo é trocado
por um estúdio enquanto ouvimos
Henrique Vieira falar “amor é
espiritualidade: latente, potente, preto,
poesia” (Amarelo, 2020). Após uma
rápida troca de falas entre eles, vemos
Emicida sozinho no palco.
Essa é a única vez no
documentário em que Emicida está
abaixado, quase ajoelhado, diante da
plateia. Neste momento, enquanto
ouvimos sons de agogôs e o cantarolar
de vozes, ele apresenta uma fala em
que atrela sua própria experiência de
vida e sua atuação profissional a uma
reorganização não apenas dos
sentidos sobre o passado, mas da
própria subjetividade de cada pessoa
negra que tiver contato com sua
produção artística.
A primeira vez que eu fui na África,
o meu amigo Chapa me levou em
um museu que tem em Angola
que eles chamam de Museu da
Escravidão. E naquele lugar tinha
uma pia e tava escrito um texto na
parede que era, mais ou menos,
assim: ‘foi nessa pia que os
negros foram batizados e através
de uma ideia distorcida do
cristianismo, foram levados a
acreditar que não tinham alma.’
Eu olhe para o meu parceiro e,
naquele dia eu entendi qual era a
minha missão: a minha missão, a
cada vez que eu pegar uma
caneta e um o microfone, é
devolver a alma de cada um de
meus irmãos e das minhas irmãs
que sentiu que um dia não teve
uma. (Amarelo, 2020)
Ao final, vemos que ele está com
uma camisa que traz nas costas uma
estampa de um santo negro (com
auréola e roupa de frade), segurando
no colo uma criança branca nua. A
partir do que destaca Brasil (2011) ao
dizer que imagens não são apenas
lugares de representação, mas
performances que pretendem elaborar
e efetuam processos de subjetivação, é
possível observar que as sonoridades e
os atores convocados, as falas verbais
e as visualidades presentes nesse
trecho apresentam sentidos em torno
do discurso de “unidade” e “integração”
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
que realizam um apagamento das
singularidades e diferenças das
tradições de matriz africana e cristã; e,
ao mesmo tempo, torna evidente o
papel que Emicida se pretende dar
nesse processo ao trazer, mais uma
vez, aspectos de sua biografia como o
elemento disruptivo na história da
cultura afro-diaspórica, deslocando os
sujeitos de suas partes específicas.
Explicando melhor, o rap tem
sido um modo historicamente
consolidado de cantar e performar as
vivências e posicionamentos afetivos,
políticos e estéticos da comunidade
negra, também de latinos e de outros
sujeitos marginalizadas ao redor do
globo, constituindo, para essas
comunidades, uma forma de
enfrentamento dos processos sociais
de exclusão, fazendo com que sua
história, valores e práticas culturais,
normalmente invisíveis, possam
representar uma partilha do comum
(Barbosa, 2005).
No entanto, Em AmarElo, há um
elogio a formas de vida possíveis
tanto de Emicida quanto da
comunidade negra a partir daquilo
que foi experienciado e foi projetado
por ele mesmo. Além disso, ao mesmo
tempo em que são manifestações de
vidas reais, entrelaçadas a uma matriz
cultural partilhada e sempre
ressignificada, estão atreladas ao que
elas podem ser a partir da seleção de
acontecimentos, fatos, documentos e
personagens em um processo que
inscreve o seu lugar no centro desse
movimento no Brasil e na produção de
outros sentidos sobre rap que, de
alguma forma, parece conformá-lo na
relação com outros ritmos, estilos e
gêneros musicais.
De fato, observamos que os
aspectos culturais expostos são
convocados para a construção do
arcabouço poético-performático, que é
consolidado à medida que o discurso
sobre música, identidade e resistência
toma forma nas canções, no cotidiano
representado, nos eventos históricos
evocados, nos bastidores de
preparação do show e no palco, nos
personagens entrevistados, além de se
entrelaçar com o que é imaginado
sobre sua própria vida, de modo que as
performances que ali se produzem (dos
autores e dos personagens) “estão,
simultaneamente, no mundo vivido e no
mundo imaginado, elas são, a um
tempo, forma de vida e forma da
imagem” (Brasil, 2011, p.5).
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
O encontro do Hip-Hop com o samba
e suas implicações dentro de
AmarElo
Como dito antes, desde o
prólogo, percebe-se que Emicida
entrelaça narrativas: a sua vida com a
trajetória de pessoas negras e com a
trajetória de montagem do show. Pode-
se notar que, desde o início, uma
premissa possível é imbricar todas
elas. No início do ATO 1, o que se
chama “Plantar”, vemos figurar uma
parte da metáfora que atravessará toda
a construção de AmarElo.
A ideia de plantar traz em seu
bojo a expectativa do crescer, do
florescer. Daí, pode-se inferir que,
assim como os negros que construíram
São Paulo “plantaram” a cidade
(Emicida apresenta marcos fundantes
da cidade de São Paulo, como a pedra
fundamental do Mosteiro de São Bento,
fincada por negros; a primeira escola
de samba de São Paulo), ele mexe na
terra acompanhado de sua mãe, planta
literalmente, rega e, de forma
subentendida, espera os
frutos/crescimento das plantas.
Os “frutos” da cidade - o samba,
os monumentos, o teatro municipal -
seriam e deveriam ser aproveitados
pelas pessoas negras que sucederam
aqueles que “plantaram”. Assim como
ele, Emicida, planta e rega a terra,
empreende e recebe os resultados de
seus projetos, aqueles homens e
mulheres negras dos séculos XIX e XX
construíram marcos de São Paulo para
que pessoas negras do século XXI
pudessem usufruir desses marcos,
que aqueles tinham sido impedidos;
diferente da deles é a trajetória de
Emicida que aproveitará as benesses
de suas conquistas. Talvez por isso
Emicida conte a história de São Paulo,
pela perspectiva dos trabalhadores
negros e dos negros escravizados,
demonstrando respeito e gratidão,
como se houvesse uma linha
teleológica que culminaria nesse show
no Municipal, máxima demonstração de
que tudo ocorreu de forma positiva no
final.
Voltando à composição das
imagens, todo esse ato é construído
por imagens da periferia entrecortadas
por imagens de Emicida com sua
família. A sépia das imagens de família
cria uma atmosfera mítica, de um
passado longínquo que se mistura com
imagens de Emicida regando as
plantas e falando sobre sua mãe.
Nesse momento, o caráter
performativo, entre o mundo vivido e o
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
mundo imaginado (Brasil, 2011),
permite deslizar entre a memória e a
narrativas projetadas, entre o que ele
viveu em família e o que representa
essa experiência na história costurada
com tantas linhas, tramas e trançados
distintos históricos e afetivos para,
enfim, buscar compreender o quanto se
entrelaçam o discurso sobre um
indivíduo e o coletivo com o qual ele se
identifica, ainda que possa saltar aos
olhos o quanto o que mais se valoriza
nesse contexto é a experiência desse
indivíduo em contato com o meio, suas
impressões e as suas reflexões sobre o
que herdou.
Outro aspecto importante para a
compreensão da história é presença do
samba muito forte nesse ato, provada
pela genealogia traçada por Emicida.
Ele engendra uma espécie de
cronologia do gênero quando fala sobre
a criação da primeira escola de samba,
fundada por Ismael Silva. Apresenta
vários nomes do samba e chega a
afirmar que o samba“já era o Hip-Hop
antes de nós e que o samba tá na raiz
do rap” (Amarelo, 2020).
Deduz-se, considerando essas
falas, que Emicida cria uma via de mão
dupla para o samba e para o rap,
fazendo questão de não desgarrar os
gêneros. Ao contrário, quer ligá-los pela
importância que um tem para o outro.
Talvez por isso, ele oferece pistas
sobre o desejo de nomear o AmarElo
como um novo movimento cultural
chamado neossamba. Então, o que
seria isso? Um gênero erigido do
encontro do samba com o rap e vice-
versa? Possivelmente. Uma “revolução
do AmarElo”, como ele afirma? Emicida
aponta, ainda, o samba-rock e o
samba-rap como resultados do
encontro de gêneros estrangeiros com
o samba, e como a presença desses
dois gêneros não brasileiros, o rock e o
rap, adaptaram-se bem à música
brasileira.
Emicida reivindica um novo
movimento/gênero musical a partir da
sua iniciativa como músico, produtor,
idealizador e design de roupas para a
sua marca “Laboratório Fantasma”.
Talvez, se se considerar que ele reúne
matrizes consagradas da sica
brasileira em articulação com o pop,
além da presença das artistas Pabllo
Vittar e Maju, seja possível conduzir o
olhar para essa conclusão, porque
relações muito diversas e distintas
entre esses artistas. A questão é que,
ao trilhar esse caminho, Emicida
conforma os gêneros numa perspectiva
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
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transformações da cultura")
(cuja expectativa de rompimento com a
tradição musical, desde o samba,
passando pelo rap, pelo rock, até
chegar no neo-samba parece distante)
possivelmente idealizada.
Para finalizar, que se
comentar a presença de Wilson das
Neves no documentário. Emicida conta
a história de como chegou a ele, a partir
de seu garimpo em lojas de discos, na
adolescência. Ele diz que notara a
presença de Wilson nos arranjos e na
execução de vários álbuns que ele
havia comprado e que o sico se
tornara uma referência para ele.
Emicida conheceu Wilson, gravou com
ele, acompanhando-o nos seus últimos
anos de vida. O encontro dos dois
possibilita o vislumbre, dentro da
história do documentário, do encontro
do passado com o presente e da
renovação musical. Nesse sentido,
simbolicamente, a história vivida entre
Emicida e Wilson das Neves reúne os
argumentos narrativos, projetados no
documentário, que sustentam um
imaginário de continuidade de uma
tradição.
No Ato 2, intitulado “Regar”,
Emicida fala sobre as lutas pelos
direitos civis das pessoas negras. As
primeiras referências, a criação do
movimento negro, o tensionamento
com a ditadura militar estão na base
desse recorte narrativo.
Desde artistas, como Wilson
Simonal a Lélia Gonzales, passando
por Leci Brandão, Emicida tece uma
relação entre a história da luta pelos
direitos do povo negro (e suas
interseccionalidades) às suas lutas
pessoais, essas que se imbricam com
as lutas coletivas. Uma observação
deve ser feita, em tom de crítica e
cobrança: não há qualquer referência a
Elza Soares, o que pode gerar
estranhamento, dado o seu papel
singular como uma das artistas negras
mais versáteis e mais ativas na cultura
brasileira.
O Ato 3 é praticamente todo
dedicado ao show. Detalhes da
produção são colocados em diálogo
com cenas do show. Pessoas que não
conseguiram entrar assistiram a tudo
por telão, de fora do teatro e a emoção
é sempre partilhada em uma
intensidade demonstrada como
equânime. Dentro do teatro, há muitas
imagens da plateia emocionada,
chorando e cantando as músicas, de
camisetas com a inscrição Ubuntu.
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
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transformações da cultura")
O epílogo sereno: um exemplo para
quem ou para quê?
Evidente que a história contada
em AmarElo, apesar de partir de uma
perspectiva individual, pretende-se
coletiva: representa trajetórias de
pessoas negras alçadas para o centro
das discussões sobre identidade
cultural e, mais, sobre valorização da
identidade cultural afro-diaspórica.
Emicida se permite diluir nessa história
para alcançar um dos objetivos
apontados por ele que é de reescrever
a história brasileira junto com outras
pessoas negras. Nesse bojo, os
significados compartilhados e as
interpretações semelhantes
sustentadas são possíveis pelo acesso
comum à linguagem (Hall, 2016), que
pode ser identificada como o rap, o
samba, a cultura Hip-Hop, o movimento
de luta do movimento negro pelos
direitos civis, a consciência da
interseccionalidade, que atravessa a
experiência afro-diaspórica agenciada
no documentário-concerto.
Gerando identificação pelos
temas abordados e compartilhando
significados intercambiando sentidos
, o documentário encaixa-se no que
Hall (2016) entende como circuito da
cultura: um sistema em que a
linguagem, uma estrutura complexa
composta por signos e símbolos
sejam eles sonoros, escritos, imagens
eletrônicas, notas musicais e até
objetos alinha-se para representar
ideias pensamentos e afetos (Hall,
2016). Hall declara:
Afirmar que dois indivíduos
pertencem à mesma cultura
equivale a dizer que eles
interpretam o mundo de maneira
semelhante e podem expressar
seus pensamentos e sentimentos
de forma que um compreenda o
outro. Assim, a cultura depende
de que seus participantes
interpretem o que acontece ao seu
redor e “deem sentidoàs coisas
de forma semelhante. (Hall, 2016,
p. 20)
Partilhar signos culturais de
diversas categorias permite que
Emicida reconheça-se e reconheça
seus semelhantes dentro de uma
temporalidade e de um espaço
simbólico que tensionam com o status
quo a importância de suas histórias. Em
outras palavras, a partir da
manifestação cultural, ele buscará
transformar uma visão hegemônica de
que o espaço do Teatro Municipal é
destinado a apresentações ditas
eruditas, de tradição acadêmica,
eurocêntricas, e de pessoas brancas.
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
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transformações da cultura")
Por outro lado, o seu discurso,
ao mesmo tempo em que se pretende
parte de uma comunidade e
instrumento de tensionamentos com a
hegemonia, fala muito sobre si mesmo,
num jogo de espelhamentos e de
predestinação. Um exemplo disso é
quando, após elaborar um resumo de
práticas musicais e performáticas da
história do rap cuja fusão ele percebe
com outras musicalidades de matriz
africana, como o samba e o reggae, por
exemplo, ele declara que tem a
ambição de “subir um degrau” e que se
“supere a fusão” aludindo ao conjunto
de práticas e processos artístico-
culturais realizados ao longo do tempo
no Brasil para se aventurar “na
elaboração de um novo ritmo, uma
nova linguagem artística” (Amarelo,
2020) que, a partir de seu trabalho em
AmarElo, ele denomina de “Neo-
Samba”.
É como se Emicida estivesse se
colocando num lugar do indivíduo que
irá fatalmente emergir de uma
comunidade que fora invisibilizada por
séculos, carregando consigo todas as
referências histórico-culturais dessa
comunidade e organizando-as,
enquanto fala de si e de sua trajetória
como sico, filho, pai, empresário,
destinado a contar a sua história e a de
sua comunidade.
Considerações finais
Nesta breve análise das
narrativas biográficas e históricas,
erigidas e entrelaçadas em AmarElo,
levamos em conta o seu caráter
performativo e representativo, foi
possível concluir que a relação entre
esses aspectos é discursivamente
organizada com o intuito de apresentar
um ator enquanto herdeiro da história
social e cultural dos negros brasileiros
que ajudaram/participaram do processo
de expansão da cidade de o Paulo,
sem poderem usufruir do progresso.
Considerando-o como herdeiro,
presume-se que Emicida será o
responsável por reescrever essa
história e destiná-las aos jovens
negros, esses que vão aproveitar das
benesses que deveriam ter sido
aproveitadas desde quando
floresceram, por todo o século XX. Ele
realiza essa fabulação através de um
processo de seleção de
acontecimentos históricos,
sonoridades, sujeitos e performances
que ele traz para o palco e para os
bastidores a fim de organizar uma linha,
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
uma tradição selecionada, sobre o
percurso e o cume dessas realidades.
Enquanto resultado dessa
pesquisa, foi possível observar que a
elaboração de produtos culturais que
entrelaçam aspectos biográficos e
coletivos através de justaposição
político-estética pode ser uma
estratégia capaz de reorganizar a
estrutura de relevância de atores,
fenômenos, práticas e acontecimentos
dentro do campo do Hip-Hop a partir
das experiências vividas, tensionando,
desta forma, visões dominantes sobre a
história, os valores, as práticas e as
transformações futuras desse
movimento.
Além disso, observamos que o
desenvolvimento de uma narrativa
ficcionalizada, que acionou dores,
batalhas e conquistas coletivas
associadas às dores, batalhas e
conquistas individuais foi mobilizada
na tentativa desconstruir uma
identidade heroica para diferentes
personagens da cultura afro-diaspórica
brasileira que tem no próprio Emicida
um dos atores principais.
Esse processo produz entre
seus significados que as conquistas de
determinados indivíduos, ou de uma
parcela reduzida de uma coletividade,
conta de abarcar um contingente
muito mais amplo, plural e espraiado.
Desta forma, não é somente que um
show com artistas negros e negras,
com apresentações
predominantemente da cultura afro-
diaspórica, nunca tenha acontecido no
Teatro Municipal de São Paulo, mas
que “minha mãe, minhas filhas, minha
avó nunca foram” (Amarelo, 2020),
embaralhando as fronteiras entre aquilo
que é biográfico e aquilo que é coletivo.
Foi possível observar, ainda, que
a apresentação de uma performance
áudio-verbo-visual, com engajamentos
corporais, e mobilização de arquivos e
repertórios mais ou menos
reconhecidos pelo público, é um
importante lugar do encontro entre o
individual e o coletivo no trabalho de
Emicida. É no corpo, nas sonoridades
produzidas, nos gestos que remetem a
lutas políticas, nas parcerias
construídas ao cantar, dançar e subir
ao palco, que Emicida faz encontrar o
vivido e o imaginado dessas duas
instâncias.
Contudo, em sua performance
não lugar para as diferenças, nem
para as contradições, nem para
discursos que embatem com o cenário
político social do país ou com a
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
ontem. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.282-304, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
trajetória seguida pelo Hip-Hop no
“caldeirão cultural brasileiro” ao
desembarcar por aqui. Pelo contrário,
lutas se encontram, gêneros musicais
afro-diaspóricos dialogam, os atores
evocados ecoam em uníssono e
atravessam a emergência daquele
momento único nessa história:
AmarElo.
Por fim, Emicida traz novamente
o ditado de Exu, para finalizar e reforça
a necessidade de refazer memórias a
partir de encontros no momento
presente. Assim, fecha-se um ciclo:
imagens do cotidiano, imagens do
Teatro Municipal, imagens do show,
imagens de ensaios, imagens das
comunidades periféricas continuam a
compor o cenário das narrativas.
Referências
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Referências fílmicas
AMARELO: É TUDO PRA ONTEM;
Direção: Fred Ouro Preto. Produção:
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
ontem. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.282-304, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Laboratório Fantasma. Netflix, 2020. 89
minutos. Disponível em:
https://www.netflix.com.
Referências musicais
CIDINHO E DOCA. Rap da Felicidade.
Álbum: eu só quero ser feliz. 1994.