ISSN 2237-1508
Niterói / RJ, Ano 15, n. 28, mar. 2025
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
"O Nordeste que você não viu": notas sobre
Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em
meio a antinegritude da Capital Afro
Gabriela Costa
Gustavo Rossi
- possibilidades de
uma economia criativa alternativa a partir das
experiências do movimento Hip-Hop em
Florianópolis
Alice Hübner Franz
Eloise Livramento Dellagnelo
Gritos na margem: a revolta discursiva
presente no Hip-Hop e a imaginação política
como farol
Renan da Silva Palácios
Jenniffer Simpson dos Santos
Entre o biográfico e o coletivo: fabulações em
torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo:
é tudo pra ontem
Caio Barbosa
Rosane Sampaio
ENTREVISTA / INTERVIEW
Sobre continuidades e descontinuidades na
cultura Hip-Hop: o caso de Moçambique.
Entrevista com Simba Sítoi, artista de Hip-
Hop moçambicano
William de Goes Ribeiro
Laís Volpe Martins
Nelson/Simba Sitói
DOSSIÊ
Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e
as transformações da cultura
Apresentação do dossiê
William de Goes Ribeiro
Flávio Soares Alves
Rosenverck Estrela Santos
A experiência delas no Hip-Hop: uma leitura
sobre comunicação e resistência na Batalha
do Som
Thífani Postali
Giovanna Hellen Meira Silva
As Batalhas de Rimas como ferramenta na
Gestão Participativa Urbana: um caso em
Campos dos Goytacazes/RJ
Carla Aparecida da Silva Ribeiro
Aline Couto da Costa
Simonne Teixeira
As batalhas de rimas improvisadas do
movimento Hip-Hop no Parque Cimba, em
Araguaína-TO: práticas de letramento de
reexistência da juventude periférica
Leomar Alves de Sousa
Eliane Cristina Testa
Slam Xamego: amor como resistência no Hip-
Hop do Espírito Santo
João Otávio Almeida
Lara Brum de Calais
O Hip-Hop na linha do tiro: Rap noventista e
a denúncia estética da necropolítica
Enio Passiani
Róbson Peres da Rocha
um Raio X do Brasil e a exposição da
Colonialidade
Lucas dos Anjos
José Roberto Rodrigues
(Re)construção do ethos e da identidade
negra em duas canções do álbum Ladrão, de
Djonga
Leandro Moura
Benedicto Roberto Alves Carlos
Rimas de resistência: ideias políticas no rap
de Preta Lu
Antônio Ailton Penha Ribeiro
Victor de Oliveira Pinto Coelho
P r a g M AT I Z E S
Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura
Ano 15 nº 28 - março/2025
EDITORES EXECUTIVOS
João Domingues, Universidade Federal Fluminense, Departamento de
Arte, Brasil
Luiz Augusto F. Rodrigues, Universidade Federal Fluminense,
Departamento de Arte, Brasil
CONSELHO EDITORIAL
Adair Rocha, Universidade do Estado do Rio de Janeiro / Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil
Adriana Facina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Ahtziri Molina Roldán, Universidad Veracruizana, México
Alberto Fesser, Socio Director de La Fabrica em Ingenieria Cultural /
Director de La Fundación Contemporánea, Espanha
Alexandre Barbalho, Universidade Estadual do Ceará, Brasil
Allan Rocha de Souza, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,
Brasil
Ana Enne, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Angel Mestres Vila, Universitat de Barcelona, Espanha
Antônio Albino Canela Rubin, Universidade Federal da Bahia, Brasil
Carlos Henrique Marcondes, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Christina Vital, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Cristina Amélia Pereira de Carvalho, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Brasil
Daniel Mato, Universidade Nacional Tres de Febrero, Argentina
Danielle Brasiliense, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Deborah Rebello Lima, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Durval Muniz de Albuquerque Jr., Universidade Estadual da Paraíba,
Brasil
Eduardo Paiva, Universidade Estadual de Campinas, Brasil
Edwin Juno-Delgado, Université de Bourgogne / ESC Dijon, campus
de Paris, França
Eloisa Porto C. Allevato Braem, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Brasil
Fábio Fonseca de Castro, Universidade Federal do Pará, Brasil
Fernando Arias, Observatorio de Industrias Creativas de la Ciudad
de Buenos Aires, Argentina
Flávia Lages, Universidade Federal Fluminense, Brasil
George Yúdice, Universidae de Miami, Estados Unidos da América
Gizlene Neder, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Guilherme Werlang, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Hugo Achugar, Universidad de la Republica, Uruguai
Idemburgo Pereira Frazão, Unigranrio, Brasil
Isabel Babo, Universidade Lusófona do Porto, Portugal
João Domingues, Universidade Federal Fluminense, Brasil
João Guerreiro, Instituto Federal do Rio de Janeiro, IFRJ, Brasil
José Luís Mariscal Orozco, Universidad de Guadalajara, México
José Márcio Barros, Universidade Estadual de Minas Gerais / PUC
Minas, Brasil
Julio Seoane Pinilla, Universidad de Alcalá, Espanha
Lia Calabre, Fundação Casa de Rui Barbosa, Brasil
Lilian Fessler Vaz, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Lívia de Tommasi, Universidade Federal do ABC, Brasil
Lívia Reis, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Luís Edmundo de Souza Moraes, Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro, Brasil
Luiz Augusto Fernandes Rodrigues, Universidade Federal Fluminense,
Brasil
Luiz Guilherme Vergara, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Manoel Marcondes Machado Neto, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Brasil
Marcela A. País Andrade, Universidad de Buenos Aires, Argentina
Márcia Ferran, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Maria Adelaida Jaramillo Gonzalez, Universidad de Antioquia, Colômbia
Maria Manoel Baptista, Universidade de Aveiro, Portugal
Marialva Barbosa, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Marildo Nercolini, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Marina Bay Frydberg, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Mário Pragmácio Telles, Faculdades Integradas Hélio Alonso, Brasil
Marisa Schincariol de Mello, Universidade Cândido Mendes, Brasil
Marta Elena Bravo, Universidad Nacional de Colombia sede Medellín,
Colombia
Martín A. Becerra, Universidad Nacional de Quilmes, Argentina
Mónica Bernabé, Universidad Nacional de Rosario, Argentina
Muniz Sodré, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Orlando Alves dos Santos Jr., Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Brasil
Pâmella Passos, Instituto Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Patricio Rivas, Universidad de Chile, Chile
Paulo Carrano, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Paulo César Silva de Oliveira, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Brasil
Paulo Miguez, Universidade Federal da Bahia, Brasil
Priscilla Oliveira Xavier, Centro Universitário Carioca, Brasil
Renata Rocha, Universidade Federal da Bahia, Brasil
Ricardo Gomes Lima, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Rossi Alves Gonçalves, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Simonne Teixeira, Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy
Ribeiro, Brasil
Stefano Cristante, Università del Salento, Italia
Tamara Quírico, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Teresa Muñoz Gutiérrez, Universidad de La Habana, Cuba
Tunico Amâncio, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Valmor Rhoden, Universidade Federal do Pampa, Brasil
Vladimir Sibylla Pires, Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, Brasil
Victor Miguel Vich Flórez, Pontifícia Universidad Católica del Perú, Peru
Zandra Pedraza Gomez, Universidad de Los Andes, Colômbia
CONSELHO DE ÉTICA
Luiz Augusto F. Rodrigues, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Marina Bay Frydberg, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Rossi Alves Gonçalves, Universidade Federal Fluminense, Brasil
REALIZAÇÃO:
PARCEIROS e INDEXADORES:
PragMATIZES Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura.
Ano XV nº 28, (MAR/2025). Niterói, RJ: [s. N.], 2025. (Universidade
Federal Fluminense / Laboratório de Ações Culturais - LABAC e
Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades -
PPCULT)
Semestral
ISSN 2237-1508 (versão online)
1. Estudos culturais. 2. Planejamento e gestão cultural.
3. Teorias da Arte e da Cultura. 4. Linguagens e
expressões artísticas. I. Título.
CDD 306
Universidade Federal Fluminense - UFF
Instituto de Artes e Comunicação Social - IACS | Laboratório de Ações Culturais - LABAC
Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades - PPCULT
Rua Lara Vilela, 126 - São Domingos - Niterói / RJ - Brasil - CEP: 24210-590
pragmatizes.ega@id.uff.br
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura - ISSN 2237-1508
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
4
Sumário / Summary
p. 06 10
COLABORADORES DA EDIÇÃO / ISSUE S CONTRIBUTORS
p. 11 13
EDITORIAL / EDITORIAL
DOSSIÊ / DOSSIER
Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as transformações da cultura
Hip-Hop in Brazil: The production of meanings and the transformations of culture
Hip-Hop en Brasil: la producción de significados y las transformaciones de la cultura
p. 14 27
Apresentação do Dossiê 28 -Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
William de Goes Ribeiro, Flávio Soares Alves, Rosenverck Estrela Santos
p. 28 - 47
A experiência delas no Hip-Hop: uma leitura sobre comunicação e resistência na
Batalha do Som
Thífani Postali, Giovanna Hellen Meira Silva
p. 48 - 72
As Batalhas de Rimas como ferramenta na Gestão Participativa Urbana: um caso em
Campos dos Goytacazes/RJ
Carla Aparecida da Silva Ribeiro, Aline Couto da Costa, Simonne Teixeira
p. 73 - 96
As batalhas de rimas improvisadas do movimento Hip-Hop no Parque Cimba, em
Araguaína-TO: práticas de letramento de reexistência da juventude periférica
Leomar Alves de Sousa, Eliane Cristina Testa
p. 97 - 122
Slam Xamego: amor como resistência no Hip-Hop do Espírito Santo
João Otávio Vieira Carvalho Almeida, Lara Brum de Calais
p. 123 - 147
O Hip-Hop na linha do tiro: Rap noventista e a denúncia estética da necropolítica
Róbson Peres da Rocha, Enio Passiani
p. 148 - 164
e a Liberdade de Expressão: um Raio X do Brasil e a Exposição da
Colonialidade
Lucas Vinicius Ribeiro dos Anjos, José Roberto da Silva Rodrigues
p. 165 - 184
(Re) construção do ethos e da identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de
Djonga
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura - ISSN 2237-1508
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
5
Leandro Moura, Benedicto Roberto Alves Carlos
p. 185 - 210
Rimas de resistência: ideias políticas no rap de Preta Lu
Antônio Ailton Penha Ribeiro, Victor de Oliveira Pinto Coelho
p. 211 - 233
"O Nordeste que você não viu": notas sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis
em meio a antinegritude da Capital Afro
Gabriela Costa Lima, Gustavo Rossi
p. 234 - 259
de uma economia criativa alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop
em Florianópolis
Alice Hübner Franz; Eloise Livramento Dellagnelo
p. 260 - 281
Gritos na margem: a revolta discursiva presente no Hip-Hop e a imaginação política
como farol
Renan da Silva Palácios, Jenniffer Simpson dos Santos
p. 282 - 304
Entre o biográfico e o coletivo: fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário
"AmarElo: é tudo pra ontem"
Caio Barbosa, Rosane Sampaio
ENTREVISTA / INTERVIEW
p. 305 - 320
Sobre continuidades e descontinuidades na cultura Hip-Hop: o caso de Moçambique.
Entrevista com Simba Sítoi, artista de Hip-Hop moçambicano
William de Goes Ribeiro; Laís Volpe Martins; Nelson/Simba Sitói
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura - ISSN 2237-1508
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, mar. 2025.
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6
CONTRIBUIDORES DA EDIÇÃO
Alice Hubner Franz. Doutora em Administração pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC). Integrante do Observatório da Realidade Organizacional, SC
(UFSC). E-mail: alicefranz1@gmail.comm. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8475-
2178.
Aline Couto da Costa. Doutora em Arquitetura pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Docente no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
Fluminense (IFFluminense). E-mail: alinecoutoarquitetura@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-1533-2142.
Antônio Ailton Penha Ribeiro. Doutorando no Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Mestre em História pela
Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: antonio.ailton@discente.ufma.br.
ORCID: https://orcid.org/0009-0006-2959-5708.
Benedicto Roberto Alves Carlos. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em
Estudos Linguísticos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Estudos da
Linguagem pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). E-mail:
benedictorcarlos@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1593-4255.
Caio Barbosa. Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela
Universidade Federal da Bahia (POSCOM-UFBA). E-mail: caiobn.j@gmail.com.
ORCID: orcid.org/0000-0002-4212-7961.
Carla Aparecida da Silva Ribeiro. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em
Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
(UENF). E-mail: caarla.ribeiroarq@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-
9845-7903.
Eliane Cristina Testa. Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Docente na Universidade Federal do
Norte do Tocantins (UFNT). E-mail: eliane.testa@ufnt.edu.br. ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-0863-4297.
Eloise Livramento Dellagnelo. Doutora em Engenharia de Produção pela
Universidade Federal de Santa Catarina. Docente do Programa de Pós-graduação em
Administração (PPGAdm) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Pesquisadora do Observatório da Realidade Organizacional, SC (UFSC). E-mail:
eloiselivramento@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7586-0302.
Enio Passiani. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP).
Professor de Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), do
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e do Mestrado Profissional em
Segurança Cidadã, todos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: eniopassiani@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9937-4413.
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura - ISSN 2237-1508
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, mar. 2025.
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7
Flávio Soares Alves. Doutor em Educação Física e Esporte pela Universidade de
São Paulo (USP), Mestre em Artes pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) e Graduado em Educação Física Licenciatura Plena pela Universidade
Estadual Paulista (UNESP). Professor Assistente do Departamento de Educação
Física da UNESP, e docente do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Humano e Tecnologias e do Programa de Mestrado Profissional em Educação Física
em Rede Nacional. E-mail: flavio.alves@unesp.br. ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-1698-6535.
Gabriela Costa Lima. Mestranda nos Programas de Pós-Graduação em Antropologia
Social e Demografia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail:
costagabrielaconsultoria@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0009-0001-1983-
5927.
Giovanna Hellen Meira Silva. Graduanda em Tecnologia em Jogos Digitais pela
Universidade de Sorocaba (UNISO). Participante do grupo de pesquisas em
Comunicação Urbana e Práticas Decoloniais (CNPq- UNISO). E-mail:
giovanna.hellenmeira@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0009-0004-8406-8615.
Gustavo Rossi. Professor do Departamento de Antropologia da Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP). Doutor em Antropologia Social pela UNICAMP.
Foi pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Sociologia da Universidade
de São Paulo (USP) e na Universidade de Princeton e na UNICAMP. Foi Professor
Visitante no Departamento de Spanish and Portuguese Languages and Cultures da
Universidade de Princeton. Coordenador do Bitita (Núcleo de Estudos Carolina Maria
de Jesus - IFCH/Unicamp) e membro do APSA (Ateliê de Produção Simbólica e
Antropologia - IFCH/Unicamp). E-mail: lrossi@unicamp.br. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-7096-9966.
Jenniffer Simpson dos Santos. Doutora em Sociologia pela Universidade de
Coimbra. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPsi) da
Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados
(FCH/UFGD). E-mail: jennifersantos@ufgd.edu.br. ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-9323-0045.
João Otávio Almeida. Graduando em Psicologia pela Universidade Federal do
Espírito Santo (UFES), integrante do Grupo de Pesquisa Infâmias Resistências
(UFES) e integrante do Coletivo Ocupação Psicanalítica - ES.. E-mail:
joaootavio64@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0541-7203.
José Roberto da Silva Rodrigues. Mestre e Doutor em Ciências Humanas -
Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Professor Adjunto de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
pelo Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ). Foi um dos
fundadores e integrou o Programa de s-Graduação de Ensino em Educação Básica
(PPGEB). Co-coordena a linha de pesquisa Espaços Educativos, Memórias e
Desigualdades e é Vice-Líder do Laboratório de Ensino de História - LEH/CAp-Uerj.
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Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, mar. 2025.
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Integrante do Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Educação e Culturas - GECEC/PUC-
Rio e do Grupo de Pesquisa Patrimônio, Memória e Educação PAMEDUC/UFSC.
Principais temas de interesse: Currículo e Prática de Ensino de História, História de
África, dos Afrodescendentes e dos Povos Originários, Decolonialidades. Email:
zrsrodrigues@yahoo.com.br ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1941-1996.
Laís Volpe Martins. Mestranda no Programa de Pós-graduação em Cultura e
Territorialidades da Universidade Federal Fluminense (PPCULT/UFF). Bolsista da
Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do RJ. (Orientador:
William Ribeiro). E-mail: laisvolpemartins@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0009-
0006-9007-4354.
Lara Brum de Calais. Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF). Professora Adjunta do Departamento de Psicologia e do Programa de
Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail:
lara.calais@ufes.br. ORCID: https://orcid.org/0009-0006-0346-630X.
Leandro Moura. Doutor em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG). Mestre em Letras: Estudos da Linguagem e Licenciado em Língua
Portuguesa pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). E-mail:
leandro_slm@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6777-5773.
Leomar Alves de Sousa. Doutor em Linguística e Literatura pela Universidade
Federal do Tocantins (UFNT). Professor efetivo da educação básica na rede estadual
de ensino do Estado do Tocantins. E-mail: ramoel05@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-2898-6230.
Lucas Vinicius Ribeiro dos Anjos. Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(PPGedu/UNIRIO). Bolsista FAPERJ Nota 10 pelo PPGedu/UNIRIO. Especialista em
Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e o Mundo do Trabalho pela Universidade
Federal do Piauí (UFPI). Licenciado e Bacharelado em História pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas
Formação de Professores, Currículo (s), Interculturalidade e Pedagogias Decoloniais
(GFPPD). Email: lucasdosanjos@edu.unirio.br ORCID: https://orcid.org/0009-0000-
7658-424X.
Renan da Silva Palácios. Graduando em Psicologia pela Universidade Federal da
Grande Dourados (UFGD). E-mail: renan.palacioss@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0009-0005-5607-533X.
Róbson Peres da Rocha. Doutorando no Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS-UFRGS). Mestre
em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS-UFRGS).
Graduado em Comunicação Social - Habilitação em Publicidade e Propaganda pela
Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: robperesrocha@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-3281-2997.
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura - ISSN 2237-1508
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, mar. 2025.
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9
Rosane Sampaio. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia (POSCOM-UFBA).
Mestre em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da
Bahia (POSCOM-UFBA). E-mail: sampaiorosane042@gmail.com ORCID:
orcid.org/0009-0000-7792-4891.
Rosenverck Estrela Santos. Doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal
do Maranhão (UFMA), Mestre em Educação e Licenciado em História pela UFMA.
Atualmente é coordenador da Licenciatura em Estudos Africanos e Afro-brasileiros da
UFMA. É Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Gestão de
Ensino da Educação Básica (PPGEEB) da UFMA; Professor Permanente do
Programa de Pós-Graduação em Rede - Mestrado Profissional
(PROFHISTÓRIA/UFMA) e Professor do quadro permanente do Programa de Pós-
Graduação em Estudos Africanos e Afro-brasileiros (PPGAFRO/UFMA). E-mail:
re.santos@ufma.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7112-2705.
Simba Sitói. Artista de Hip-Hop em Moçambique. E-mail: simbasitoi@gmail.com.
Simonne Teixeira. Doutora em Filosofía i Lletras (História) pela Universitat Autònoma
de Barcelona/Espanha; Pós-doutorado na Escuela de Estudios Hispano-Americanos
(CSIC/Espanha, 2011/2012). Bolsista produtividade CNPq (2007-atual). Professora
associada da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). E-
mail: simonne@uenf.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2476-8247.
Thífani Postali. Professora Titular no Programa de Pós-Graduação em Comunicação
e Cultura da Universidade de Sorocaba (UNISO). Doutora em Multimeios pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pós-doutoranda no Programa de
Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de o Carlos (UFSCar).
Líder do grupo de pesquisas em Comunicação Urbana e Práticas Decoloniais (CNPq-
UNISO) e Diretora Científica da Rede de Estudos e Pesquisa em Folkcomunicação
(Folkcom). E-mail: thifanipostali@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-
0541-7203.
Victor de Oliveira Pinto Coelho. Doutor em História Social da Cultura pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Pós-doutorado pela Universitat
de Barcelona. Professor do Departamento de História edo Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). É um dos
líderes do grupo de pesquisa CNPq 'Poderes e Instituições, Mundos do Trabalho e
Ideias Políticas' (POLIMT/UFMA). E-mail: coelho.victor@ufma.br. ORCID:
http://orcid.org/0000-0002-3739-7748.
William de Goes Ribeiro. Tornou-se B-boy mais de 30 anos e atualmente é
dançarino profissional de Dança Charme, integrante dos Originais do Charme,
Companhia de Dança Charme formada por dançarinos com mais de 40 anos de idade.
Mestre e doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Atua como docente Adjunto IV em um dos cursos de Pedagogia da Universidade
Federal Fluminense (UFF) e na pós-graduação, docente e coordenador, no Programa
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura - ISSN 2237-1508
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
10
de Pós-graduação em Cultura e Territorialidades/PPCULT/UFF. E-mail:
wgribeiro@id.uff.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3940-7492.
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura - ISSN 2237-1508
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, mar. 2025.
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11
EDITORIAL
A edição é composta exclusivamente pelo dossiê Hip-Hop no Brasil: a produção
de sentidos e as transformações da cultura, organizado pelos colegas William de Goes
Ribeiro, Flávio Soares Alves e Rosenverck Estrela Santos. Esta opção se deu por
decisão editorial, e por duas razões. A primeira se porque estamos em processo
de transição de editores da Revista. Esta tem sido bastante complexa, na medida em
que nos encontramos em momento de intensificação do trabalho corrente de nosso
cotidiano docente. A segunda, e principal, é que recebemos um volume extenso de
propostas para o dossiê, o que permitiu que tivéssemos uma ótima edição para o
semestre.
O dossiê é composto da apresentação produzida pelos organizadores, de doze
textos produzidos para o dossiê temático, além de uma entrevista com o artista
moçambicano Simba Sítoi, realizada por um dos organizadores do dossiê, William de
Goes Ribeiro.
Além dos já citados organizadores, tivemos 25 autoras e autores publicando
nesta edição de PragMATIZES Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura.
Os autores, oriundos ou lotados em instituições, ficaram assim distribuídos: cinco
autoras/es do estado do Rio de Janeiro, quatro do estado de São Paulo, além da
presença dos estados da Bahia, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas
Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Tocantins, com dois autoras/es cada um.
[...]
Os mapas a seguir ilustram a procura por nosso periódico desde sua criação
em 2011) e, em seguida à relação dos autores que contribuíram com esta edição,
temos a Apresentação do dossiê temático.
João Domingues e Luiz Augusto Rodrigues
Editores
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura - ISSN 2237-1508
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
12
Agradecemos aos autores que até o primeiro semestre de 2025
publicaram conosco, representantes dos seguintes países:
Brasil:
349
Peru: 1
França: 2
Espanha: 6
Portugal: 4
Reino Unido: 1
Argentina: 8
Chile: 2
Colômbia: 6
Cabo Verde: 1
México: 7
EUA: 2
Canadá: 1
Moçambique: 1
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura - ISSN 2237-1508
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes
13
Agradecemos aos autores que até o primeiro semestre de 2025
publicaram conosco, representantes dos seguintes estados
brasileiros:
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2
5
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RIBEIRO, William de Goes; ALVES, Flávio Soares; SANTOS, Rosenverck
Estrela. Apresentação do Dossiê 28 -Hop no Brasil: a produção de
. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.14-27, mar.
2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Apresentação do Dossiê 28
-
William de Goes Ribeiro1
Flávio Soares Alves2
Rosenverck Estrela Santos3
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v15i28.67366
Esse dossiê temático se alia ao
movimento global de comemoração
dos 50 anos do Hip-Hop, marco
histórico alcançado em 2023. Trata-se,
portanto, de um necessário tributo a
essa manifestação que mais de
meio século tem transformado a
experiência dos jovens e demais
sujeitos, de diferentes gerações, em
distintas regiões do país, incluindo
cidades, aldeias e outras comunidades,
oportunizando uma produção de
1Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Adjunto na Universidade
Federal Fluminense (UFF), atuando nos cursos de graduação em Pedagogia e Geografia e no
Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades (PPCULT/UFF). E-mail:
williamgribeiro@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3940-7492.
2Doutor em Educação Física e Esporte (USP). Professor Assistente do Departamento de Educação
Física da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Docente do Programa de
Pós-Graduação em Desenvolvimento Humano e Tecnologias e do Programa de Mestrado Profissional
em Educação Física em Rede Nacional. E-mail: flavio.alves@unesp.br. ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-1698-6535.
3Doutor em Políticas blicas pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Docente do quadro
permanente do Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos e Afro-brasileiros da Universidade
Federal do Maranhão (PPGAFRO/ UFMA). E-mail: re.santos@ufma.br. ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-7112-2705.
sentidos mais significativa para seus
adeptos.
A ideia é que, muito mais do que
um dossiê, trata-se aqui de uma festa,
ou melhor, de um festival de textos que
gravitam ao redor das diferentes
expressões do Hip-Hop em território
nacional, sem esperar encerrar o
debate ou produzir qualquer pretensão
de totalidade de possibilidades. Assim,
enquanto festa, esse dossiê assume
uma tripla função:
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RIBEIRO, William de Goes; ALVES, Flávio Soares; SANTOS, Rosenverck
Estrela. Apresentação do Dossiê 28 -Hop no Brasil: a produção de
. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.14-27, mar.
2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
1. Oportunizar a aproximação
de diferentes autores e
pesquisadores brasileiros,
que têm em comum a paixão
pelo Hip-Hop como área de
interesse no campo da
produção acadêmico-
científico.
2. Celebrar a face produtiva do
Hip-Hop, isto é, a face que
expõe esse movimento como
um potente significante das
populações periféricas que
encontram no Hip-Hop uma
fonte inesgotável de
produção de sentidos.
3. Resistir e (re) existir, dentro
de um domínio de produção
de conhecimentos
acadêmico-científicos que
ainda reserva pouco espaço
para a difusão desta cultura.
E isso, por si só, é uma
conquista que merece
comemoração e que, em
última análise, nos instiga à
festa!
E por falar em festa, talvez seja
oportuno lembrar que tudo começou
com uma! Referimo-nos aqui àquela
lendária festa de rua (Block party),
organizada pelo DJ Kool Herc e por sua
irmã, Cindy Campbell, em 11 de agosto
de 1973, no bairro do Bronx, em Nova
York. O que poderia ter sido apenas
mais uma festa, dentre outras tantas,
trouxe um diferencial que mudou a
experiência das comunidades
periféricas. Em um mesmo evento se
viu, pela primeira vez, o encontro de
múltiplas linguagens artísticas: o break,
o rap, a música e o grafite.
Desviando da ideia de origem,
ressaltamos que essas diferentes
expressões artísticas existiam
enquanto prática social das populações
periféricas, no entanto, com essa união
oportunizada pelas festas de rua, o que
antes eram apenas construtos culturais
mais ou menos distintos, ganham uma
dimensão atual, marcada pela
hibridização que ampliou sobremaneira
o campo de produção de sentidos,
sobretudo da juventude periférica.
Unindo negros norte-
americanos, imigrantes porto-
riquenhos, cubanos, jamaicanos e
muitos outros moradores das periferias
de Nova York, o Hip-Hop não pode ser
entendido a partir de essencialismos,
mas como parte da produção cultural
diaspórica africana que envolve
imigração, descolocamentos,
territorialização, inspirações, fluxo e
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RIBEIRO, William de Goes; ALVES, Flávio Soares; SANTOS, Rosenverck
Estrela. Apresentação do Dossiê 28 -Hop no Brasil: a produção de
. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.14-27, mar.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
conexões entre diversos territórios do
Atlântico Negro (Gilroy, 2012).
Como nos informou Manuel
Castells (2006, p.76):
O rap, e não o jazz é o produto
dessa nova cultura, que também
expressa uma identidade, também
está fundada na história negra e
na longa tradição norte-americana
de racismo e opressão social, no
entanto, incorpora novos
elementos: a polícia e o sistema
penal como instituições centrais, a
economia do crime como o chão
de fábrica, as escolas como área
de conflito, as igrejas como
redutos de conciliação, famílias
madrecêntricas, ambientes
depauperados, organização social
baseada em gangues, uso de
violência como meio de vida. São
esses os novos temas da nova
arte e literatura negra nascidos da
nova experiência do gueto.
O Hip-Hop transformou-se numa
referência de resistência, alternativa de
lazer e expressão artística crítica de
uma parte considerável da juventude
norte-americana e, a partir de filmes,
músicas, discos, moda, revistas, foi
chegando em outros países e tomando
conta da forma de fazer arte, se vestir e
se comportar, sobretudo, de dos jovens
que viviam em áreas de desigualdade
social e racial.
A reunião destes elementos foi
tão potente para aquela comunidade
que se disseminou para outras, de
modo que, com o tempo, o Hip-Hop foi
se tornando uma referência ética,
estética, política, cultural e educacional
das populações periféricas ao redor de
todo o planeta, na medida em que
oferecia (e continua oferecendo) um
campo de produção de sentidos mais
intenso e afirmativo, mobilizado não
a despeito das forças de interdição, que
submetem os sujeitos periféricos à
lógica do capital, mas também, e
principalmente, na expressão singular
das forças de criação e resistência, que
dão vez e voz ao potencial de ação
destes jovens (e outros sujeitos de
gerações variadas do movimento), na
constituição de seus processos de
subjetivação.
Na esteira desta ideia, que
coloca o Hip-Hop em um horizonte de
alcance que toca dimensões éticas,
estéticas e existenciais, não demorou
muito para que essa manifestação se
esgueirasse para todas as esferas
sociais, inclusive a científica. Em pleno
ano de 2025, é possível encontrar o
Hip-Hop em diversas áreas de estudos,
tais como: Ciências Sociais, Educação,
Sociologia, Antropologia, História,
dentre outras.
Cabe salientar, no entanto, que
não é recente essa movimentação de
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RIBEIRO, William de Goes; ALVES, Flávio Soares; SANTOS, Rosenverck
Estrela. Apresentação do Dossiê 28 -Hop no Brasil: a produção de
. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.14-27, mar.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
estudos acadêmicos acerca do Hip-
Hop no cenário nacional. Os primeiros
materiais bibliográficos produzidos no
Brasil envolvendo o assunto datam da
segunda metade da década de 1980,
quando encontramos, por exemplo, a
dissertação de mestrado de Hermano
Vianna
Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional
da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. A referida dissertação deu
origem ao li
edição publicada em 1988. Embora
essa obra não trate exatamente do Hip-
Hop, que explora especificamente o
universo dos bailes Funk das periferias
do Rio de Janeiro, ela ajudou a aguçar
o interesse da comunidade universitária
sobre as manifestações da juventude
periférica até então invisibilizadas no
campo da produção acadêmico-
científica brasileira.
Um dos primeiros trabalhos
acadêmicos que exploraram mais
detidamente o Hip-Hop no contexto
nacional, foi a tese de doutorado do
historiador Micael Herschmann,
anos 1990 Funk e Hip-
defendida no Programa de Pós-
graduação em Comunicação e
Sociologia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Posteriormente, a
referida tese ganhou uma versão em
-Hop
data dos anos 2000. É importante
lembrar que esse referido livro foi
indicado como finalista do Prêmio
Jabuti, em 2001, na categoria Ciências
Humanas e Educação, o que revela, no
mínimo, a excelência e o pioneirismo
da obra na promoção e difusão desta
cultura urbana no âmbito da produção
de conhecimentos dentro da
universidade.
Dentro deste espectro de
produções bibliográficas sobre do Hip-
Hop no Brasil, não poderíamos deixar
de lembrar também da publicação
organizada por Elaine Nunes de
referência bastante significativa, haja
vista que abriu portas para pensar e
destacar o Hip-Hop como um
importante significante no âmbito
educacional, chamando a atenção da
comunidade escolar, particularmente
dos professores, a respeito da
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RIBEIRO, William de Goes; ALVES, Flávio Soares; SANTOS, Rosenverck
Estrela. Apresentação do Dossiê 28 -Hop no Brasil: a produção de
. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.14-27, mar.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
relevância desta cultura na promoção
do trabalho educativo.
Em meio a outras produções
sobre o tema produzidas dentro e fora
do Brasil, destacamos o livro do
pesquisador norte-americano Marc Hill,
(2014). Tal obra inspirou o debate
sobre o que Hill chamou de Pedagogia
Hip-Hop
pela comunidade acadêmica brasileira
na reflexão e inserção do Hip-Hop nas
escolas. Outra contribuição importante
de Hill foi sua visão etnográfica, sobre
o Hip-Hop, desenvolvida a partir de
uma disciplina escolar intitulada
-
salientou questões e dilemas naquele
país, ao passo que expôs motivações e
experiências, semelhantes e diversas,
do que poderíamos chamar de
A partir dos diversos trabalhos
acadêmicos que surgiram foi possível,
por meio das Ciências Humanas,
perceber que a cultura Hip-Hop se faz
atual no cotidiano de jovens pobres e
negros, possibilitando dialogar com
suas formas de captar, aprender,
conceber e interpretar a realidade,
redimensionando valores, projetos,
referenciais históricos, símbolos,
identidades diaspóricas. Assim, ocupa
espaços urbanos e públicos,
enfrentando as perseguições de um
contexto político e social ainda com
forte presença do autoritarismo da
ditadura civil-militar e da presença
sempre marcante do racismo. Alguns
autores e autoras nos ajudaram a
compreender esse fenômeno em fins
dos anos 1990 e começo do século XXI.
Silva (1998), por exemplo,
percebeu que o Hip-Hop era um
referencial dos comportamentos e
práticas dos jovens de periferia,
buscando valorizar suas identidades,
no contexto de cidades violentas,
desiguais e cada vez mais hostis aos
moradores pobres. Andrade (1999),
caracterizou a dimensão pedagógica
do Hip-Hop na constituição de formas
de aprender e de ensinar dos jovens
que faziam parte dessa manifestação.
Tella (2000), Guasco (2001) e Silva, F.
(2006) nos caracterizaram a
importância dessa manifestação
cultural na construção da identidade
negra e de uma interpretação crítica do
cotidiano periférico e da história. Cunha
Jr (2003) percebeu a constituição de
um movimento negro-juvenil.
Herschmann (1997), Rose (1997),
Martins (2005) e Silva, L. (2006)
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RIBEIRO, William de Goes; ALVES, Flávio Soares; SANTOS, Rosenverck
Estrela. Apresentação do Dossiê 28 -Hop no Brasil: a produção de
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Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.14-27, mar.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
entenderam o movimento Hip-Hop
como uma manifestação de resistência
que se proliferou e dialogou
contraditoriamente com a produção
cultural em contexto de mundialização.
Félix (2005), Herschmann (2000) e
Shusterman (2006) corroboraram com
a ideia de reciprocidade entre cultura e
política na gênese do Hip-Hop e de seu
emprego pela juventude negra e pobre
como um aspecto da resistência e
construção de valores positivos e auto-
afirmativos.
Destes levantes bibliográficos
supracitados, muitos outros surgiram
ao longo das duas primeiras décadas
nos anos 2000, e outras tantas obras
estão vindo, ou ainda estão por vir, o
que mostra o Hip-Hop também como
potente significante que circula no
universo acadêmico. De certa forma, a
apresentação deste dossiê temático
afirma essa potência, principalmente
porque acolheu contribuições de
autores de todo o território nacional, o
que é motivo suficiente para celebrar!
Além disso, importa destacar que
muitos dos artigos presentes no dossiê
são de pesquisadores e pesquisadoras
que se formaram, foram ou ainda
pertencem ao movimento Hip-Hop,
destacando, portanto, o agenciamento
e a produção de conhecimento oriundo
dos próprios integrantes do movimento.
É um conhecimento produzido de
dentro do movimento, a despeito da
negociação de sentidos, que em
diálogo com outros pesquisadores, as
diversas teorias sociais e a
universidade, nos enriquecem no
entendimento dessa manifestação
cultural e política tão importante na
contemporaneidade que é o Hip-Hop.
E é neste tom de celebração e
produção de saber diaspórico africano,
hibridizado como prática de
significação e agência, que esse doss
aqui se principia. Sua concepção foi
idealizada por William Goes Ribeiro,
cuja trajetória de vida se encontra com
o Hip-hop, seja como adepto ou
pesquisador. A ideia de um dossiê
específico parte do reconhecimento de
uma dívida pessoal, mas igualmente do
entendimento de que se trata de uma
cultura potente que conquista sujeitos
de maneira global-local. Os estudos do
mencionado pesquisador mobilizam a
ideia de que o contexto precisa ser
considerado radicalmente, o que
também é um mobilizador desta
proposta, a qual convoca
pesquisadores de diversas partes do
país a contribuir.
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RIBEIRO, William de Goes; ALVES, Flávio Soares; SANTOS, Rosenverck
Estrela. Apresentação do Dossiê 28 -Hop no Brasil: a produção de
. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.14-27, mar.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Na intenção de fazer da
organização deste dossiê um trabalho
coletivo e colaborativo, que ampliasse o
alcance desta iniciativa no âmbito da
produção de conhecimentos científico-
acadêmicos, os professores Flávio
Soares Alves e Rosenverck Estrela
Santos foram chamados a integrar o
quadro geral de organizadores,
completando a tríade que se
responsabilizou pela elaboração desta
presente obra. Os pontos de
intersecção que aproximam esses três
organizadores são suas experiências
artísticas e pessoais com o Hip-Hop,
mas também interesses acadêmicos e
interdisciplinaridades que d
reverberam.
O resultado do esforço coletivo e
colaborativo se apresenta aqui, neste
encarte, que contém 12 artigos
especialmente selecionados para
compor essa edição. Os vários artigos
em nosso dossiê representam uma
diversidade importante do Hip-Hop
brasileiro que os leitores poderão
conhecer. Para além dessa pluralidade,
também caminhos históricos
semelhantes, conexões e vínculos
parecidos. Na dialética da pluralidade e
semelhança, o Hip-Hop nacional traz
contribuições valiosas para a nossa
arte, cultura, política e estética.
Dentre essas muitas formas
semelhantes de se fazer Hip-Hop no
Brasil encontramos as batalhas de
rima. A maioria das cidades brasileiras
na atualidade conhece essas formas
estéticas e políticas de se produzir Hip-
A experiência delas no
Hip-Hop: uma leitura sobre
comunicação e resistência na Batalha
do Som de Thífani Postali e Giovanna
Hellen Meira Silva, podemos conhecer
no município de
Sorocaba-SP e, especialmente, a
presença e a participação feminina
nessa manifestação. Utilizando a teoria
da folkcomunicação, as autoras
destacam o machismo ainda insistente
nas atividades do movimento Hip-Hop,
porém, sem perder de vista o
agenciamento e protagonismo das
mulheres que se constroem enquanto
sujeitos de resistência.
As Batalhas de
Rimas como ferramenta na Gestão
Participativa Urbana: um caso em
Campos dos Goytacazes/RJ , de Carla
Aparecida da Silva Ribeiro, Aline Couto
da Costa e Simonne Teixeira, trata das
batalhas de rima de Campos dos
Goytacazes-RJ, discutindo processos
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RIBEIRO, William de Goes; ALVES, Flávio Soares; SANTOS, Rosenverck
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
de gestão participativa e ocupação
urbana da juventude negra e periférica.
Outra batalha de rima que se
apresenta em nosso dossiê é a do
Parque Cimba, em Araguaína-TO.
Leomar Alves de Sousa e Eliane
Cristina Testa buscam entender, a
As batalhas de
rimas improvisadas do movimento Hip-
Hop no Parque Cimba, em Araguaína-
TO: práticas de letramento de
reexistência da juventude periférica
práticas de letramento e a reexistência
da juventude periférica.
Não somente as batalhas de
rima tiveram espaço em nossa revista.
O slam também apareceu com suas
rimas potentes e críticas. O artigo de
João Otávio Almeida e Lara Brum de
Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito
Santo nos informa que o slam é uma
das vertentes da cultura Hip-Hop mais
praticadas na atualidade e o referido
texto nos diz como é que os jovens
negros e periféricos utilizando a
linguagem do amor, conseguem
construir caminhos de resistência
estética e política. Essa resistência
estética e política é também analisada
no texto de Róbson Peres da Rocha e
O Hip-Hop na
linha do tiro: Rap noventista e a
denúncia estética da necropolítica
que, além de analisar a década de 1990
com os índices alarmantes de violência
e a inserção profunda do Brasil no
modelo neoliberal de economia, nos
traz um conhecimento importante sobre
a denúncia que o rap elabora desse
momento histórico e da necropolítica
aplicada no Brasil contra a juventude
negra e periférica. O rap, nesse
contexto, constituiu um poderoso
veículo de crítica e conscientização
sobre diversos temas como periferia,
raça, classe, gênero e território.
Nessa denúncia que o rap
realiza, emergem no cenário musical
dezenas, centenas e milhares de
artistas sendo porta-vozes dessas
críticas e dessas produções de sentido.
Dentre esses, mais famosos ou não, no
nosso dossiê, destacam-se Racionais
s (SP), Djonga (MG) e Preta
(MA), mostrando como o Hip-Hop se
enraizou e se difundiu de Norte a Sul do
país. O texto de Lucas dos Anjos e José
liberdade de expressão: um Raio X do
Brasil e a exposição da Colonialidade
nos brinda com informações e análises
acerca do principal grupo de rap do
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RIBEIRO, William de Goes; ALVES, Flávio Soares; SANTOS, Rosenverck
Estrela. Apresentação do Dossiê 28 -Hop no Brasil: a produção de
. PragMATIZES - Revista Latino-
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Raio X do Brasil
debate em torno da colonialidade, os
autores, além de caracterizarem os
violentos e desiguais anos 1990, nos
apresentam os Racionais como o grupo
que resistiu e denunciou todo esse
contexto, incorporando a periferia, a
juventude negra e um discurso políico
potente do agenciamento negro. O
referido álbum, portanto, apresentou
um Brasil nada harmônico e pacifícico
para a juventude negra e periférica com
os efeitos ainda marcantes da
colonialidade do capitalismo e do
racismo.
o artigo (Re)construção do
ethos e da identidade negra em duas
canções do álbum Ladrão, de Djonga
de Leandro Moura e Benedicto Roberto
Alves Carlos faz uma análise da obra
de um dos mais conhecimentos rappers
do Brasil, o mineiro Djonga e mostra
como é que o artista, a partir de suas
letras e técnicas argumentativas,
descontrói e constrói novas imagens
sobre a população negra, diferente das
tão usuais formas de perceber o
negro como ladrão e violento . No
texto de Antônio Ailton Penha Ribeiro e
Rimas
de resistência: ideias políticas no rap de
Preta Lu
Lu, uma rapper de São Luís do
Rainhas
Rebeladas , articulando denúncias ao
racismo, machismo, desigualdades
sociais e discutindo a presença da
mulher negra na história. Esse texto é
interessante, também, por apresentar o
rap como fonte e documento histórico,
para além de seu caráter musical.
Nos múltiplos caminhos do Hip-
Hop no Brasil, o texto de Gabriela Costa
Lima e Gustavo Rossi, intitulado O
Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e
identidades juvenis em meio a
antinegritude da Capital Afro , nos
apresenta como o Hip-Hop baiano teve
que relacionar-se com o axé-music, em
seu momento de hegemonia musical e
discursiva. Em tal relação, estão
incorporadas análises sobre cultura e
identidade juvenis, religiões de matriz
africana e estética soteropolitana. Um
convite ao entendimento da pluralidade
do Hip-Hop em nosso país.
o artigo A gente não quer
dinheiro, a gente quer dinheiro,
- possibilidades de uma
economia criativa alternativa a partir
das experiências do movimento Hip-
Hop em Florianópolis de Alice Franz e
Eloise Livramento Dellagnelo, nos
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RIBEIRO, William de Goes; ALVES, Flávio Soares; SANTOS, Rosenverck
Estrela. Apresentação do Dossiê 28 -Hop no Brasil: a produção de
. PragMATIZES - Revista Latino-
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
apresenta a cultura Hip-Hop de
Florianópolis e como ela é importante
na constituição de uma economia
criativa.
Ainda nas trilhas da pluralidade,
Gritos na margem: a revolta
discursiva presente no Hip-Hop e a
imaginação política como farol de
Renan da Silva Palácios e Jenniffer
Simpson dos Santos aborda o
movimento Hip-Hop na cidade de
Dourados, Mato Grosso do Sul. No
texto, os autores, além de discutirem as
e
trazem a análise de
uma linguagem que, também, tem sido
muito utilizada como ferramenta de
análise e divulgação da cultura Hip-
Hop: o documentário.
Nas ondas audiovisuais do
Entre o
biográfico e o coletivo: fabulações em
torno do Hip-Hop no Documentário
AmarElo: é tudo pra ontem dos autores
Caio Barbosa e Rosane Sampaio faz
uma imersão em diálogo com o rapper
Emicida. Buscando articular o coletivo e
o biográfico, esse documentário,
conforme expressam os autores, fez
emergir as matrizes negras da cultura
brasileira e do Hip-Hop. O dossiê se
encerra com a entrevista intitulada
Sobre continuidades e
descontinuidades na cultura Hip-Hop: o
caso de Moçambique
William de Goes Ribeiro, Laís Volpe
Martins e Nelson/Simba Sitói. O texto
expõe uma entrevista remota, transcrita
e editada, com Simba Sitói (artista de
Hip-Hop em Moçambique), realizada
em 20 de junho de 2024. Trata-se de
um dos artistas mais influentes daquele
país, atuante na cultura Hip-Hop, como
rapper e produtor cultural. É idealizador
de importantes eventos ligados ao
tema, o que inclui o protagonismo do
jovem artista no Festival de Hip-Hop
Amor A Camisola. O trabalho explicita
elementos e questões pertinentes para
o estudo, aponta para o curso de
continuidades e de descontinuidades
de uma cultura globalizada, negociada
e ressignificada localmente. Ajuda-nos,
portanto, o que justifica a inclusão da
entrevista neste dossiê, a reforçar o
nosso argumento em torno do processo
complexo e dinâmico da referida cultura
Em seu conjunto geral, este
dossiê se preocupou em reunir artigos
que aproximassem o campo da cultura
e da territorialidade dos múltiplos
olhares que envolvem o significante
Hip-Hop. Assim, cuidando para não
fechar o enquadre discursivo em um
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RIBEIRO, William de Goes; ALVES, Flávio Soares; SANTOS, Rosenverck
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
único referencial teórico, este dossiê se
abriu às diversas propostas, acolhendo
a heterogeneidade, que instiga à
verificação de um Hip-Hop sempre
outro, jamais plenamente objetificado e
conhecido. Neste sentido, os textos
selecionados deram vazão às
abordagens multi/interculturais,
cuidando para evidenciar um campo
em aberto constituído em torno de
leituras de/des/pós/contra coloniais,
dentre outras.
Hill, aqui citada, não pretendemos
buscar receitas para qualquer área de
atuação e estudo, tampouco fórmulas
Diferentemente, os textos aqui
apresentados expuseram, cada um a
seu modo, a falência de concepções
pedagógicas e políticas planejadas de
antemão, as quais ignoram o contexto
e as relações cotidianas imprevisíveis e
imponderáveis.
Assim, reconhecemos o
panorama transnacional e transcultural
do Hip-Hop, envolvendo territorialidade
e desterritorialidades, contendo
hibridismo, fluidez, mudanças, misturas
e pluralidades na forma de se produzir
rap, break e grafite, nas diversas partes
do mundo e do território brasileiro, de
Norte a Sul. É, portanto, a forma que
aderimos para se entender o Hip-Hop,
longe de essencialismo,
homogeneidade e certezas inabaláveis.
cultura hip-hop são formas culturais,
políticas e comerciais e, para muitos
jovens, são as principais janelas
culturais, sonoras e linguísticas no
No conjunto geral das reflexões
presentes nesse dossiê, com uma
tendência de enfoque no rap, é
possível notar que os textos
oportunizaram a ampliação de um
diálogo interdisciplinar com a cultura
Hip-Hop em todo território nacional,
possibilitando a discussão de
alternativas a respeito de demandas
sociais específicas, histórica e
socialmente situadas, o que permitiu
focar nas produções de sentido
constituídas e em suas relações com as
lutas históricas das populações
periféricas, com uma preocupação
mais acentuada com as comunidades
negras e indígenas no Brasil. Porém,
além de admitirmos que não
recebemos uma diversificação de
textos interdisciplinares ligados aos
elementos mais diversos da cultura
25
RIBEIRO, William de Goes; ALVES, Flávio Soares; SANTOS, Rosenverck
Estrela. Apresentação do Dossiê 28 -Hop no Brasil: a produção de
. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.14-27, mar.
2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Hip-Hop, salientamos que o tema
indígena não emergiu nesta proposta.
A despeito disso, cumpre salientar que
desde os anos 2010 se intensifica um
movimento de pesquisas que buscam
dar visibilidade à indigenização do rap
no Brasil, segundo estudos realizados
por um de nós (Ribeiro,2020;
Ribeiro,2021).
Na esteira desta ideia mais plural
e contextual da cultura, os textos
apresentaram pistas potentes para a
compreensão das formas como os
adeptos do Hip-Hop significam essa
cultura, e como essa significação
reverbera para seus modos de viver,
pensar e produzir conhecimento. Nesta
direção, as reflexões suscitadas deram
indícios sobre os processos de
subjetivação, sobre os sentimentos de
pertencimento, as territorialidades e as
condições de vida. Destacamos ainda a
articulação dessa cultura com os
processos de identificação da
população negra - e mais recentemente
indígena, com o potencial que o Hip-
Hop tem demonstrado na composição
de leituras críticas da realidade,
especialmente, envolvendo processos
de subjetivação juvenil.
Em diversas áreas e sob
perspectivas as mais distintas, os
textos presentes nesse dossiê também
nos convidam a pensar que as
produções acadêmicas e a vida
cotidiana se hibridizam, mas também
se desencontram, instigando-nos,
sempre uma vez mais, à escuta, à
experiência e, por fim, à escrita, em um
sentir-pensar-agir permanentes, que
tocam a diferenciação dos sentidos.
Isso porque os sentidos não se
esgotam em uma única obra, mas se
atualizam constantemente a cada novo
encontro com o Hip-Hop. Nesta
proposta, essa manifestação se reedita
permanentemente como força de
criação e resistência, a partir de uma
população potente e inquieta que ousa
reexistir, em meio a conflitos sociais,
raciais, de gênero, interseccionais e
outros, promovendo uma política,
sustentando subjetividades,
produzindo sentidos.
No caso do Brasil, a referida
cultura, na heterogeneidade e
hibridização, permanece viva em uma
dinâmica singular, em virtude de
ressignificações e de criativas
produções, tornando o Hip-Hop cada
Teperman (2015) com o rap no país são
um exemplo do exposto. Através do
26
RIBEIRO, William de Goes; ALVES, Flávio Soares; SANTOS, Rosenverck
Estrela. Apresentação do Dossiê 28 -Hop no Brasil: a produção de
. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.14-27, mar.
2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
rap
que é regional, queer, feminista,
indígena e muito mais. Por sua vez, não
é de hoje que o grafite ganha as
galerias e ocupa muros em escolas e
espaços além das paredes e trens
norte-americanos, a dança de rua que
décadas invadiu as academias de
ginástica, com o break hoje se
sua recente inclusão na última edição
das Olimpíadas, realizada em Paris, em
2024.
Em suma, desejamos que esta
festa tenha provocado o público leitor
desta revista, interpelando-o através do
convite para entrar na roda, tecer suas
rimas ou mesmo trocar ideias dentro-
fora da academia a respeito do Hip-
Hop. Agradecemos a cada pesquisador
que dedicou suas escritas e nos
encaminhou os seus estudos,
confiando a nós uma avaliação. O que
interessa é a rede que estamos
ampliando, as propostas em curso e o
destaque para o Hip-Hop enquanto
uma potência global que se ressignifica
localmente com toda a sua força.
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POSTALI, Thífani; SILVA, Giovanna. A experiência delas no Hip-Hop: uma
leitura sobre comunicação e resistência na Batalha do Som. PragMATIZES
- Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n.
28, p.28-47, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
A experiência delas no Hip-Hop: uma leitura sobre comunicação e resistência
na Batalha do Som
Thífani Postali1
Giovanna Hellen Meira Silva2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v15i28.65548
Resumo: Tendo em vista que a cultura Hip-Hop é uma ferramenta de comunicação e resistência contra
as diversas opressões sociais, este trabalho tem como objetivo identificar a presença e a participação
das mulheres na Batalha do Som do Santa Bárbara Batalha de rima localizada na cidade de Sorocaba
SP e os discursos que especificam as experiências das mulheres no movimento. Para tanto, faz uso
da teoria da Folkcomunicação para compreender a cultura popular urbana como mecanismo de
comunicação e da etnografia da cidade como metodologia para a coleta e interpretação dos dados
levantados em pesquisa de campo. Como resultados, o trabalho apresenta que a participação das
mulheres ainda é restrita na Batalha do Som. Apesar de se apresentar como um evento respeitoso no
que se refere a participação das mulheres, os dados demonstram que, de modo geral, o formato das
batalhas inibem a participação feminina por serem, em essência, ambientes hostis. Ainda, as
informações coletadas revelam que pouco envolvimento dos homens quando os assuntos envolvem
conteúdos mais profundos, especialmente no que se refere às experiências das mulheres em
sociedade. Por outro lado, ainda que pouca, a participação feminina fortalece a entrada de outras
mulheres que se reconhecem também como sujeitas da resistência.
Palavras-chave: comunicação; resistência; mulheres; Batalha do Som.
Their experience in Hip-Hop: an analysis of communication and resistance in the Santa
Bárbara Sound Battle
Abstract: Considering that Hip-Hop culture serves as a tool for communication and resistance against
various social oppressions, this study aims to identify the presence and participation of women in the
a rap battle located in Sorocaba, SP and to analyze the discourses
that articulate women's experiences within the movement. To this end, it employs the theory of
1Doutora em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Realiza Estágio de
Pós-doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de São
Carlos (UFSCar). Docente no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da
Universidade de Sorocaba (UNISO). Líder do grupo de pesquisas em Comunicação Urbana e Práticas
Decoloniais (CNPq- UNISO) e Diretora Científica da Rede de Estudos e Pesquisa em Folkcomunicação
(Folkcom). E-mail: thifanipostali@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0541-7203.
2Graduanda em Tecnologia em Jogos Digitais pela Universidade de Sorocaba (UNISO). Participante
do grupo de pesquisas em Comunicação Urbana e Práticas Decoloniais (CNPq- UNISO). E-mail:
giovanna.hellenmeira@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0009-0004-8406-8615.
Recebido em 29/11/2024, aceito para publicação em 20/12/2024.
29
POSTALI, Thífani; SILVA, Giovanna. A experiência delas no Hip-Hop: uma
leitura sobre comunicação e resistência na Batalha do Som. PragMATIZES
- Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n.
28, p.28-47, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Folkommunication to understand urban popular culture as a communication mechanism and utilizes
ethnography of the city as a methodology for the collection and interpretation of data gathered through
field research. The findings indicate that women's participation in the Sound Battle remains limited.
Although it is presented as a respectful event regarding women's involvement, the data demonstrate
that, in general, the format of the battles inhibits female participation, as they are, by nature, hostile
environments. Furthermore, the collected information reveals minimal male engagement when the
topics pertain to deeper issues, particularly in relation to women's experiences in society. Conversely,
albeit limited, female participation strengthens the inclusion of other women who also recognize
themselves as subjects of resistance.
Keywords: communication; resistance; women;
La experiencia de las chicas nel Hip-Hop: una lectura sobre comunicación y resistencia en la
Batalla del Sonido de Santa Bárbara
Resumen: Dado que la cultura Hip-Hop es una herramienta de comunicación y resistencia contra
diversas opresiones sociales, este trabajo tiene como objetivo identificar la presencia y participación de
las mujeres en la Batalla del Sonido de Santa Bárbara una batalla de rimas ubicada en la ciudad de
Sorocaba, SP y los discursos que especifican las experiencias de las mujeres en el movimiento. Para
ello, se utiliza la teoría de la Folkcomunicación para comprender la cultura popular urbana como un
mecanismo de comunicación y se emplea la etnografía de la ciudad como metodología para la
recolección e interpretación de los datos obtenidos en la investigación de campo. El trabajo presenta
que la participación de las mujeres sigue siendo restringida en la Batalla del Sonido. A pesar de que se
presenta como un evento respetuoso en cuanto a la participación de las mujeres, los datos demuestran
que, en general, el formato de las batallas inhibe la participación femenina, ya que son, en esencia,
ambientes hostiles. Además, la información recopilada revela que hay poco involucramiento de los
hombres cuando los temas abordan contenidos más profundos, especialmente en lo que se refiere a
las experiencias de las mujeres en la sociedad. Por otro lado, aunque limitada, la participación femenina
fortalece la entrada de otras mujeres que también se reconocen como sujetas de la resistencia.
Palabras clave: comunicación; resistencia; mujeres; Batalla del Sonido de Santa Bárbara.
A experiência delas no Hip-Hop: uma leitura sobre comunicação e resistência
na Batalha do Som
Introdução
Afrika Bambaataa, fundador do
Hip-Hop, sugeriu que durante a
ascensão desse movimento em Nova
York, Estados Unidos, nos anos 1970,
os participantes deixassem os conflitos
de gangues e a violência recorrente
produzida por esses episódios por
intermédio do Hip-Hop e seus quatro
elementos: DJ, MC, break e grafite
(Teperman, 2015). Tendo em vista o
uso do Hip-Hop para promover o que
Bambaataa chamou de negatividade,
ou seja, o uso das práticas artísticas
30
POSTALI, Thífani; SILVA, Giovanna. A experiência delas no Hip-Hop: uma
leitura sobre comunicação e resistência na Batalha do Som. PragMATIZES
- Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n.
28, p.28-47, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
para promover o contrário da intenção
do movimento, Bambaataa criou o
quinto elemento que é o
(2011), o conhecimento se refere ao
uso dos elementos para a promoção da
conscientização social e resistência
aos problemas enfrentados pelas
pessoas periféricas.
Assim, o Hip-Hop tornou-se um
movimento cultural mundial que tem
como característica a denúncia, através
de seus elementos, de temas político-
sociais como o caos presente nas
periferias, a violência policial, o racismo
e o machismo, e também apresenta
assuntos como ostentação e dinheiro
na busca por uma vida mais digna, com
menos desigualdade (Lima, 2019).
Segundo Gomes (2019), com a
chegada do Hip-Hop no Brasil, em
meados da década de 1980, as
batalhas de rima também ganharam
popularidade com os movimentos
culturais periféricos que formaram a
capacidade singular de criar
tecnologias sociais, como as próprias
batalhas de rima, para preencherem os
vazios deixados pela desigualdade
social. As batalhas de rima tratam-se
do enfrentamento entre jovens por meio
de rimas criadas na hora, com tempo e
ritmo determinados. Vence a/o MC que
melhor agradar os jurados ou o público.
De acordo com Cura (2019) as rodas
culturais, denominadas batalhas de
rima, ocuparam espaços públicos em
busca de sua revitalização,
ressignificando esses lugares em prol
das artes de rua contempladas no Hip-
Hop.
Ao ocuparem espaços públicos
urbanos, as Batalhas fazem com que o
Hip-Hop se fortaleça como um
movimento social onde os coletivos
urbanos agem na vida das pessoas,
geralmente jovens, sendo um
instrumento sociocultural para o
desenvolvimento de suas identidades e
pensamentos políticos (Gomes, 2019).
Cabe ressaltar que os temas
mudam conforme os grupos sociais.
Mulheres periféricas, por exemplo,
abordam com mais frequência suas
experiências sociais, havendo nos
conteúdos maior frequência de
assuntos relacionados às inúmeras
violências que essas mulheres sofrem
nos espaços urbanos. Assim, tendo em
vista que a cultura Hip-Hop é uma
ferramenta de comunicação e
resistência contra as diversas
opressões sociais, este trabalho tem
como objetivo identificar a presença e a
31
POSTALI, Thífani; SILVA, Giovanna. A experiência delas no Hip-Hop: uma
leitura sobre comunicação e resistência na Batalha do Som. PragMATIZES
- Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n.
28, p.28-47, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
participação das mulheres na Batalha
do Som do Santa Bárbara batalha de
rima realizada na cidade de Sorocaba
SP, e os discursos que especificam as
experiências das mulheres no
movimento. Para tanto, faz uso da
teoria da Folkcomunicação (Beltrão,
1980) para compreender a cultura
popular urbana como mecanismo de
comunicação, e da etnografia na cidade
(Magnani, 2002) como metodologia
para a coleta e interpretação dos dados
levantados em pesquisa de campo. A
pesquisa envolveu a presença e
participação de três edições da Batalha
do Som, ocorridas nos dias 16, 17 e 18
de novembro de 2024. Além da
observação do evento e anotações em
diário de campo, houve coleta de dados
em formato de fotografia e vídeo, e
foram aplicadas entrevistas
semiestruturadas com quatro mulheres
presentes nas edições, com termo de
assentimento e uso de imagem
assinado por cada participante da
pesquisa. Também houve entrevista
com um dos organizadores do evento.
Por este artigo estar vinculado ao
delas na cidade: práticas culturais e
comunicações das mulheres periféricas
e do Hip-
ao Centro de Ciências Humanas e
Biológicas da Universidade Federal de
São Carlos (UFSCar), informa-se que a
coleta de dados foi aprovada pelo
Comitê de Ética em Pesquisa da
Universidade de Sorocaba (UNISO),
sob parecer 7.078.071, na Reunião do
Colegiado CEP UNISO, no dia 16 de
setembro de 2024.
Como resultado, o trabalho
apresenta que a participação das
mulheres ainda é restrita na Batalha do
Som. Apesar de se apresentar como
um evento respeitoso no que se refere
à participação das mulheres, os dados
demonstram que, de modo geral, o
formato das batalhas inibe a
participação feminina por serem, por
essência, ambientes hostis ao público
feminino. Ainda, as informações
coletadas revelam que pouco
envolvimento dos homens quando os
assuntos citam conteúdos mais
profundos, especialmente no que se
refere às experiências das mulheres
em sociedade. Por outro lado, ainda
que pouca, a participação feminina
incentiva a entrada e fortalece a
permanência de outras mulheres que
se reconhecem também como sujeitas
da resistência.
32
POSTALI, Thífani; SILVA, Giovanna. A experiência delas no Hip-Hop: uma
leitura sobre comunicação e resistência na Batalha do Som. PragMATIZES
- Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n.
28, p.28-47, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Batalha de rima: a comunicação dos
grupos urbanos marginalizados
Conforme Cura (2019), as
batalhas de rima são eventos
organizados por jovens periféricos, em
que pessoas se enfrentam por meio da
rima criada no mesmo momento.
Geralmente, as batalhas possuem dois
alternando entre rounds de 30 a 45
segundos, tempo em que apresentam
seu improviso sobre uma batida de DJ,
ou de um beatbox3realizado no
momento. Por intermédio de um
apresentador, o ri e/ou o público
decide o vencedor da batalha após o
término das apresentações, que podem
perdurar mais que os usuais dois
rounds, através do barulho produzido
pela plateia, ou seja, o som mais alto i
determinar o ganhador.
dois tipos de batalha: a
atacam diretamente seu adversário
sendo permitido o chamado esculacho.
Esse tipo alcança maior prestígio e
visibilidade devido ao seu caráter
apelativo. Entretanto, segundo Cura
(2019), o MC deve conhecer o público
3beatbox é um tipo de batida musical orgânica;
feita com a boca. Ela serve como base para a
em que está se apresentando, uma vez
que as batalhas de sangue podem
conter rimas com teores racistas,
xenofóbicos, machistas e
LGBTQfóbicos.
a batalha de conhecimento
surgiu no Brasil com a proposta de MC
Marechal, de trocar o esculacho pela
suas rimas a partir de um tema
previamente escolhido através de
uma imagem, um filme, ou algum outro
conteúdo que possibilite a troca de
ideais e, através da batalha, promover
um debate sobre o assunto proposto,
exigindo que a pessoa demonstre seu
conhecimento sobre o tema (Alves,
2013).
Segundo Teperman (2015), a
batalha do conhecimento está atrelada
ao quinto elemento do Hip-Hop,
instituído por Afrika Bambaataa como o
rap, compreendido apenas como
entretenimento e mercadoria. Com o
conhecimento, Bambaataa defende a
ideia de que um membro do movimento
deve ter consciência de sua localização
social para que possa, através dos
fluência da música, ditando o ritmo do rap
(Campos, 2020)
33
POSTALI, Thífani; SILVA, Giovanna. A experiência delas no Hip-Hop: uma
leitura sobre comunicação e resistência na Batalha do Som. PragMATIZES
- Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n.
28, p.28-47, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
elementos culturais, conscientizar os
jovens periféricos e difundir o lema do
momento, o Hip-Hop passa a ser
compreendido como um movimento
cultural cujo objetivo é, além do
entretenimento, conscientizar as
pessoas que se encontram às margens
da sociedade, especialmente pessoas
as negras, uma vez que o Hip-Hop é
criado e em maioria praticado por
pessoas negras que lutam contra o
racismo estrutural (Oliveira, 2021).
Deste modo, segundo Alves (2013), os
pilares do Hip-Hop envolvem a difusão
das experiências dos grupos reprimidos
culturalmente, a transformação e
inclusão dos jovens em coletivos não
violentos, a formação e
desenvolvimento humano e social, a
promoção da autoestima de seus
membros e sua valorização.
O Hip-Hop, portanto, aqui é
tratado como uma potente ferramenta
de comunicação dos grupos urbanos
marginalizados (Postali, 2011). Para
essa assertiva, apoiamo-nos na teoria
da Folkcomunicação, que se debruçou
em compreender como a comunicação
se por meio de comunicadores e
canais não dominantes. Sendo uma
teoria genuinamente brasileira e
defendida por Luiz Beltrão, a
Folkcomunicação se trata do estudo
intercâmbio de informações, ideias,
opiniões e atitudes dos públicos
marginalizados urbanos e rurais,
através de agentes e meios direta ou
(Beltrão, 1980, p. 24). Para este
trabalho, interessam as produções e
conteúdos relacionados aos grupos
urbanos e culturalmente
marginalizados que segundo Beltrão
(1980), são os indivíduos excluídos
pelas camadas mais altas da sociedade
e que integram as classes carentes de
assistência social, de acesso facilitado
à informação e condições de acesso no
geral. os culturalmente
marginalizados, podem ser urbanos ou
rurais, e o que os define é a atitude em
questionar e abalar a estrutura social
vigente.
Desta forma, o Hip-Hop é uma
ferramenta de comunicação e não só
que questiona e abala as estruturas
sociais, por meio de mensagens que
desvelam as desigualdades sociais e
as violências experienciadas por
pessoas marginalizadas, além de
apresentar outras formas de viver,
34
POSTALI, Thífani; SILVA, Giovanna. A experiência delas no Hip-Hop: uma
leitura sobre comunicação e resistência na Batalha do Som. PragMATIZES
- Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n.
28, p.28-47, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
pensar e agir. Assim, as pessoas que
produzem e difundem as informações
por meio do Hip-Hop, podem ser
assimiladas as pessoas líderes-
comunicadoras folk, ou comunicadoras
agentes formadores de opinião que, a
partir das mensagens possibilitadas
pelos meios de comunicação de
massa, decodifica-as transformando
em outros códigos capazes de serem
compreendidos pelo público ao qual
p. 58).
No Hip-Hop, o público ao qual as
pessoas comunicadoras de folk dirigem
sua comunicação são os grupos
marginalizados que segundo Perlmann
desempregados, migrantes, membros
de outras subculturas, minorias raciais
e étnicas e transviados de qualquer
são impactadas pelo projeto colonial
que segundo Kilomba (2019, p. 47), são
atravessadas pelas estruturas de
opressão
suas vozes sejam escutadas,
tampouco proporciona um espaço para
A autora
ainda lembra que
A boca é um órgão muito
especial. Ela simboliza a fala e
a enunciação. No âmbito do
racismo, a boca se torna o
órgão da opressão por
excelência, representando o
que as/os brancas/os querem
e precisam controlar e,
consequentemente o órgão
que, historicamente, tem sido
severamente censurado
(Kilomba, 2019, p. 34).
Nesse cenário, as batalhas de
rima são organizadas, principalmente,
pelos grupos culturalmente
marginalizados que buscam oferecer
um espaço para ampliar as vozes das
pessoas que vem sendo,
historicamente, censuradas. Outro
ponto que merece destaque é que por
ser uma manifestação que prioriza o
discurso de resistência frente a
sociedade segregada, os eventos
tornaram-se exclusivos em cada lugar e
refletem as experiências também
localizadas, sejam socialmente e/ou
geograficamente (Postali, 2024).
Assim, para compreendermos
as mulheres que participam da Batalha
do Som, buscamos, antes, informações
e dados que refletem as situações
enfrentadas pelas mulheres periféricas
brasileiras.
Mulheres na sociedade e no Hip-Hop
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POSTALI, Thífani; SILVA, Giovanna. A experiência delas no Hip-Hop: uma
leitura sobre comunicação e resistência na Batalha do Som. PragMATIZES
- Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n.
28, p.28-47, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
De acordo com o mapa da
Violência Contra as Mulheres (2024),
pelo menos 48.289 mulheres foram
mortas na última década (2012 2022)
e de 2021 para 2022, não houve
melhora no índice, permanecendo no
patamar de 3,5 mortes para cada 100
mil mulheres brasileiras. Quando
recortamos as pesquisas para a
situação das mulheres negras
brasileiras, o mapa da Violência Contra
as Mulheres (2024) apresenta
situações ainda mais alarmantes. Em
2022 foram registradas 3.806 vítimas
de feminicídio no Brasil, sendo 2.526
desses casos de mulheres negras, ou
seja, 66,4% (Cerqueira; Bueno, 2024).
Como lembra Ribeiro (2017), é
como se as mulheres negras
possuíssem o dobro de chance de
serem assassinadas quando
comparadas às mulheres brancas. A
autora ressalta que essa discrepância
mostra a falta de um olhar étnico racial
daqueles que possuem os meios e a
voz para realizarem políticas que
impactem a vida das mulheres negras.
É necessário entendermos
então que quando essas mulheres
estão reivindicando e criando seus
lugares em batalhas de rima, também
estão lutando pelo direito à própria vida
(Ribeiro, 2017). Por essa arte servir
para que pessoas marginalizadas
possam contar sobre suas experiências
e vivências, ela deve ser um lugar
seguro para as mulheres e outros
grupos silenciados. Tem-se que o Hip-
Hop é um movimento cultural artístico
que busca representar e acolher,
independente de gênero, pessoas
marginalizadas e oprimidas
sobretudo negras (Lima, 2019).
Entretanto, ainda barreiras de
preconceitos que atravessam até
mesmo essa arte.
Em setembro de 2024, ao
periódico da CAPES, em todas as
áreas disponíveis no site, mais de 200
resultados foram encontrados, o que
evidencia o interesse acadêmico por
essa prática social. Entretanto, ao
buscarmos
qualquer outra categoria que possa
englobar a representatividade feminina
resultado. Os recortes sobre as
mulheres aparecem mais em pesquisa
via ferramenta Google Acadêmico e
estão em revistas científicas indexadas.
No geral, os trabalhos apresentam a
pouca participação das mulheres ou
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POSTALI, Thífani; SILVA, Giovanna. A experiência delas no Hip-Hop: uma
leitura sobre comunicação e resistência na Batalha do Som. PragMATIZES
- Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n.
28, p.28-47, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
situações em que as mulheres criam
seus próprios espaços para batalhar.
No livro Rio de Rimas, de Rossi
Alves (2013), ao abordar sobre as
batalhas de rima no Rio de Janeiro, é
comparável a falta de visibilidade
feminina tanto nos artigos acadêmicos
pesquisados, quanto nas próprias
batalhas de rima. Para a autora, muitas
vezes ocorrem rimas machistas e as
mulheres ficam restritas à plateia, com
raríssimas participações no palco.
Alves destaca que, em mais de um ano
de pesquisa, viu mulheres rimando em
dois ou três encontros, o que revela que
a batalha de rima é um espaço a ser
conquistado pelas mulheres.
Levantamento Sobre o Gênero Musical
Rap e a Presença de Mulheres Neste
Silva (2018) entrevistaram em 2017
duas rappers mulheres, de 20 e 24
anos, residentes em Volta Redonda/RJ
Brasil, que relataram terem
participado de batalhas de rima. Ambas
contam que, ao se depararem com as
rodas de rima, encontraram apenas
rappers homens batalhando.
unanimidade em suas respostas sobre
o fato de que o sexismo ocorre no
movimento de minorias, mas como
reflexo de uma sociedade
preconceituosa patriarcal.
em 2020, Marques e Fonseca
Mulheres Negras no rap por Meio das
Brasil, onde 11 mulheres negras, entre
19 e 25 anos, e de perfis variados,
cederam suas entrevistas. Essas
mulheres contaram sobre o medo da
rejeição que possuem sobre esses
espaços, uma vez que as batalhas são
predominantemente masculinas e
possuem conteúdos machistas. As
autoras, através dos relatos coletados,
apresentam que, pela falta de mulheres
nos encontros, não houve rima por
parte delas.
-Hop: a
Batalha Feminina de Rimas `Na Caneta
analisa entrevistas realizadas em 2019,
com três mulheres do movimento Hip-
Hop de São José dos Campos/SP
Brasil. As participantes contam que
seus trabalhos são julgados de forma
diferente pelos homens, por sentirem
que, o tempo todo, precisam mostrar a
eles que são merecedoras de
ocuparem o mesmo espaço, além do
menor retorno monetário. Devido ao
preconceito, essas mulheres criaram o
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POSTALI, Thífani; SILVA, Giovanna. A experiência delas no Hip-Hop: uma
leitura sobre comunicação e resistência na Batalha do Som. PragMATIZES
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
pudessem ter um espaço seguro para
expressar sua arte.
Postali e Nicoletti (2023), em
Batalha Beco das Mina:
Representatividade no Circuito do Hip-
Hop de Sorocaba
2022, a fundadora do coletivo. A
fundadora conta que, na falta de um
espaço seguro e sem o esculacho das
batalhas de sangue, decidiu criar o
evento para que as mulheres aqui,
majoritariamente negras e
LGBTQIAPN+ pudessem batalhar
sem ofensas verbais e que todas as
jovens interessadas em rima pudessem
se sentir acolhidas.
Assim, ao analisar o os
resultados dos artigos que abordam a
relação das mulheres com as batalhas
de rima, é possível notar a semelhança
entre as falas das entrevistadas: o
medo do julgamento masculino e a falta
de espaço, algo que transcende o
movimento Hip-Hop, uma vez que
espelha o modelo social patriarcal.
Siqueira lembra que:
Apesar de ser uma
manifestação cultural que
possui um caráter
revolucionário que denuncia as
opressões sofridas pelas
populações periféricas, negras
e de classe baixa, os
integrantes da cultura ainda
reproduzem valores sociais
machistas presentes na atual
ordem social estabelecida,
oprimindo as mulheres que
pertencem à cena,
inviabilizando-as e não dando
as mesmas oportunidades para
que elas produzam seus
trabalhos. (Siqueira, 2021, p.
14)
As mulheres, ao reivindicarem
seu lugar nesse espaço dominado por
homens, estão se opondo ao sistema
machista. Trata-se de um espaço que
privilegia o uso da linguagem para
discursar sobre as experiências sociais
dos grupos. Como coloca Ribeiro
(2017), o uso da linguagem como uma
barreira de poder é utilizado por grupos
sociais privilegiados para evitar o
compartilhamento das experiências das
minorias que precisam e querem ser
ouvidas. Assim, as rodas de rimas são
locais onde as mulheres e outros
grupos silenciados podem reivindicar o
direito de terem suas vozes ouvidas e
ampliadas.
Para conseguirem essa posição,
muitas mulheres se apoiam, impondo-
se e organizando-se.
A experiência delas na Batalha do
Som
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Tendo em vista a informação de
que a Batalha do Som, uma batalha de
rima realizada no bairro de Santa
Bárbara localizado na cidade de
Sorocaba SP, Brasil, acolhe mulheres
em suas edições, o trabalho buscou
responder como essas mulheres
participam desse evento e quais são
suas visões a respeito da participação
das mulheres nos eventos de Hip-Hop,
de modo geral. Assim, como
metodologia, utilizou da etnografia
urbana, a partir de Magnani (2002). A
abordagem do autor consiste na
observação das dinâmicas sociais, a
identificar padrões e práticas cotidianas
que escapam de uma visão generalista
e fragmentada.
A pesquisa de campo foi
realizada em 3 edições da Batalha do
Som, sendo nos dias 16, 17 e 18 de
novembro, das 19h às 22h. Como
técnicas para coleta de dados foram
realizadas entrevistas
semiestruturadas com as participantes,
anotações em diário de campo e
registro de imagens no formato de
fotografia e audiovisual com termo de
assentimento e uso de imagem
assinado por cada participante da
pesquisa. Os nomes das pessoas
entrevistadas estão ocultados por
motivo de sigilo. Para este trabalho,
foram entrevistadas 5 pessoas, sendo
Açucena (colaboradora na organização
do evento), Camélia (MC), Margarida
(ex. organizadora de batalha e
namorada de um participante), Lírio
(acompanha o movimento Hip-Hop e
namorada de um participante) e
organizadora.
Os encontros da Batalha do Som
ocorrem no Jardim Santa Bárbara, no
Parque Miguel Gregório de Oliveira.
Infelizmente, o parque não está
nomeado nos softwares de localização,
então, caso alguém queira comparecer
ao local, a pesquisa em softwares deve
ou o endereço do
Supermercado que fica na frente do
parque, que se localiza na Rua Doutor
Américo Figueiredo, no bairro lio de
Mesquita Filho.
A Batalha do Som teve início em
outubro de 2023 e, em novembro de
2024, houve um evento para a
comemoração do aniversário de um
ano do encontro. Ela é realizada às
segundas-feiras, a partir das 19h,
mesmo com a escolha do dia sendo
pouco convencional, ainda possui
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POSTALI, Thífani; SILVA, Giovanna. A experiência delas no Hip-Hop: uma
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
público o suficiente para realizar as
chaves das batalhas. Isso ocorre
porque muitos dos participantes
trabalham em outros dias da semana e
aos finais de semana. Esse é o caso da
Margarida, que conta que devido ao
seu trabalho, é a única batalha que
consegue frequentar, mesmo
expressando desejo em poder estar
presente mais frequentemente em
outras batalhas de Sorocaba. Por outro
lado, a localização da Batalha dificulta
o acesso de muitos jovens que vivem
em outros bairros periféricos da cidade
de Sorocaba. Esse é o caso da
Açucena, uma jovem estudante e uma
das atuais organizadoras e
frequentadoras que indicou que o local
é mais distante e que o dia da
realização torna mais difícil o acesso.
No que se refere ao formato da
batalha, são batalhas de sangue,
apesar de os organizadores buscarem
incluir conteúdos como livros e revistas
para que ocorram batalhas do
conhecimento. O material fica exposto
ao lado da caixa de som, em uma mesa
separada, para que as pessoas
possam ler, e inclusive, retirar para
leitura. A maior parte dos livros possui
temática de resistência, incluindo
autores e artistas negros. Ao ser
questionada sobre o motivo da mesa,
conhecimento, que as pessoas
consigam entender melhor as coisas. É
um movimento, né? Você trazer o
conhecimento também é um
Figura 1 Mesa com livros
Fonte: Elaboração própria
Em entrevista, um dos
organizadores (Organizador A) da
Batalha do Som disse que o seu
mulheres entrevistadas teceram
elogios e apresentaram o acolhimento
propiciado por ele.
Sobre as diferenças entre a
participação das mulheres na Batalha
do Som em relação às outras batalhas
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
de Sorocaba, Açucena e Margarida
relatam que durante um ano de
frequência no evento, viram apenas
duas mulheres rimando na Batalha do
Som, enquanto em outras batalhas
como a do Extremo Leste (não mais
existente) e a Batalha das Capivaras
(realizada na cidade de Votorantim),
existe maior presença de mulheres4.
Por outro lado, ao questionarmos sobre
a participação das mulheres nas
batalhas de modo geral, as pessoas
entrevistadas concordam ao dizer que
as mulheres estão mais presentes
como público do que como rappers
freestyles. Organizador A, diz sentir
que a participação feminina no Rap
(geral) é muito grande e fomentada,
mas isso não ocorre nas batalhas de
rima da Batalha do Som, sendo elas
questão de participação da batalha, eu
coloco hoje como um quatro de dez,
. Apesar de as
pesquisas mostrarem que a
participação das mulheres é pouca, no
que se refere ao movimento Hip-Hop de
4A presença de mulheres muda de acordo com
cada batalha. Entretanto, o estado da questão
apresenta que a participação das mulheres, de
modo geral, é bastante restrita em todo o Brasil.
Uma pesquisa realizada por um(a) dos(as)
autores(as) deste trabalho, durante o ano de
2023-2024, sobre outra batalha realizada na...
modo geral, cada experiência será
única. O Organizador A, por exemplo,
iniciou o seu contato com batalha de
rima em uma cidade pequena
interiorana, sendo o evento
predominantemente feminino.
Com relação a presença das
mulheres na batalha do Som foco
deste trabalho as três mulheres
entrevistadas na edição do dia 18 de
novembro de 2024 expressaram não
ter desconforto ou medo de se
deslocarem para o local, mesmo
ocorrendo no período noturno.
Sobre a integração de mulheres
na batalha, Açucena destaca que as
mulheres têm maior acesso quando se
relacionam com os homens envolvidos
com o evento e que, no início, sentiu
desconforto:
são acolhidas quando os homens
conhece
Joana, que é namorada de não sei
quem estava próximo deles ali [...].
Para mim foi muito difícil, por causa de
...mesma cidade, apresentou que a
participação das mulheres é mínima. Por
motivos de identificação, os dados serão
incluídos no caso de este trabalho ser
aprovado.
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POSTALI, Thífani; SILVA, Giovanna. A experiência delas no Hip-Hop: uma
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
que eu não tinha ninguém que me
conhecia assim [...]. Quando
começaram a me conhecer por conta
acabaram me taxando como isso,
sabe? Eu me senti desconfortável em
relação a isso, mas acabei me
Essa situação ficou evidenciada
quando três das quatro mulheres
entrevistadas revelaram serem
namoradas de algum participante ou
organizador de alguma batalha.
Com relação a participação
vergonha, timidez e medo foram
trazidos pelas entrevistadas nas
edições de 16 e 18 de novembro de
2024. Açucena acredita que a falta de
mulheres está relacionada, também, ao
pouco acolhimento por parte dos
homens:
começam da mesma forma que eu,
começa ali para assistir e não
conhece ninguém dali. Elas têm essa
vontade de rimar. Só que, por não
terem esse acolhimento acabam
. Complementando a fala de
Açucena, Margarida traz o medo das
mulheres por estarem em um lugar
onde a voz predominante é masculina.
Quando perguntadas sobre os
fatores pessoais que levariam as
mulheres a não participarem com mais
frequência das batalhas de sangue,
todas as entrevistadas mencionaram
que pode estar relacionado às
dificuldades que uma mulher enfrenta
no seu cotidiano e que frequentar uma
batalha de sangue é aumentar a
violência ocorrida no dia-a-dia, no
que diz respeito ao silenciamento,
esculacho, objetificação do corpo
feminino, questionamento sobre a
capacidade intelectual, entre outras
situações comuns em uma sociedade
pautada pelo machismo. Nas palavras
de Camélia,
uma vida mais complicada, mais
sofrida. E vo escuta muita coisa
.
Do mesmo modo, Açucena ressalta
que quando a mulher vai enfrentar um
homem filtro que
.
Sobre esse aspecto, as
entrevistadas também entram em
acordo sobre a não diferença de
tratamento dos homens em relação às
mulheres durante as batalhas. Para as
entrevistadas, eles as enfrentam como
enfrentam os seus pares. De acordo
com Açucena eles estão
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POSTALI, Thífani; SILVA, Giovanna. A experiência delas no Hip-Hop: uma
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
acostumados com batalhas de
agressão, esculacho, não tendo tato
para enfrentar as mulheres que já
trazem problemas de seu cotidiano.
Açucena lembra que esse é um reflexo
da própria sociedade.
Com relação ao conteúdo das
rimas, três das entrevistadas disseram
haver diferenças consideráveis entre os
temas com relação aos gêneros.
Segundo Margarida, a mulher prefere
. Do
mesmo modo, Lírio ressalta que
uanto a mulher quer passar a
visão, os homens sempre estão nessa
de atacar. Então você não uma
construção na rima deles do jeito que
você na rima de uma mulher. que
o público não entende dessa forma. A
gente é mulher, entende o que elas
estão querendo passar, a visão que
elas querem passar, mas o público em
compreendendo muito bem o que está
sendo dito ali. E acredito que por mais
que tenha o espaço, isso acaba
deixando a mulher num lugar que não é
tão legal dentro da batalha .
Importa esclarecer que os dados
coletados apontam que homens
também trazem problemas
majoritariamente sofridos por mulheres.
Durante uma das batalhas do dia 16 de
o caso Marielle Franco em sua rima
tiro nunca nos salvou, o tiro matou
. Todavia, cabe ressaltar que
essa foi a única referência sobre mulher
na batalha. Ao ser questionado sobre a
presença da mulher nas rimas
masculinas, o Organizador A disse que
a mulher quase sempre aparece com
respeito, se referindo a figura da mãe
situação foi constatada em outra
pesquisa realizada por uma das
autoras deste trabalho (Postali;
Tenório, 2025). Nesse dia, Camélia
participou como membro do júri da
batalha e um dos apresentadores
estava vestindo uma camiseta com a
imagem de uma mulher negra com
turbante.
Na Batalha do dia 17 de
novembro de 2024 houve a
participação de uma mulher
representante da Batalha das
Capivaras. Nessa batalha, não houve
constatação de ofensas referentes à
figura da mulher.
Para além da participação das
plateia, importa compreender a batalha
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POSTALI, Thífani; SILVA, Giovanna. A experiência delas no Hip-Hop: uma
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
como um espaço para conhecimento e
reconhecimento de pertencimento a um
determinado grupo social, no caso, os
grupos urbanos marginalizados,
independentemente de gênero.
Segundo Açucena, as batalhas, de
modo geral, a ajudaram a compreender
suas experiências e a se descobrir
como mulher negra: [...] eu sempre fui
uma pessoa que foi muito cercada por
pessoas brancas, pessoas ricas.
Falavam que eu era branca demais,
tem gente que falava que eu era preta,
tinha gente que falava que eu era
parda. Essas pessoas queriam me
rotular. E eu acho muito bom ficar
ouvindo durante as batalhas também,
ou conversando por fora com
assim eles contando um pouco da
história deles, de onde eles vieram, as
coisas que eles passaram. Faz eu me
entender melhor ver eles se
entendendo. Faz eu aprender a me
entender melhor como pessoa .
De modo geral, as participantes
compreendem as batalhas de rima
como um local para expressão e
Margarida, trata-se de um momento em
que a pessoa pode discursar sobre as
situações que afetam diretamente as
pessoas periféricas, mas também é um
momento de agradecer e expressar
outros assuntos. Sobre esse aspecto,
Lírio reforça a frase que é comum em
todos os elementos do Hip-Hop. A
vivencia a periferia do jeito que ela é.
entro da
batalha veem isso como algo que vai
ser profissional, que vai crescer, que
vai para outro lugar e ter oportunidade.
Então eu acho que batalha é um bote
salva vidas para muitas pessoas .
Por outro lado, bastante
dificuldade em manter um evento ativo
ou até mesmo seus participantes
frequentes. Isso ocorre porque as
batalhas são organizadas pela própria
comunidade em locais, na maioria dos
casos, periféricos e sem incentivo de
instituições públicas ou privadas.
Segundo Camélia,
perdendo a motivação por ser um
movimento um pouco difícil de se
trabalhar nele, de estar nele de
diversas formas; falta patrocínio, falta
ajuda de diversas formas. E a gente
acaba se dispersando. A gente precisa
de comida, precisa de um teto, precisa
trabalhar. Então a gente acaba
.
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POSTALI, Thífani; SILVA, Giovanna. A experiência delas no Hip-Hop: uma
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transformações da cultura")
É importante salientar que uma
das queixas dos participantes e
organizadores de eventos artísticos
periféricos de Sorocaba, é o descaso
do poder público sobre essas
iniciativas, privilegiando eventos
destinados a outros públicos e
organizados em regiões privilegiadas
da cidade. Parte desta pesquisa foi
realizada no evento da Semana do Hip-
Hop de Sorocaba que é parte da lei
municipal 7359/2005 que determina a
realização de shows, oficinas, debates
e atos públicos pela promoção da
inclusão cultural e social. Entretanto, o
local destinado ao evento é o Parque
dos Espanhóis, localizado em um lugar
de difícil acesso às pessoas que
participam e acompanham o
movimento Hip-Hop. No geral, essas
pessoas estão localizadas nas zonas
Norte e Oeste de Sorocaba, sendo o
Parque dos Espanhóis localizado na
Vila Assis, zona Leste. O próprio nome
do Parque revela que ali é uma região
habitada, especialmente, por
descendentes de espanhóis, o que não
reflete a realidade da maioria dos
participantes do movimento Hip-Hop de
Sorocaba.
Figura 2: Trajeto via ônibus Jardim Santa
Bárbara para Parque dos Espanhóis
Fonte: Google Maps
O trajeto de bairros como
Parque São Bento, Habiteto, Santa
Bárbara e Paineiras para citar alguns
que têm forte relação com o movimento
Hip-Hop é longo e custoso. O
percurso médio desses bairros para o
Parque dos Espanhóis é de 1h por
transporte público (ônibus). A
locomoção por carro leva 40 minutos e,
um Uber custa, em média, 20 reais.
Talvez por esses motivos o evento se
mostrou esvaziado nos dois dias de
atividades no parque.
Considerações finais
As batalhas de rima são espaços
de comunicação e troca de experiência
de jovens periféricos que fazem parte
do grupo urbano culturalmente
marginalizado, pois trazem em suas
artes informações e opiniões sobre a
vida na urbe. Os (as) organizadores
(as) são agentes folkcomunicacionais,
pois possibilitam que o encontro
aconteça, mesmo com todos os
empecilhos encontrados. As
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transformações da cultura")
comunicações são produzidas por meio
de linguagem popular e em formato e
canais em que a audiência se
reconhece, o que facilita a
compreensão e identificação com o
conteúdo, como a participante
Açucena, uma jovem de 19 anos,
colocou.
No que se refere às experiências
das mulheres na Batalha do Som, foi
possível observar situações comuns e
que refletem dificuldades não restritas
ao movimento Hip-Hop: da falta de
incentivo à arte urbana e periférica, de
modo geral, às dificuldades
encontradas pelas mulheres em
participar de um movimento que apesar
de oferecer espaço para que pessoas
periféricas possam se expressar, o
evento apresenta uma estrutura que
reproduz a dificuldade para as
mulheres acessarem determinados
espaços.
Dentre os achados, o trabalho se
diferencia de outros encontrados no
estado da questão ao levantar que para
além da dificuldade de se sentirem
acolhidas nas batalhas de rima, as
mulheres apresentam temas de
relevância social e que refletem suas
experiências na cidade, temas que não
são aceitos pelos homens que
preferem mudar o assunto e partir,
muitas vezes, para o esculacho, como
apresentou uma das entrevistadas.
Essa situação reflete o silenciamento
das mulheres sobre as questões que
atravessam o seu cotidiano, fazendo da
batalha um espelho de suas
experiências na cidade.
Ainda que haja a intenção e o
desejo dos organizadores de que mais
mulheres batalhem, essas situações
impedem que mulheres se sintam à
vontade para participar de forma ativa e
resistiva dos encontros. Talvez esse
seja o motivo de se encontrar mais
mulheres em evento de slam, formato
em que as pessoas levam suas poesias
prontas e não se enfrentam com a
possibilidade do esculacho. Importa
ressaltar que estamos pesquisando um
slam organizado na mesma cidade
para detectar as diferenças com
relação a batalha de rima.
Entendemos que a Batalha do
Som, diferente de outras, tem se
esforçado para alinhar-se mais à
batalha do conhecimento, ao incluir
livros, artes e estímulo ao debate
acerca de questões sociais. Por outro
lado, a batalha do conhecimento é
possível mediante regras que
determinem que algum assunto deve
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
ser abordado de forma irrefutável,
seguindo o ideal de MC Marechal e do
elemento do Hip-Hop. Nesse
contexto, acreditamos que a inserção
de questões que envolvem a
experiência das mulheres na sociedade
pode contribuir para promover o
conhecimento sobre elas e assim tornar
o evento mais acolhedor às diversas
mulheres e seus contextos.
Referências
ALVES, Rôssi. Rio de rimas. Rio de
Janeiro: Aeroplano, 2013.
BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: a
comunicação dos marginalizados. o
Paulo: Cortez, 1980.
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como ferramenta na Gestão Participativa Urbana: um caso em Campos
dos Goytacazes/RJ. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.48-72, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
As Batalhas de Rimas como ferramenta na Gestão Participativa Urbana: um
caso em Campos dos Goytacazes/RJ
Carla Aparecida da Silva Ribeiro1
Aline Couto da Costa2
Simonne Teixeira3
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v15i28.65553
Resumo: O Hip-Hop, especificamente as batalhas de rimas, pode ser visto como um movimento
cultural e social de resistência e reivindicação de direitos por uma parte menos favorecida da sociedade.
No entanto, a cultura urbana frequentemente recebe pouco apoio do Estado e em 2020, com a
pandemia da COVID-19, os desafios enfrentados por esses atores foram ainda mais intensificados.
Este artigo teve como objetivo compreender, por meio de um estudo de caso, a atuação do coletivo
Manifestação Cultural de Rimas (MCR), no período de 2020 a 2021, no contexto da gestão participativa
urbana, destacando a importância da preservação dessa manifestação cultural e do espaço que ocupa
na cidade. A metodologia adotada incluiu: revisão bibliográfica e documental; estudo de caso; e
pesquisas de campo. Ao longo da análise, procurou-se demonstrar como a cultura local e a mobilização
de seus agentes podem ser utilizadas para que esses grupos se manifestem e sejam incluídos no
processo de gestão participativa urbana, contribuindo para a cidade, seja por meio da apropriação de
espaços subutilizados, da arte urbana, entre outros aspectos.
Palavras-chave: Hip-Hop; batalhas de rimas; gestão participativa urbana.
Rap Battles as a tool in Urban Participatory Management: a case in Campos dos Goytacazes/RJ
Abstract: Hip-Hop, specifically rhyme battles, can be seen as a cultural and social movement of
resistance and demand for rights by a less favored part of society. However, urban culture often receives
1Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte
Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). E-mail: caarla.ribeiroarq@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-9845-7903.
2Doutora em Arquitetura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Docente no Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFFluminense). E-mail:
alinecoutoarquitetura@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1533-2142.
3Doutora em Filosofía i Lletras (História) pela Universitat Autònoma de Barcelona/Espanha; Pós-
doutorado na Escuela de Estudios Hispano-Americanos (CSIC/Espanha, 2011/2012). Bolsista
produtividade CNPq (2007-atual). Docente da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy
Ribeiro (UENF). E-mail: simonne@uenf.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2476-8247.
Recebido em 30/11/2024, aceito para publicação em 22/12/2024.
49
RIBEIRO, Carla; COSTA, Aline; TEIXEIRA, Simonne. As Batalhas de Rimas
como ferramenta na Gestão Participativa Urbana: um caso em Campos
dos Goytacazes/RJ. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.48-72, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
little support from the State and in 2020, with the COVID-19 pandemic, the challenges faced by these
actors were even more intensified. This article aimed to understand, through a case study, the
performance of the collective Manifestação Cultural de Rimas (MCR), in the period from 2020 to 2021,
in the context of urban participatory management, highlighting the importance of preserving this cultural
manifestation and of the space it occupies in the city. The methodology adopted included: bibliographic
and documentary review; case study; and field research. Throughout the analysis, we sought to
demonstrate how local culture and the mobilization of its agents can be used so that these groups can
manifest themselves and be included in the urban participatory management process, contributing to
the city, whether through the appropriation of spaces underutilized, urban art, among other aspects.
Keywords: Hip-Hop; rap battles; urban participatory management.
Batallas de Rimas como herramienta en la Gestión Participativa Urbana: un caso en Campos
dos Goytacazes/RJ
Resumen: El Hip-Hop, especilmente las batallas de rimas, puede verse como un movimiento cultural y
social de resistencia y reivindicación de derechos por parte de una parte menos favorecida de la
sociedad. Sin embargo, la cultura urbana a menudo recibe poco apoyo del Estado y en 2020, con la
pandemia de COVID-19, los desafíos que enfrentan estos actores se intensificaron aún más. Este
artículo tuvo como objetivo comprender, a través de un estudio de caso, la actuación del colectivo
Manifestação Cultural de Rimas (MCR), en el período de 2020 a 2021, en el contexto de la gestión
urbana participativa, destacando la importancia de preservar esta manifestación cultural y del espacio
que ocupa en la ciudad. La metodología adoptada incluyó: revisión bibliográfica y documental; estudio
de caso; e investigación de campo. A lo largo del análisis, buscamos demostrar cómo la cultura local y
la movilización de sus agentes pueden ser utilizadas para que estos grupos puedan manifestarse y ser
incluidos en el proceso de gestión participativa urbana, contribuyendo a la ciudad, ya sea a través de
la apropiación de espacios subutilizados, arte urbano, entre otros aspectos.
Palabras clave: Hip-Hop; batallas de rimas; gestión participativa urbana.
As Batalhas de Rimas como ferramenta na Gestão Participativa Urbana: um
caso em Campos dos Goytacazes/RJ
Introdução
O Hip-Hop, nas palavras de
pós-industrial ainda na década de
1960, resultado da reorganização
urbana, recessão econômica e crise
fiscal do estado, no declínio dos direitos
civis dos negros, que geraram
circunstâncias desesperadoras para os
jovens urbanos. De acordo com a
autora, o Hip-Hop possibilitou não a
sobrevivência de pessoas e instituições
abandonadas, mas serviu também
como fonte de prazer a esses sujeitos.
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RIBEIRO, Carla; COSTA, Aline; TEIXEIRA, Simonne. As Batalhas de Rimas
como ferramenta na Gestão Participativa Urbana: um caso em Campos
dos Goytacazes/RJ. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.48-72, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Afrika Bambaataa4, membro dos
Black Spades, gangue de rua nova-
iorquino, procurou desviar a raiva e o
entusiasmo dos jovens do Sul do Bronx
das guerras entre gangues, orientando-
os para a cultura (Lipsitz, 1994). O
movimento é constituído, desta forma,
pelas quatro vertentes culturais que
estavam em ascensão entre os jovens,
e que foram reunidos por Bambaataa: o
Rap5, o Break6, o Graffiti7e o DJ8.
Nesse contexto, o Hip-Hop, em
suas origens e em algumas de suas
expressões atuais, surgiu como uma
reação ao modelo de segregação
socioeconômica, cultural e espacial
hegemônico, em tom de resistência às
condições de vida que as pessoas à
margem da sociedade viviam como
forma alternativa de produzir o espaço
urbano e de adquirir uma identidade
coletiva através da cultura (Rose, 2021;
Lipsitz, 1994).
Podendo ser caracterizado
como um movimento cultural e social
4Afrika Bambaataa é considerado por muitos
autores como um dos principais responsáveis
pelo programa ideológico que serve de base à
cultura Hip-Hop devido a criação da
organização Zulu Nation (Fradique, 2003),
contudo, outros nomes importantes podem ser
destacados como: Kool-Herc, Grand Master
Flash, entre outros (Rose, 2021; Lipsitz, 1994;
Herschmann, 2000; Teperman, 2015).
que promovia, em determinados
contextos, a resistência e a valorização
da juventude negra e periférica, o
movimento buscava expressar as
experiências de exclusão social,
econômica, educacional e racial vividas
por esses indivíduos, com o objetivo de
desafiar as estruturas que os
segregavam e afastá-los da violência
de seus entornos, promovendo ainda a
apropriação de espaços urbanos
subutilizados e/ou abandonados,
possibilitando a requalificação de áreas
urbanas.
Rose (2021) pontua que a
produção da cultura negra
contemporânea explora em muitas de
suas manifestações a herança da
escravidão. Exemplo disso é o rap,
onde se destacam as vozes das
comunidades marginalizadas, sendo
constituído por narrativas rimadas,
acompanhadas por uma música
altamente rítmica e com elementos
eletrônicos (Rose, 2021).
5Gênero musical urbano com versos por vezes
improvisados, rimas simples, repleto de gírias e
ditados populares.
6Dança urbana com movimentos acrobáticos.
7Representações com aerossol de tinta, nas
paredes, muros, monumentos de uma cidade.
8Disc Jockey - artista ou profissional que
seleciona e reproduz as mais diferentes
composições musicais, previamente gravadas.
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RIBEIRO, Carla; COSTA, Aline; TEIXEIRA, Simonne. As Batalhas de Rimas
como ferramenta na Gestão Participativa Urbana: um caso em Campos
dos Goytacazes/RJ. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.48-72, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Desde suas origens, o rap
possui uma dimensão política que se
tornou símbolo do movimento,
expressando descontentamento e
resistência em comunidades
racializadas em situações de pobreza e
segregação urbana. As letras dos
rappers frequentemente narravam
histórias cotidianas de forma rimada,
abordando temas que podiam variar
entre política, questões sociais e
sexuais (Rose, 2021). Essas narrativas
eram apresentadas em contextos de
improvisação, onde a habilidade verbal
era avaliada por meio de confrontos
simbólicos, dando origem assim às
batalhas de rimas, enfoque desta
investigação.
Apesar de ter se iniciado como
um fenômeno local, na escala dos
bairros, a cultura se expandiu, provida
pela mídia e pelas indústrias culturais,
como a indústria discográfica, televisiva
e cinematográfica. Atualmente, o Hip-
Hop e o rap são considerados
fenômenos globais, que dão origem a
uma multiplicidade de formatos
expressivos e subgêneros musicais.
No que se refere à vertente das
Batalhas de Rimas, sua evolução de
acordo com Santos (2023), pode ter
sido impulsionada principalmente por
duas questões intrínsecas: a disputa
territorial, envolvendo violência e
discursos de resistência; e o pacto de
paz, que faz parte das premissas
filosóficas do movimento Hip-Hop. A
prática de duelar com base em
habilidades líricas, em vez de físicas,
foi fundamental para o crescimento,
expansão (Santos, 2023) e adoção
dessa vertente pela cultura Hip-Hop.
O município de Campos dos
Goytacazes, localizado na região Norte
do Estado do Rio de Janeiro, com uma
população de 483.540 (quatrocentos e
oitenta e três mil quinhentos e
quarenta) habitantes (IBGE, 2022) e
uma área de 4.032 km², conta, em
tempos mais recentes, com a Quadra
Hugo Oliveira Saldanha, situada abaixo
do viaduto da Ponte Leonel Brizola,
como o principal palco da cultura Hip-
Hop, sendo um dos ocupantes o
coletivo de batalhas de rimas intitulado
Manifestação Cultural de Rimas (MCR).
A ponte está localizada na região
central do município, entre o Centro
Histórico e dois dos bairros mais
elitizados da região. Não registros
precisos dos primeiros indícios do Hip-
Hop na cidade; contudo, de acordo com
Gonçalves (2019), em 2004,
52
RIBEIRO, Carla; COSTA, Aline; TEIXEIRA, Simonne. As Batalhas de Rimas
como ferramenta na Gestão Participativa Urbana: um caso em Campos
dos Goytacazes/RJ. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.48-72, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
começaram as ocupações no Centro do
município.
As batalhas de rimas, segundo
discursos de seus manifestantes
(Ribeiro, 2019), possibilita aos jovens,
que em grande maioria estão em
vulnerabilidade social, espaço para
gerar e consumir cultura, reivindicar
direitos, denunciar as mazelas de suas
realidades, além de ser um refúgio da
violência, territorialismo do tráfico e da
negligência do Estado. Contudo, os
membros do coletivo MCR discursam
em seus encontros culturais sobre a
dificuldade em manter o movimento
devido à indiferença e à falta de
investimento do poder público com o
espaço e com a cultura urbana.
Mattoso (2010) aborda que
grande parte da juventude brasileira é
acometida pelo agravamento das
condições sociais, principalmente
aqueles que residem nos centros
urbanos. De acordo com ele, a pobreza
da pobreza é mediada pela reprodução
do modo urbano das condições de vida,
através da dinâmica do mercado de
trabalho e da natureza do sistema de
prot
A problemática enfrentada por esses
atores sociais se acentuou ainda mais
no ano de 2020, quando foi declarada a
pandemia da COVID-19 pela OMS. No
contexto cultural, a pandemia paralisou
as ações e atividades, colocando os
fazedores culturais com sua
sobrevivência comprometida (Peixe,
2021).
De acordo com a Lei no. 10.257,
de 10 de julho de 2001, que institui o
engajados na transformação da cidade
rumo à superação de uma ordem
urbanística excludente, patrimonialista
e predatória podem ter no Estatuto da
(Brasil, 2001, p. 23). Junto a isso, pode-
se destacar as gestões participativas,
que, de acordo com Gohn (2001),
tratam-se de canais de participação
que visam a interlocução entre a
população e o poder público, que
surgem nas cidades como instrumento
de democratização dos processos de
gestão e administração entre estes
atores ou setores da sociedade, para
que, assim, o Estado possa garantir a
pluralidade e a diversidade que a
formam.
Contudo, em muitos casos, a
gestão participativa não passa de uma
pseudoparticipação (Tenório;
Rozenberg, 1997), não atendendo as
53
RIBEIRO, Carla; COSTA, Aline; TEIXEIRA, Simonne. As Batalhas de Rimas
como ferramenta na Gestão Participativa Urbana: um caso em Campos
dos Goytacazes/RJ. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.48-72, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
necessidades de toda a população,
principalmente daqueles que mais
necessitam e têm menos voz. Unem-se
a isso administrações e políticas
reduzidas à dimensão eleitoral, que,
segundo Fernandes (2010), geram
acordos e decisões que abandonam a
complexidade da vida urbana.
Serpa (2010) traz a ideia da
cidade como fenômeno cultural, que
poderia ser traduzida e sintetizada
através da ideia de centralidade. Para o
autor, pensar a cidade como
centralidade traz a possibilidade de
pensá-
encontro, de aproximação, de
simultaneidade, de reunião, de
intercâmbio e de relações. Então, a
cidade como fenômeno cultural é,
sobretudo, uma cidade que centraliza
p.29).
Neste sentido, este artigo tem
como objetivo compreender, por meio
de um estudo de caso, a atuação do
coletivo Manifestação Cultural de
Rimas (MCR), no período de 2020 a
2021, no contexto da gestão
participativa urbana, destacando a
importância da preservação dessa
manifestação cultural e do espaço que
ocupa na cidade. Com o intuito de
alcançar tal objetivo, a pesquisa, fruto
da dissertação de uma das autoras
deste trabalho, adotou uma abordagem
qualitativa.
Além da fundamentação teórica,
realizada através de uma ampla revisão
bibliográfica e documental, foi realizado
um estudo de caso associado a uma
pesquisa de campo. Essa etapa teve
como foco a caracterização dos
espaços utilizados pelos agentes
formadores do movimento em Campos
dos Goytacazes, com ênfase na Ponte
Leonel Brizola. A pesquisa de campo
adotou uma abordagem na qual a
pesquisadora estabeleceu contato
direto com os manifestantes e com o
espaço estudado, utilizando coleta de
registros dos participantes da
manifestação quando estas ocorriam;
visitas da pesquisadora a Ponte Leonel
Brizola em diferentes dias e horários
com gravações periódicas e registros
fotográficos; entrevistas não
estruturadas com os organizadores e
participantes da manifestação; rodas
de conversa com a organização do
coletivo; e entrevista com membros
responsáveis pela elaboração do Plano
de Cultura municipal.
Cabe ressaltar que, devido ao
contexto da pandemia da COVID-19, os
54
RIBEIRO, Carla; COSTA, Aline; TEIXEIRA, Simonne. As Batalhas de Rimas
como ferramenta na Gestão Participativa Urbana: um caso em Campos
dos Goytacazes/RJ. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.48-72, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
procedimentos metodológicos
precisaram ser adaptados conforme as
orientações da Organização Mundial da
Saúde (OMS) e da Organização Pan-
Americana da Saúde (OPAS) (2020).
Dessa forma, nos casos em que o
contato virtual não foi possível, as
entrevistas presenciais ocorreram em
locais abertos e arejados, com
distância mínima de 1 metro entre a
pesquisadora e os entrevistados, com o
uso obrigatório de máscaras e
higienização frequente das mãos com
álcool em gel 70%. As entrevistas
foram devidamente autorizadas pelo
Comitê de Ética, garantindo os
protocolos de segurança e integridade
dos participantes.
Os dados coletados foram
documentados por meio de imagens,
registros escritos e transcrições das
entrevistas, permitindo uma análise
comparativa das mudanças no espaço
estudado e do impacto da ausência das
manifestações durante a pandemia.
Esses dados contribuíram para a
compreensão da relação entre o
coletivo MCR, o espaço urbano e a
gestão participativa da cidade.
Breve contextualização histórica do
Hip-Hop em Campos dos
Goytacazes
O surgimento da cultura Hip-Hop
em Campos dos Goytacazes não
possui um marco exato e consensual
entre os membros do movimento,
conforme apontado na bibliografia
consultada e nas entrevistas realizadas
para esta pesquisa. Contudo, cabe
abordar aqui um breve delineamento
acerca da cultura na cidade, a fim de
compreender os desdobramentos no
contexto da investigação.
Em entrevista para Ribeiro
(2021), o rapper e Mestre em Políticas
Sociais, Paulo Roberto Gonçalves,
afirmou que, com base em suas
pesquisas e vivências, os primeiros
sinais da cultura Hip-Hop na região
central surgiram com o graffiti, por volta
de 2004. Por sua vez, Victor Almeida
(2021), conhecido artisticamente como
Lebron Victor, fundador da Nação
Basquete de Rua (NBR) e participante
do movimento Hip-Hop por meio do
basquete, além de empresário e ex-
Diretor de Projetos da Secretaria
Municipal de Desenvolvimento
Econômico e Turismo, comentou à uma
das autoras deste texto, para sua
pesquisa de dissertação, que, embora
55
RIBEIRO, Carla; COSTA, Aline; TEIXEIRA, Simonne. As Batalhas de Rimas
como ferramenta na Gestão Participativa Urbana: um caso em Campos
dos Goytacazes/RJ. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.48-72, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
não tenha vivenciado o início do
movimento na cidade, participou de
uma nova fase da cultura no início dos
anos 2000, quando os elementos se
integraram em ocupações no centro da
cidade.
Almeida (2021) também relatou
que, por volta de 2002, realizavam-se
batalhas de rima nos bairros de Ururaí
e Custodópolis, localizados na periferia
de Campos dos Goytacazes. Segundo
o entrevistado, a roda de Ururaí era a
mais representativa e conhecida,
contudo, ambas aconteciam
algum tempo, embora ele não tenha
conseguido especificar uma data exata.
No entanto, ressalta-se a ausência de
registros ou documentos que
confirmem esses eventos e suas
respectivas datas.
Reforçando a escassez de
pesquisas, bibliografias e dados
históricos sobre a cultura Hip-Hop em
Campos dos Goytacazes, em agosto
de 2021, o coletivo de graffiti da cidade,
conhecido como Lamparones, lançou
no YouTube o documentário Linha do
Tempo do Graffiti em Campos dos
Goytacazes, dividido em duas partes.
9Codinome do pichador, criado em uma
estética própria, com letras estilizadas e
sobrepostas (Diógenes, 2014).
Conforme relata Anna Franthesca
Santos (2021), arte-educadora,
produtora cultural e integrante do
coletivo, que também foi entrevistada
para a pesquisa, a ideia do
documentário surgiu quando ela
percebeu, durante suas pesquisas de
especialização e pós-graduação, que a
história, da qual ela faz parte, estava
sendo registrada em trabalhos
acadêmicos com diversos erros.
De acordo com Anderson
Santos, mais conhecido por seu nome
artístico Andinho Ide (Linha, 2021), ele
foi o pioneiro do graffiti em Campos dos
Goytacazes, iniciando essa prática em
1998 por meio do xarpi9. Em 2000, ao
receber um serviço na gráfica onde
trabalhava, que trazia como plano de
fundo um mural grafitado, decidiu
aprofundar-se na arte, iniciando suas
pesquisas. Segundo o artista, ele
adquiriu algumas latas de tinta e
começou a reproduzir as imagens nas
ruas. Com o tempo, amigos e outros
praticantes do xarpi passaram a se
reunir com ele, fortalecendo a cena
local (Linha, 2021).
56
RIBEIRO, Carla; COSTA, Aline; TEIXEIRA, Simonne. As Batalhas de Rimas
como ferramenta na Gestão Participativa Urbana: um caso em Campos
dos Goytacazes/RJ. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.48-72, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Em 2004, os amigos Andinho
Ide, Fabi e Endi 317 fundaram o
Progressivo Art Crew. No mesmo ano,
organizaram o primeiro encontro de
graffiti em Campos dos Goytacazes,
que ocorreu no Condomínio Chácara
da Lapa, no bairro da Lapa, onde
grafitaram uma parede do local. Esse
evento atraiu novos curiosos pelo
movimento, ampliando a adesão à
prática do graffiti na cidade.
No documentário, os artistas
relatam as dificuldades enfrentadas
nesse período, como a ilegalidade do
xarpi, a falta de recursos e materiais,
incluindo tintas, e o limitado
reconhecimento da arte urbana. Diante
desses obstáculos, eles eram
obrigados a grafitar em locais pouco
visados do município. No entanto, a
crew10 começou a ganhar força e, em
2005, recebeu reconhecimento do
Serviço Social do Comércio (SESC),
que passou a apoiar suas iniciativas
educacionais, culturais e esportivas.
Além disso, os grafiteiros conquistaram
espaço nas universidades e ampliaram
sua atuação por meio de mutirões em
comunidades e oficinas realizadas em
escolas.
10 Em português: gangue ou grupo.
No que diz respeito ao viaduto
da Ponte Leonel Brizola, o grafiteiro
Jhony Misterbod destaca:
A primeira vez que a gente
tentou pintar o viaduto, foi em
2007, inclusive tem esse graffiti
até hoje lá. Foi um domingo,
um dia com os alunos,
apareceu a guarda, tentou
apreender o nosso material.
Apreendeu o meu caderno de
desenho, apreendeu tudo, mas
a gente tinha conseguido uma
autorização pra pintando e
conseguiu recuperar né, esse
material. Inclusive, os próprios
guardas que apreenderam a
gente, pediu pra tirar foto do
graffiti com a gente. Então isso
também foi uma coisa muito
marcante também, acredito
que na história de Campos.
Mas depois a gente parou de
pintar ali no viaduto né,
voltando em 2014, a pintar
de novo no viaduto, e a voltar a
ter de novo a mesma
repressão. Mas a gente
conseguiu um contato direto
com a Secretaria de Cultura, e
conseguiu uma autorização.
Hoje até o graffiti em Campos,
através do viaduto, existe uma
autorização, assim, é, existe
uma liberação pra tá fazendo a
arte em Campos (Linha, 2021,
s.p.).
Embora o Hip-Hop seja
tradicionalmente composto pelos
quatro elementos principais, o skate e o
basquete podem ser considerados
movimentos significativos incorporados
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RIBEIRO, Carla; COSTA, Aline; TEIXEIRA, Simonne. As Batalhas de Rimas
como ferramenta na Gestão Participativa Urbana: um caso em Campos
dos Goytacazes/RJ. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.48-72, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
à cultura devido ao seu forte caráter
urbano. Essas práticas,
frequentemente realizadas nas ruas
das periferias, acompanharam o
surgimento do movimento. Almeida
(2021) relata que sua ligação com o
basquete começou aos 11 anos, ainda
na escola. No entanto, foi a partir de
2005 que passou a praticar o esporte
nas ruas, inspirado em filmes norte-
americanos, como Space Jam.
O empresário destaca o primeiro
Fórum de Cultura Hip-Hop no Norte e
Noroeste Fluminense, realizado em
2006 no CIEP Maestro Villa Lobos, em
Guarus, como marco inicial do
basquete em Campos dos Goytacazes.
Almeida (2021) comenta que foi
convidado a participar do evento Hip-
Hop Inter Rio e, após
desentendimentos que levaram à
extinção do Fórum, decidiu fundar a
NBR em 2006 para retomar os ideais do
projeto, com foco na integração do Hip-
Hop e inclusão de jovens periféricos.
Em 2009, a NBR se formalizou como
ONG e iniciou diversos projetos sociais
em parceria com o SESC, beneficiando
comunidades carentes. Também em
11 Acrobacias com motos.
2009, realizaram o evento Open Run,
reunindo diversas manifestações
culturais e esportivas, como basquete,
rappers, b.boys, DJs, grafiteiros,
capoeira, wheeling11 e BMX12.
As rodas de rap da cidade,
segundo entrevistas concedidas por
Gonçalves (2019) a Ribeiro (2019),
foram influenciadas pelas batalhas de
MC do Rio de Janeiro. Pequenos
grupos periféricos se organizaram e
começaram a ocupar a Praça São
Salvador, um local que contava com
a presença de praticantes de skate e
BMX, conforme o relato do rapper e
pesquisador. A praça, devido a
diversos fatores como o fácil acesso
por transporte público e uma grande
área aberta com piso liso e resistente
de granito, que facilitava a prática de
break, skate e BMX, tornou-se o lugar
ideal para esses encontros, atraindo
também os adeptos do rap.
Segundo Gonçalves (2019)
apud Ribeiro (2019), a ocupação da
Praça São Salvador começou a gerar
atritos com o poder público. A praça,
que havia sido reformada em 2005,
tornou-se um espaço de disputa
12 Esporte praticado com bicicleta, com
inúmeras manobras, conhecido também como
Bike Freestyle.
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RIBEIRO, Carla; COSTA, Aline; TEIXEIRA, Simonne. As Batalhas de Rimas
como ferramenta na Gestão Participativa Urbana: um caso em Campos
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
política, religiosa, urbana, cultural e
comercial. Os praticantes da cultura
urbana, então, iniciaram manifestações
de resistência para preservar o uso do
local para seus encontros. No entanto,
a guarda municipal, em uma das ações
de represália, formou um cordão para
retirar os manifestantes da praça.
Ao ser questionado sobre os
eventos e as repressões ocorridas na
Praça São Salvador, Almeida (2021)
ressalta que, além das batalhas de rima
e da prática do skate, havia um uso
intenso de maconha e depredações no
espaço, o que gerou conflitos com a
polícia, que passou a intervir. Contudo,
pode-se destacar um trecho da
entrevista do skatista e grafiteiro
Misterbod a Gonçalves (2019):
[...] proibiram a gente de andar
de skate na praça o
Salvador tava tendo muito atrito
com a guarda então a gente
andava vinha a guarda, a gente
parava voltava no outro dia e
andava de novo e fomos
insistentes nisso. [...] Aí
falavam para a gente ir para a
rodoviária, mas estava tendo
muito roubo. falavam para a
gente ir para o Jardim São
Benedito, andar de Skate no
Jardim São Benedito, porém a
galera do basquete, várias
vezes rolou treta, quase rolou
briga. Porque o mesmo espaço
que a galera joga basquete não
dava para se andar de skate
(Misterbod, 2019 apud
Gonçalves, 2019, p.55)
Percebe-se neste sentido que,
além do conflito com a guarda e/ou a
polícia municipal, também havia um
conflito territorial interno entre as
diferentes linguagens da cultura Hip-
Hop. Gonçalves (2019), dando
continuidade ao relato de Misterbod,
acrescenta que os skatistas da época
se organizaram para dialogar com o
poder público e reivindicar a criação de
novos espaços para a prática do
esporte, devido à degradação das
pistas existentes na cidade.
[...] fizemos uma manifestação
pedindo uma pista de skate
Plaza, uma pista Plaza ao estilo
pista de rua, tipo uma praça
para skate que tinha na
rodoviária com padrões de
campeonatos de skate no estilo
formato street, então a gente
estava fazendo este apelo na
época, o Romeu Lins era
secretário de esportes radicais
na fundação, esse apelo era
diretamente com ele primeiro
[...] através disso tudo teve uma
reunião, com o Romeu Lins
com o Magno que era
presidente da fundação e
esportes, então teve uma
reunião, chamou a gente,
chamou a galera do basquete
também, nós nem sabíamos
porque a galera do basquete
estava lá, naquele momento,
não entendi [...] com isso no
dia da reunião falaram que
fariam uma quadra de
basquete de rua, na qual a
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RIBEIRO, Carla; COSTA, Aline; TEIXEIRA, Simonne. As Batalhas de Rimas
como ferramenta na Gestão Participativa Urbana: um caso em Campos
dos Goytacazes/RJ. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
gente também poderia andar
de skate. E foi isso que
aconteceu e nós também não
ficamos satisfeitos com isso
porque isso foi um cala boca,
ligado, não foi o que a gente
pediu, foi um cala boca para a
gente parar de encher o saco
deles (Misterbod, 2019 apud
Gonçalves, 2019, p.55)
De acordo com Ribeiro (2019),
em 2004, a "Ponte de Rosinha"
começou a ser construída após a
proposta de Rosângela Barros Assed
Matheus de Oliveira Garotinho,
conhecida como Rosinha Garotinho,
então Governadora do Estado do Rio.
O objetivo da obra era estabelecer uma
ligação viária entre as Avenidas Hélio
Póvoa, no centro, e Tancredo Neves,
em Guarus. O Diário Oficial publicou a
liberação de recursos no valor de 42
milhões de reais, provenientes do
Conselho Superior do Fundo Estadual
de Conservação Ambiental e
Desenvolvimento Urbano (FECAM).
Após oito meses de paralisação
das obras, a ponte foi inaugurada em
2007 com o nome de Ponte Rosinha
Garotinho. Contudo, por ordem do
Ministério Público, em cumprimento à
Lei 6.454 de 1977, que proíbe a adoção
de nomes de pessoas vivas para obras
públicas, a ponte foi renomeada para
Ponte Leonel Brizola, em homenagem
ao ex-governador do estado do Rio.
Almeida (2021) relata que foi
convidado por secretários da gestão da
época, que tinham o objetivo de criar
um projeto inspirado no Viaduto Negrão
de Lima, também conhecido como
Viaduto de Madureira, onde acontece o
Baile Charme. O viaduto, reconhecido
como um centro de concentração
popular, foi crucial para a difusão da
cultura negra no estado, com o Hip-Hop
como um de seus principais
protagonistas. Os eventos acontecem
todos os sábados e o viaduto é
considerado patrimônio imaterial da
cidade.
Segundo Almeida (2021), após
reuniões com os gestores, foi
desenvolvido o projeto da quadra, que
foi inaugurada em 2011 com o nome de
Quadra de Esportes Hugo Oliveira
Saldanha (Imagem 1). O espaço foi
concebido como um ponto de
referência, no entanto, ele observa:
E quando inaugura a gente
se frustra, em algumas
questões, com a gestão da
fundação, e a gente até discutiu
muito isso com eles, porque as
medidas da tabela eram
horríveis, a quadra ela não foi
concebida da forma que ela
deveria ser ocupada, então, de
imediato ela se vazia. A galera
do basquete não culpa, se a
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RIBEIRO, Carla; COSTA, Aline; TEIXEIRA, Simonne. As Batalhas de Rimas
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transformações da cultura")
galera do basquete jogou ali, a
galera assim, que eu digo, que
movimenta o basquete, se
jogou umas 10 vezes foi muito.
(Almeida, 2021, s.p.)
Figura 1 - Quadra de Esportes Hugo Oliveira
Saldanha
Fonte: Facebook NBR, 2021
Ainda segundo Almeida (2021),
a ocupação do espaço pela prática de
skate começou a acontecer, com a
presença de algumas pessoas que não
estavam realmente envolvidas com o
movimento de basquete de rua, mas
que aproveitavam o local para jogar.
Retomando o relato de Misterbod dado
a Gonçalves (2019), o skatista confirma
essa ocupação e acrescenta que o
espaço contava com WI-FI e tomadas,
o que facilitou a realização de outras
atividades no local.
Além da disputa territorial entre o
skate e o basquete, durante as
entrevistas realizadas, percebeu-se
13 Nome fictício para guardar o anonimato do
entrevistado.
também certa animosidade entre os
grupos de skatistas e os dançarinos de
break. O dançarino Jonas13 comenta
que o break começou a ocupar o
espaço com ensaios da dança de rua,
chegando a ficar com a chave que
trancava a quadra. No entanto,
segundo ele, o processo de trancar a
quadra não durou muito tempo, devido
a atritos com os skatistas, que
brigavam pelo uso do espaço.
O skatista Fábio14 comenta que
a ocupação do espaço para o skate
começou junto com o basquete e que,
"teve uma época que trancavam e essa
chave ficava na nossa o também, só
que não durou muito, a gente abriu
buraco ali e entrava. É um espaço
público, não tem como privar a gente de
usar" (Fábio, 2021, s.p.). Segundo ele,
o primeiro evento realizado na quadra
foi organizado pelo grupo de skatistas,
com patrocínio da loja Fluir,
especializada em artigos esportivos
urbanos na época.
Além da disputa pelo espaço, a
quadra enfrentou um processo de
abandono e falta de manutenção por
parte do poder público, o que resultou
14 Nome fictício para guardar o anonimato do
entrevistado.
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RIBEIRO, Carla; COSTA, Aline; TEIXEIRA, Simonne. As Batalhas de Rimas
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
na ocupação por pessoas em situação
de rua, que começaram a danificar os
mobiliários urbanos. (Almeida, 2021)
Em entrevista para Ribeiro
(2019), Luis Cláudio Ribeiro Silva,
comenta sobre o surgimento do Rima
Cabrunco, nome que faz referência à
gíria popular campista. O coletivo, que
realizava batalhas de MCs, teve sua
primeira roda cultural embaixo do
Viaduto Leonel Brizola, em setembro
de 2012, e rapidamente ganhou
reconhecimento entre os adeptos do
Hip-Hop (Ribeiro, 2019).
Almeida (2021) acrescenta que
o Rima Cabrunco (Imagem 2) surgiu
com o objetivo de dar uma nova voz ao
Hip-Hop na cidade, sendo conhecido
como a "batalha do real" ou "batalha do
conhecimento". Segundo ele, os MCs
utilizavam a batalha para expressar a
realidade de suas vidas. Quando
questionado sobre a presença da roda
cultural na ponte, o diretor de projetos
explica que as questões ambientais e
referências de grandes capitais, como o
Viaduto de Madureira, onde as batalhas
de Hip-Hop sempre aconteceram sob
os viadutos, foi um ponto decisivo. Com
a ocupação dos rappers, o Progressivo
Art Crew também começou a se
apropriar do local.
Figura 2 - Encontro do coletivo Rima Cabrunco
Fonte: Facebook NBR, 2021
O coletivo iniciou a ocupação
dos pilares da ponte, transformando o
espaço em uma galeria a céu aberto. A
identidade Hip-Hop se apropriou do
local e, para todos os entrevistados
envolvidos na cultura, a área sob o
viaduto é considerada um palco da
cultura urbana, sendo responsável pela
difusão do movimento na cidade,
tornando-se, assim, uma referência da
cultura urbana local.
A partir desse momento,
movimentos como o Coletivo Cultural
Resistência Goytacá, o Baile Charme e
o Mutirão de Grafite começaram a se
consolidar no espaço. "É um polo onde
acontece tudo, nenhum espaço na
cidade tem cultura urbana como nesse
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RIBEIRO, Carla; COSTA, Aline; TEIXEIRA, Simonne. As Batalhas de Rimas
como ferramenta na Gestão Participativa Urbana: um caso em Campos
dos Goytacazes/RJ. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.48-72, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
espaço aqui" (Gonçalves, 2019, s.p.
apud Ribeiro, 2019, p. 62).
O palco presente atualmente na
quadra, foi inaugurado no primeiro
festival de graffiti de Campos, realizado
em 2016 pela Prefeitura, por meio da
Fundação Municipal da Infância e da
Juventude e da Fundação Cultural
Jornalista Oswaldo Lima. Almeida
(2021) relata que a solicitação para o
palco veio de um representante do
passinho durante uma reunião de
organização do evento. O festival, com
o tema "História de Campos e Paz",
contou com a participação de 20
grafiteiros e foi realizado no dique do
Rio Paraíba do Sul, entre as Pontes
Barcelos Martins e General Dutra. A
festa de encerramento, com
apresentações de rap e break,
aconteceu na quadra sob o Viaduto
Leonel Brizola.
O basquete de rua teve grande
destaque no Brasil entre 2004 e 2008,
contudo, de acordo com Almeida
(2021), perdeu força após 2010,
desaparecendo também em Campos.
O skate, por sua vez, contou com o
apoio do SESC, que promovia eventos
e oficinas na cidade.
As batalhas de rimas na cidade,
organizadas pelo coletivo Rima
Cabrunco, promoviam rodas culturais,
doações de livros, exposições e a
comercialização de produtos próprios
no espaço, com o objetivo de levar
conhecimento e cultura para os jovens
das periferias. No entanto, o movimento
começou a se desarticular devido ao
desligamento de membros fundadores,
disso, o coletivo enfrentou a falta de
apoio por parte do município e
frequentemente sofria repressões por
parte da guarda municipal. Diante da
necessidade de encontrar formas de
sustento, os organizadores começaram
a se afastar, o que levou ao fim do
movimento (Ribeiro, 2019).
Com o fim do Rima Cabrunco,
alguns dos jovens que participavam
das rodas culturais e batalhas de rimas
perceberam a necessidade de se unir
novamente para retomar as atividades
embaixo do viaduto, o que resultou na
criação da Manifestação Cultural de
Rimas (MCR) em 2014. O coletivo
continua ativo até os dias atuais e
completou 10 anos em 2024.
Até o ano de 2022, a MCR
contava com cinco organizadores,
sendo três homens e duas mulheres.
Dois dos organizadores fundaram o
coletivo junto com o intitulado Mano 10
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RIBEIRO, Carla; COSTA, Aline; TEIXEIRA, Simonne. As Batalhas de Rimas
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
e mais três amigos, que, embora não
façam parte do movimento atualmente,
são reconhecidos como importantes
para o início do coletivo.
De acordo com Mateus Cunha
(2021), um dos organizadores e
fundadores da MCR, houve um hiato
entre o fim do Rima Cabrunco e o início
da MCR, mas nenhum dos
entrevistados soube precisar a duração
desse período. Cunha (2021) ainda
compartilhou que, ao ser convidado
para se juntar ao novo coletivo, sugeriu
que as batalhas acontecessem em um
dia fixo da semana. Inicialmente, elas
ocorriam a cada 15 dias, aos sábados,
com o tempo, a MCR passou a ser
realizada semanalmente, às sextas-
feiras, 19h.
Segundo os entrevistados, tanto
integrantes quanto frequentadores do
coletivo Manifestação Cultural de
Rimas (MCR), o movimento
inicialmente contava com um fluxo
intenso de jovens que faziam parte de
diversas manifestações culturais
urbanas, como rappers, skatistas,
dançarinos de break, grafiteiros e DJs.
No entanto, ao longo do tempo, o
coletivo começou a perder muitos
desses frequentadores.
De acordo com as falas
coletadas, os principais motivos para
esse abandono foram a ausência de
estrutura, tanto do próprio movimento
quanto do espaço em que as atividades
ocorriam. A falta de recursos e
condições adequadas para acomodar e
atrair esses jovens parece ter sido um
fator crucial para a diminuição do
público e a perda do dinamismo que o
movimento tinha no início. Isso é
evidenciado tanto pelas entrevistas
quanto pelas imagens analisadas no
estudo.
Se o viaduto tivesse tudo
estruturado e tal. Mas rap é
coisa de vagabundo, é mais
difícil alguém entrar (Integrante
1, 2021, s.p.).
É o lugar menos iluminado. É
um atrativo para as pessoas de
rua, e a gente aqui pra ser
visto. E parte elétrica, às vezes
a gente quer fazer um evento
maior, colocar som e é prerio
(Integrante 2, 2021, s.p.).
A falta de microfone bom,
qualidade do som, querendo ou
não é entretenimento
(Integrante 3, 2021, s.p.).
[...] Alguns pararam de ir. Não
que isso seja culpa das
pessoas, porque a gente
também não tem estrutura pra
poder oferecer pra esses
artistas também, a gente acaba
fazendo por amor, pra não
deixar o movimento acabar
(Organizador 1, 2021, s.p.).
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RIBEIRO, Carla; COSTA, Aline; TEIXEIRA, Simonne. As Batalhas de Rimas
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transformações da cultura")
De acordo com os membros
organizadores da Manifestação
Cultural de Rimas (MCR), até o ano de
2022, o coletivo nunca contou com
equipamentos próprios, como caixas de
som e microfones. Até este período, o
grupo precisava buscar os aparelhos
emprestados, geralmente com
qualidade inferior, o que resultava em
problemas de ruídos e dificuldades de
audição para o público. Essa falta de
infraestrutura adequada prejudicava a
experiência das batalhas e as
atividades culturais realizadas no
espaço.
Além disso, a viabilidade do
movimento era uma questão constante.
Os organizadores mencionaram que
muitas vezes precisavam transportar os
equipamentos por grandes distâncias,
utilizando bicicletas ou carregando-os
nas costas, o que frequentemente
causava atrasos nas atividades, além
de ser fisicamente desgastante.
De acordo com um dos
organizadores, a tomada disponível na
quadra também não funcionava, tendo
ele mesmo que fazer a conexão com o
poste de luz, utilizando uma extensão
para ligar a caixa de som. No entanto,
ele mencionou que houve uma
explosão na ligação e que, em algumas
ocasiões, ao chegar ao local, o sistema
não estava funcionando. Em uma
dessas situações, conforme relatado
pelo organizador, uma pessoa em
situação de rua, que compartilhava o
espaço com eles, os ajudou. Em outras
ocasiões, alguns membros
comentaram que a batalha já
aconteceu de forma improvisada, à
capela, sem som ou eletricidade.
Todos os entrevistados
mencionaram que as pessoas em
situação de rua não são apenas um
problema social, mas também
impactam o convívio e contribuem para
a estigmatização do espaço. Entre os
relatos, um dos organizadores contou
que, em uma das tentativas de
compartilhar o local, uma pessoa em
situação de rua ameaçou sua
namorada, que também faz parte da
organização, com uma faca. Além
disso, ele expressou o desconforto de
ter que limpar o espaço, devido ao mau
cheiro e às fezes deixadas no local por
essas pessoas. Também mencionaram
a deterioração do ambiente, com
ocupantes cortando as grades,
quebrando os bancos, o piso e os
refletores. Segundo um dos
organizadores, quando solicitaram a
intervenção do município, a guarda
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RIBEIRO, Carla; COSTA, Aline; TEIXEIRA, Simonne. As Batalhas de Rimas
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dos Goytacazes/RJ. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
chegou com jatos d'água para expulsá-
los, mas, dias depois, eles retornaram
ao local.
Contudo, cabe ressaltar que,
apesar de todos os problemas
estruturais do movimento e do espaço,
até o recorte temporal apresentado,
bem como das desavenças internas, os
participantes de todas as vertentes do
Hip-Hop demonstram um forte
sentimento de pertencimento em
relação ao local.
Rapaz, esse espaço aqui é da
gente, do Hip-Hop em geral,
porque esse espaço é desde o
Rima Cabrunco, desde a época
galera que é referência já
passou por aqui. Grafiteiro,
Misterbod, skatista, eno, é
mais do que merecido a gente
ter esse local, porque senão
fica isso aí que vocês estão
vendo, abandonado, morador
de rua, falta de segurança, e
não é isso que a gente quer, a
gente quer cultura,
desenvolvimento urbano e
muita arte pra favela e pro
centro também. (Integrante 4,
2021, s.p.)
Aqui é foco do Hip-Hop na
cidade. (Integrante 1, 2021,
s.p.)
É um espaço totalmente de
acolhimento, o movimento Hip-
Hop trouxe isso pra esse
espaço, é você olhar em
volta. Tudo aqui é intervenção
nossa, para além da quadra,
até a tomada, pra conseguir ter
a batalha. (Integrante 3, 2021,
s.p.)
É possível perceber que, apesar
de todos os desafios enfrentados e da
redução do público, muitos dos
integrantes enxergam na batalha um
espaço de refúgio, onde podem
expressar sua arte e compartilhar as
realidades do cotidiano por meio da
música.
A MCR no contexto da gestão
participativa urbana
Com a pandemia da COVID-19,
que teve seu primeiro caso confirmado
na cidade de Campos dos Goytacazes
em 23 de março de 2020 (Portal Oficial
da Prefeitura de Campos dos
Goytacazes, 2020), o mundo se viu
forçado a adotar o isolamento social
como medida para conter o avanço da
doença. Nesse contexto, os
interlocutores da cultura urbana ficaram
privados de seu espaço de expressão.
Os organizadores apontaram na
ocasião que, pela falta de acesso direto
à internet para muitos integrantes, a
continuidade do movimento tornou-se
inviável de forma virtual. Dessa
maneira, a última ocupação do coletivo
no viaduto ocorreu em março de 2020,
antes do Lockdown, se ausentando por
dois anos do espaço público.
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como ferramenta na Gestão Participativa Urbana: um caso em Campos
dos Goytacazes/RJ. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.48-72, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
O impacto da retirada do
movimento foi evidente no local, que
passou a evidenciar um aumento
significativo de pessoas em situação de
rua, sem iluminação e ainda mais
impactado pela ausência de
manutenção, como ilustrado na
Imagem 3.
Figura 3 - A quadra no ano de 2021
Fonte: Acervo Pessoal, 2021
Em 2021, o coletivo procurou
uma das autoras deste texto que
mantinha contato com os
organizadores para a realização de sua
pesquisa de dissertação, que teve
como objetivo a construção de um
plano de ação participativo direcionado
ao grupo. O coletivo, ciente do
documento que estava sendo
construído, solicitou que ela
intermediasse, junto ao Conselho
15 Fundado em 1978, com o intuito de gerir a
cultura no município (Prosas, 2021).
Municipal de Cultura (COMCULTURA),
uma reestruturação mínima do espaço
que permitisse o retorno das batalhas
ainda naquele ano.
Com o objetivo de incluir a pauta
no conselho, a pesquisadora contatou o
conselheiro de Artes Urbanas, pedindo
que ele inserisse o tema em uma
reunião. Dessa forma, no dia 16 de
novembro de 2021, o representante da
cadeira da época apresentou
brevemente a proposta como parte dos
assuntos gerais na reunião do
COMCULTURA.
Em resposta, a Presidente da
Fundação Cultural Jornalista Oswaldo
Lima (FCJOL)15 e do COMCULTURA
sugeriu que o retorno das atividades
fosse adiado para 2022, devido à
pandemia da COVID-19. Na sequência,
para mediar a discussão, uma das
autoras pediu a palavra e defendeu o
coletivo, destacando a relevância da
manifestação e o estado de abandono
do espaço residual sob o Viaduto
Leonel Brizola, com o argumento de
que, considerando a liberação da
prefeitura para a reabertura de bares e
a realização de eventos, desde que
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dos Goytacazes/RJ. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
seguidas as medidas de segurança,
não fazia sentido impedir a realização
do evento. Após a intervenção da
pesquisadora, a presidente da FCJOL
comprometeu-se a agendar uma
reunião com o coletivo para tratar do
assunto, reunião que foi marcada no
dia seguinte à solicitação.
Assim, no dia 23 de novembro
de 2021, às 10h30, ocorreu uma
reunião no Teatro Trianon, com a
presença de: Auxiliadora Freitas,
presidente da FCJOL; Wellington
Levino, comandante da Guarda Civil
Municipal (GCM); Rodrigo Carvalho,
secretário de Desenvolvimento
Humano e Social; Jackson Souza,
subsecretário de Posturas; Marcos
Moreira, subsecretário de Segurança
Pública; Kátia Macabu, diretora
executiva das Artes e Culturas da
FCJOL; David de Oliveira Montezuma,
conselheiro de Artes Urbanas;
representantes do Centro Pop; dois
organizadores da MCR; e uma das
autoras deste artigo. Durante a reunião
(Imagem 4), a pesquisadora
apresentou uma breve retrospectiva da
trajetória do coletivo e do Viaduto
Leonel Brizola, destacando a
relevância de ambos para a arte urbana
da cidade.
Figura 4 - Reunião do coletivo MCR com o
poder público
Fonte: Acervo Pessoal, 2021
O coletivo, por intermédio da
pesquisadora, apresentou um Ofício de
Solicitação, no qual pleiteava a
aprovação do Plano de Ação MCR pela
FCJOL, além de seu encaminhamento
à Diretoria Executiva. O objetivo era
garantir que tanto a gestão atual quanto
as futuras assumissem o compromisso
de implementar as ações de
responsabilidade do poder público.
Adicionalmente, foram requisitadas
demandas urgentes previstas no plano,
indispensáveis para o retorno da
ocupação do espaço pela MCR, tais
como: realocação e ressocialização
das pessoas em situação de rua;
limpeza da quadra; reparo da
iluminação; conserto das tomadas; e
manutenção geral do local.
Conforme ilustrado na Imagem
5, que apresenta a reportagem
publicada no Portal Oficial da Prefeitura
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como ferramenta na Gestão Participativa Urbana: um caso em Campos
dos Goytacazes/RJ. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.48-72, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Municipal de Campos dos Goytacazes
(2021), os participantes da reunião
assumiram o compromisso de atender
às demandas apresentadas, com
destaque para a requalificação da área
inferior do Viaduto Leonel Brizola. A
divulgação dessa notícia também
ocorreu no perfil oficial da FCJOL no
Instagram.
Figura 5 - Reportagem sobre a reunião
Fonte: Portal Oficial Da Prefeitura
Municipal de Campos Dos Goytacazes, 2021
O retorno da MCR, contudo,
agendado para o dia 17 de dezembro
de 2021 (Imagem 6), ocorreu sem que
todas as demandas fossem
plenamente atendidas. A realocação e
ressocialização das pessoas em
situação de rua não foi realizada; em
vez disso, a Guarda Municipal as
retirou de maneira brusca. A limpeza da
quadra foi feita apenas algumas horas
antes do evento, após insistentes
apelos da organização, que utilizou
contatos pessoais, como mensagens
via WhatsApp, para pressionar os
secretários responsáveis na época.
Figura 6 - Flyer do evento
Fonte: Instagram MCR, 2021
Embora o aluguel dos
equipamentos de som tenha sido
disponibilizado, os reparos necessários
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
na iluminação, o conserto das tomadas
e a manutenção geral do espaço não
foram realizados. Como resultado, a
organização precisou custear um
gerador para garantir o funcionamento
do som e conduziu o evento no escuro.
Figura 7 - Limpeza da quadra
Fonte: Acervo Pessoal, 2021.
Entretanto, é importante
destacar que, apesar das falhas do
poder público em cumprir plenamente
os acordos para a realização do evento,
ainda em 2021, uma semana após o
retorno da MCR para o espaço, foram
realizados reparos na iluminação e nas
tomadas da Quadra Hugo Oliveira
Saldanha, bem como sua pintura.
Assim, apesar dos contratempos,
ressalta-se a relevância da ocupação e
da participação do coletivo e de seus
integrantes, que além de fortalecer sua
atuação social e promover maior
engajamento da comunidade,
conseguiu efetuar alterações
significativas no espaço público.
Nesse contexto, pode-se
recorrer a Lefebvre (2001), que
argumenta que a transformação da
cidade deve ser conduzida pelo
coletivo, com o espaço público sendo
um lugar capaz de acomodar a
diversidade das atividades cotidianas,
como trabalho, descanso, cultura,
conhecimento, lazer, ócio, trocas e
comércios. Segundo o autor, a
reivindicação e a luta por esses
espaços podem ocorrer por meio da
arte, de atividades dicas
comunitárias, festas e jogos realizados
no ambiente público.
Segundo Lerner (2003, p.46),
"Quanto mais se entender a cidade
como integração de funções, de renda,
de idade, mais encontro, mais vida ela
terá." Esse entendimento reforça a
importância da pluralidade no ambiente
urbano, um princípio também defendido
por Jacobs (1961), como essencial
para a vitalidade das cidades. Nesse
contexto, fica evidente que a MCR, no
recorte apresentado, possuiu um papel
crucial na requalificação do local.
Considerações finais
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
O Hip-Hop, conforme abordado
até agora, pode ser uma ferramenta
significativa para enfrentar a
segregação socioeconômica, cultural e
espacial, além de oferecer uma
alternativa para a criação de espaços e
a construção de uma identidade
coletiva entre jovens em situação de
vulnerabilidade social. Nesse contexto,
em 2014, surgiu a Manifestação
Cultural de Rimas (MCR) na cidade de
Campos dos Goytacazes, como
resposta à carência de movimentos
culturais direcionados a esse público no
município.
A manifestação, que ocorre sob
o Viaduto Leonel Brizola, um espaço
público central da cidade reconhecido
como um importante palco da cultura
urbana, realizava todas as sextas-
feiras, batalhas de rimas e
apresentações individuais. No entanto,
em março de 2020, com o início da
pandemia de COVID-19, o coletivo teve
que encerrar suas atividades, tanto
presencialmente, em função das
medidas de isolamento social, quanto
virtualmente, devido à falta de recursos.
Com o afastamento do grupo do
espaço, este foi sendo negligenciado
pelo poder público e deteriorado por
pessoas em situação de rua. Devido a
ações junto aos órgãos públicos
municipais, o coletivo contribuiu para a
requalificação da Ponte Leonel Brizola,
reativando o espaço como um ponto de
encontro público e atribuindo uma nova
identidade à cidade.
Este estudo, objetivou-se assim
a analisar a atuação do coletivo MCR
na gestão participativa urbana,
abrangendo o período de 2020 a 2021.
Como pode-se perceber, o coletivo se
apresentou como um canal para o
desenvolvimento de ações políticas
entre seus integrantes,
predominantemente oriundos de áreas
periféricas, promovendo práticas
reivindicatórias e incentivando uma
gestão urbana mais inclusiva.
Acredita-se assim, que a cultura
urbana, especificamente o Hip-Hop e
as batalhas de rimas, como
apresentado, seja uma ferramenta
essencial para o desenvolvimento
cultural, social, político e econômico de
seus membros, contribuindo para a
inclusão dos jovens e assegurando seu
papel ativo como cidadãos.
Referências
ALMEIDA, Victor Hugo Ribeiro.
Entrevista concedida a Carla Aparecida
da Silva Ribeiro. Campos dos
Goytacazes, 12 ago. 2021.
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RIBEIRO, Carla; COSTA, Aline; TEIXEIRA, Simonne. As Batalhas de Rimas
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
As batalhas de rimas improvisadas do movimento Hip-Hop no Parque Cimba,
em Araguaína-TO: práticas de letramento de reexistência da juventude
periférica
Leomar Alves de Sousa
1
Eliane Cristina Testa
2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v15i28.65565
Resumo: Neste artigo analisamos como as batalhas de rimas improvisadas do movimento Hip-Hop,
realizadas semanalmente no Parque Cimba, em Araguaína-Tocantins, se constituem como práticas de
letramento de reexistência em que jovens Mc’s engendram suas rimas a partir de temáticas
socioculturais que perpassam suas vivências nas regiões periféricas em que vivem. Analisamos ainda
como essas batalhas de rimas são incorporadas aos ambientes escolares como objeto de ensino na
perspectiva de contribuir na formação dos alunos como leitores literários. O artigo consiste em uma
pesquisa participante com análise qualitativa, em que apontamos que por meio das batalhas de rimas
improvisadas os Mc’s expressam suas vivências de jovens periféricos que fazem a leitura crítico-social
de seus contextos de vida em perspectivas de reexistência frente a essas realidades.
Palavras-chave: Hip-Hop; batalhas de rimas; letramento de reexistência.
The improvised rhyme battles of the Hip-Hop movement in Cimba Park, in Araguaína-TO: literacy
practices of re-existence of peripheral youth
Abstract: In this article, we analyze how the improvised rhyme battles of the Hip-Hop movement held
weekly at Parque Cimba, in Araguaína-Tocantins, constitute literacy practices of re-existence in which
young MCs create their rhymes based on sociocultural themes that permeate their experiences in the
peripheral regions where they live. We also analyze how these rhyme battles are incorporated into
school environments as teaching objects with the aim of contributing to the formation of students as
literary readers. The article consists of a participatory research with qualitative analysis, in which we
point out that through improvised rhyme battles, MCs express their experiences as young people from
the periphery who make a critical-social reading of their life contexts from the perspective of re-existence
in the face of these realities.
1
Doutor em Linguística e Literatura pela Universidade Federal do Tocantins (UFNT). Docente da
educação básica na rede estadual de ensino do Estado do Tocantins. E-mail: ramoel05@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2898-6230.
2
Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Docente na Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT). E-mail: eliane.testa@ufnt.edu.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0863-4297.
Recebido em 01/12/2024, aceito para publicação em 22/12/2024.
74
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transformações da cultura")
Keywords: Hip-Hop; rap battles; re-existence literacy.
Las batallas de rimas improvisadas del movimiento Hip-Hop en el Parque Cimba, en Araguaína-
TO: prácticas de alfabetización para la reexistencia de la juventud periférica
Resumen: En este artículo analizamos cómo las batallas de rimas improvisadas del movimiento Hip-
Hop realizadas semanalmente en el Parque Cimba, en Araguaína-Tocantins, constituyen prácticas de
alfabetización de reexistencia en las que los jóvenes Mc generan sus rimas a partir de temas
socioculturales que permean sus experiencias. en las regiones periféricas en las que viven. También
analizamos cómo estas batallas de rimas se incorporan a los ambientes escolares como objeto de
enseñanza con vistas a contribuir a la formación de los estudiantes como lectores literarios. El artículo
consiste en una investigación participativa con análisis cualitativo, en la que señalamos que a través
de batallas de rimas improvisadas, los Mc expresan sus experiencias como jóvenes periféricos que
realizan una lectura crítico-social de sus contextos de vida en perspectivas de reexistencia en el rostro.
de estas realidades.
Palabras clave: Hip-Hop; batallas de rimas; alfabetización de reexistencia.
As batalhas de rimas improvisadas do movimento Hip-Hop no Parque Cimba,
em Araguaína-TO: práticas de letramento de reexistência da juventude
periférica
Introdução: Mc’s, rimadores das
batalhas de rimas do movimento
Hip-Hop
Esse estudo é um recorte de
uma pesquisa participante que se
constituiu através do desenvolvimento
de um projeto de leitura literária com
foco em obras da literatura marginal-
periférica e letras de poetas do Hip-Hop
(Mc’s e rappers), em uma turma de
ano e outra de ano em uma escola
pública de educação básica na cidade
de Araguaína-TO. A referida pesquisa
teve como objetivo geral “Demonstrar,
por meio de um projeto de leitura, que
as batalhas de rimas improvisadas do
movimento Hip-Hop, aliadas às
narrativas e à poética da literatura
marginal-periférica contribuem para a
formação de jovens leitores literários na
escola”.
À vista disso, definimos como
objetivo desse artigo analisar como a
participação dos Mc’s da Batalha do
Cimba contribuiu para o letramento de
reexistência em que, por meio das
batalhas de rimas improvisadas, os
jovens Mc’s põe em evidência
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
elementos socioculturais de suas
vivências na periferia. Nessa
perspectiva, temos como objetivos
específicos, nesse estudo, (i) discutir
de que modo as batalhas de rimas são
introduzidas no ambiente escolar como
objeto de ensino com o propósito de
contribuir na formação dos alunos
como leitores de literatura, e (ii)
compreender como os jovens Mc’s
constroem suas rimas improvisadas,
considerando seus contextos
socioculturais.
Tendo em vista que o projeto de
leitura literária, base do presente
estudo, se consistiu por meio de
práticas didático-metodológicas de
oficinas de leitura de poesias da
literatura marginal-periférica e das
poéticas do Hip-Hop, em que os alunos
tiveram momentos de interação com
Mc’s em eventos de batalhas de rimas
no contexto escolar, adotamos a
análise qualitativa com viés
interpretativo e bibliográfico, com
realização de entrevistas com os Mc’s
participantes da pesquisa, gravações
audiovisuais de batalhas de rimas,
além de transcrições e análises dessas
batalhas.
Como movimento cultural, o Hip-
Hop surge nas periferias, sobretudo
marcadas pela predominância da
população negra, e “[...] historicamente
ganha força nos Estados Unidos a
partir do final dos anos 1970 e
posteriormente se espalha pelas
grandes metrópoles do mundo” (Souza,
2011, p. 15). Sendo uma cultura
periférica o Hip-Hop, se caracteriza
pela expressão das vozes periféricas,
que fazem suas críticas às
vulnerabilidades sociais, à violência
policial, ao racismo e a outras formas
de violências e situações diversas que
dificultam e aimpedem o exercício da
cidadania.
O movimento Hip-Hop agrega
em sua constituição cinco elementos
distintos pelas suas diversidades de
expressões artísticas que manifestam
uma filosofia de vida de seus
integrantes, sendo esses: (i) Rap
(Ritmo e poesia); (ii) Mc (Mestre de
cerimônias); (iii) Dj (Disc jockey); (iv)
Grafite; e (v) Breaking.
Ao referir a representatividade
do Mc dentro da cultura Hip-Hop,
D’Alva (2014), pontua que ele
[...] pulsa na contundência do
discurso das ruas, tornando-se
um porta-voz que, por meio de
articulações de rimas o rap
(rhythm and poetry, ritmo e
poesia) -, estabelece a
comunicação oral narrando a
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
realidade em que está inserido
além de histórias fictícias,
memórias e toda sorte de
assuntos que possa
representá-lo (D’Alva, 2014, p.
04).
Nesse sentido, os Mc’s, mestres
de cerimônias, atuam como cantores
de rap, fazem apresentações de shows
e o poetas competidores e
apresentadores de batalhas de rimas
improvisadas, a exemplo do grupo de
jovens organizadores e participantes do
movimento Batalha do Cimba, na
cidade de Araguaína-TO, manifestação
cultura da poética do Hip-Hop que
acontece aos finais das tardes de
domingo, no Parque Cimba que
nome ao evento.
Os Mc’s que participam da
Batalha do Cimba compõem um grupo
composto de aproximadamente vinte
adolescentes, jovens e adultos, com
idade entre treze e vinte e seis anos.
São moradores de diferentes bairros da
cidade, sendo a maioria de regiões
periféricas ao centro e ao Parque
Cimba, que fica localizado muito
próximo à área central de comércios
diversos. Grande parte desses Mc’s
são estudantes da educação básica e
três cursam ensino superior, e há ainda
aqueles que abandonaram a escola
sem concluir o ensino médio.
Em geral, os integrantes do
movimento Hip-Hop, especialmente, os
rappers e os Mc’s possuem uma
identidade cultural peculiar e
desprovida de formalidades, marcada
pelo uso de nomes artísticos e pelas
vestimentas, que costumam ser
compostas por shorts de tactel ou
moletom, por calças compridas e
folgadas, por bonés, por camisetas
quase sempre grandes e
desproporcionais aos tamanhos dos
corpos, por regatas e/ou por mangas
compridas, com estampas alusivas a
cantores de rap, a times de futebol e a
marcas internacionais de produtos
famosos. Esses elementos que
caracterizam a identidade do Mc são
tidos como objetos de desejo de
consumo daqueles que nem sempre
possuem poder aquisitivo suficiente
para a satisfação de tal desejo.
Comumente o uso desses
adereços compõem toda uma
aparência “descolada”, associada ao
uso de tatuagens. Todos esses
elementos que dão visibilidade aos
corpos são realçados pela linguagem
informal com a presença de gírias,
comuns às localidades que residem e
77
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
aos grupos sociais a que os Mc’s e
rappers pertencem, estruturando e
definindo a identidade cultural (Hall,
2006, p. 11-12).
Segundo a concepção de Hall
(2006), no que concerne à identidade e
à composição da identidade cultural:
[...] a identidade é formada na
“interação” entre “eu” e a
sociedade. O sujeito ainda tem
um núcleo ou essência interior
que é o “eu real”, mas esse é
formado e modificado num
diálogo contínuo com os
mundos culturais “exteriores” e
as identidades que esses
mundos oferecem. [...] A
identidade, então, costura (ou,
para usar uma metáfora
médica, “sutura”) o sujeito à
estrutura. Estabiliza tanto os
sujeitos quanto os mundos
culturais que eles habitam,
tornando ambos
reciprocamente mais
unificados e predizíveis (Hall,
2006, p. 11-12).
E, ainda a respeito da formação
da identidade:
É precisamente porque as
identidades são construídas
dentro e não fora do discurso
que nós precisamos
compreendê-las como
produzidas em locais históricos
e institucionais específicos, no
interior de formações e práticas
discursivas específicas, por
estratégias e iniciativas
específicas (Hall, 2014, p. 109).
Desse modo, como aponta o
autor, podemos dizer que a identidade
cultural dos Mc’s se constitui por meio
de múltiplas interações socioculturais
em seus contextos de vivências em
comunidades que agregam os núcleos
familiares e escolares, de amizades, de
trabalho e de emprego; e, sobretudo,
por meio dos constantes contatos (ou
consumo) da cultura Hip-Hop: pelo
contato com a arte do grafite, pelo
acesso às batalhas de rimas, ou por
meio de canais de disseminação deste
estilo de vida via internet. Em
específico, os Mc’s da cidade de
Araguaína-TO interagem,
principalmente pela participação nas
rodas de batalhas de rimas
improvisadas no Parque Cimba-TO, e
em outros espaços públicos de lazer e
dentro das escolas.
Nesse sentido, os Mc’s citados
neste artigo participaram como
colaboradores no projeto de leitura
literária de obras poéticas da literatura
marginal-periférica, raps de artistas
nacionais, realizando batalhas de rimas
improvisadas em interações com
alunos adolescentes de uma turma de
8º e outra de 9º ano.
A participação dos Mc’s como
colaboradores da pesquisa realizando
oficinas de rimas improvisadas se
justificou pelo fato de muitos deles
78
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
manifestarem interesse pela leitura,
seja por livros sobre fatos históricos,
sejam por livros de literatura; de modo
que os conteúdos apreendidos por
meio dessas leituras aparecem como
elementos temáticos nas performances
de suas rimas improvisadas nas
batalhas nas quais participam.
Todos esses diferentes
contextos contribuem para a formação
de suas identidades culturais e
evidenciam explicitamente suas
filiações ao universo Hip-Hop,
principalmente caracterizado pelos
estilos de vida associados aos modos
como estes poetas de rua adornam
seus corpos com vestimentas, com
tatuagens, com bonés e com outros
adereços, que compõem todo um estilo
pessoal realçado pela linguagem
informal e pelo uso de gírias explícitas
em rimas, por meio das quais se
posicionam frente às realidades em que
vivem. Vale destacar que seus
posicionamentos geralmente são
expressos por posturas de contestação
e denúncias das vulnerabilidades
sociais, em práticas de letramento de
reexistência, tais como a leitura e a
escrita literária a partir das próprias
vivências, a produção de raps, a
realização de slam, o grafite e as
batalhas de rimas improvisadas.
Em vista de tais características
identitárias, Souza (2011) considera a
cultura Hip-Hop como agência de
práticas de letramentos de reexistência
ao argumentar que:
[m]inha intenção é evidenciar
que o movimento cultural Hip-
Hop emerge como uma
agência de letramento que
apresenta pontos em comum
com diversas experiências
educativas de grupos do
movimento social negro que o
antecederam. É dessa
perspectiva que procuro
descrever o processo no qual
os ativistas do movimento Hip-
Hop desempenham papel
histórico ao incorporar, criar,
ressignificar e reinventar os
usos sociais da linguagem, os
valores e intenções que chamo
de letramento de reexistência
(Souza, 2011, p. 36).
A autora destaca o caráter
educativo e emancipatório do
movimento Hip-Hop, sobretudo por
possibilitar eventos de letramento, visto
que em sua essência esse movimento
se realiza por meio de diferentes
manifestações artístico-culturais que
põe em evidência o potencial criativo
das populações das comunidades
periféricas que, veem na arte um
potente meio de vencer a pobreza,
além de despertar a consciência crítica
79
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
em relação aos contextos sociais em
que vivem.
A esse respeito, Sousa (2024)
considera que:
[...] experienciar as
manifestações dos elementos
do Hip-Hop extrapolam as
dimensões da fruição estética,
ganhando conotações crítico-
sociais, em que, por meio da
poesia, do rap, do grafite e da
dança, a comunidade se
apropria das linguagens
artísticas para expressarem
suas percepções e
reivindicarem transformações
nas questões que os colocam
em situações de
vulnerabilidade social, oriundas
da ausência de políticas
públicas (Sousa, 2024, p. 134-
135).
Consideramos que esses modos
de experienciar as manifestações dos
elementos do Hip-Hop a partir da
expressão de visões crítico-sociais,
como fazem os Mc’s nas batalhas de
rimas improvisadas, constituem
eventos de letramento de reexistência,
principalmente pelas formas enfáticas
que verbalizam suas percepções
acerca das problemáticas presentes na
sociedade, tais como: o desemprego, a
falta de moradia, as dificuldades de
acesso ao sistema de saúde, o racismo
estrutural, a violência policial, dentre
outras.
Reagindo contra essa realidade
estigmatizante que podemos ver na
nossa sociedade, os Mc’s, assim como
os rappers, usam a palavra lítero-
poética, contestando as diferentes
manifestações preconceituosas,
discriminatórias e racistas que são
disseminadas em diversas situações e
contextos, contra as comunidades
periféricas, por vezes criminalizadas
pelo fato de assumirem suas
identidades culturais.
Consonante ao exposto,
recorremos a Patrocínio (2013) que, ao
argumentar acerca das vozes dos
sujeitos periféricos, afirma que:
No entanto, ainda que a
constituição dos sujeitos
discursivos seja distinta, o
signo da marginalidade ainda
permite a formação de um
discurso de resistência que se
fixa no confronto a uma
determinada norma
estabelecida, seja ela estética
ou ética. Em outras palavras, a
marginalidade ainda é utilizada
como uma forma antagônica
que permite o estabelecimento
de um discurso de oposição
contra-hegemônico
(Patrocínio, 2013, p. 34)
Nesse sentido, as vozes que se
enunciam e se anunciam nas poéticas
e nas narrativas do Hip-Hop,
produzidas pelos Mc’s fazem ecoar
manifestações de resistência e de
80
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
reexistência, que visam romper com
discursos hegemônicos, quase sempre
engendrados em diversas formas de
violências que se materializam em
atitudes preconceituosas e racistas que
parecem cristalizadas na formação da
sociedade brasileira, uma vez que
sabemos que o racismo é estrutural.
Batalhas de rimas
improvisadas na escola como
prática de letramento de reexistência
As práticas de letramento
compreendem atividades como o ato
de ler e de escrever em contextos de
interações sociais que, em se tratando
da cultura Hip-Hop, podemos
exemplificar como letramento de
reexistência a produção de raps, a
realização de campeonato de poesia
slam, o grafite e as batalhas de rimas
improvisadas, que são “[...] práticas
sócio-literárias de resistência à
opressão e de potencialização de
vozes que sempre foram oprimidas na
história do Brasil” (Amorim et al., 2022,
p. 109).
3
As batalhas de conhecimento se caracterizam
pelo estilo “ideologia”, em que os Mc’s
constroem suas rimas a partir de seus
conhecimentos sobre diferentes temas.
Geralmente a plateia cita as palavras e/ou
Para exemplificar essas vozes,
apresentamos, a seguir, as visões
crítico-sociais expressas por Mc Th e
Mc Alucard, em uma batalha de
conhecimento
3
no ambiente escolar,
em que externam suas visões
contrárias aos discursos de preconceito
ao estilo Hip-Hop e ao racismo,
respectivamente:
Freestyle é bonito, pelo jeito
de nós se vestir
A sociedade pensa que nós
somos bandidos
Pelo alargador ou tatuagem
Você pode crer, eu vou
chegando aqui
Rimando, sabe, no maior lazer
Cê tá ligado? A verdade é nua
e crua,
Quando veem nós na rua
Já viram pro outro lado da rua!
(Mc Th)
Quanto ao contexto da produção
das rimas de Mc Th, assim como a rima
de Mc Alucard, que será apresentada
na sequência, ressaltamos que foram
produzidas em um evento de interação
com alunos da Educação de Jovens e
Adultos (EJA), em uma escola pública
da cidade de Araguaína-TO. O evento
era de uma batalha de conhecimento
em que, geralmente, os Mc’s solicitam
expressões e os Mc’s elaboram suas rimas a
partir dessas palavras e expressões
apresentadas pelas pessoas da plateia.
81
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
que a plateia apresente uma relação de
palavras isoladas para, a partir delas e
com acompanhamento musical de rap
instrumental, o beat, fazerem suas
rimas improvisadas, demonstrando
seus níveis de conhecimentos sobre os
temas nomeados por tais palavras.
Quanto ao conteúdo, ao lermos
os trechos das rimas produzidas por
meio de uma dinâmica de
improvisação, vemos que a palavra-
chave desencadeadora do tema (que
foi proposto pelo Mc Th) foi
“sociedade”. Observamos que Mc Th
não conceitua o termo “sociedade”,
mas denuncia o modo como algumas
pessoas o/agem na sociedade “A
sociedade pensa que nós somos
bandidos”, porque eles assumem suas
identidades culturais (com suas roupas,
vestimentas, adornos no corpo,
tatuagem etc.). Vemos implicitamente
que um misto de preconceito e de
repulsa quanto aos corpos e à maneira
de ser dos integrantes da cultura Hip-
Hop.
Portanto, , nas palavras do Mc
Th, uma verdade da dor de quem sente
na pele o peso de fazer parte de
determinados modos de vida “A
sociedade pensa que nós somos
bandidos” /“Cê ligado? A verdade é
nua e crua/ Quando veem s na rua/
viram pro outro lado da rua!”,
sabemos que integrar certas
identidades culturais no nosso país,
muitas vezes, é ser perseguido e/ou
sofrer discriminações.
Contudo, Mc Th também não
deixa de exaltar a beleza do freestyle,
dizendo que: freestyle é bonito”; a
expressão refere-se a um estilo de
poesia falada e ritmada com
acompanhamento instrumental rap,
que constitui as batalhas de rimas
improvisadas.
o Mc Alucard traz sua visão
de mundo no que se refere ao tema
preconceito. Vejamos as rimas, a
seguir:
Eu tenho tudo contra os
preconceitos
E eu bato no peito:
Porque rap, eu faço com amor
Sendo preto ou branco,
Sempre honro a minha cor!
Sempre no microfone,
Sempre honrando o meu
nome,
Eu represento no microfone
É isso aí, aqui não tem D.R:
Preto ou branco, representam
minha pele!
(Mc Alucard)
no verso inicial, Mc Alucard
anuncia seu posicionamento crítico-
social a respeito de preconceitos,
evidenciando a seus interlocutores que
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transformações da cultura")
é totalmente contrário a qualquer tipo
de manifestação preconceituosa, visto
que a palavra-chave e o tema para
improvisação de suas rimas são o
termo “preconceito”. Logo em seguida,
o Mc prossegue expressando que faz
rap com amor, e por isso não faz
distinção de cor, portando-se com
honra diante das diferenças étnico-
raciais, na condição de jovem
fenotipicamente branco, mas que faz
parte da cultura Hip-Hop.
Enfatizamos, também, a
identificação desse jovem Mc com os
princípios fundadores do movimento
cultural Hip-Hop, que surgiu nos guetos
de Nova Iorque, nos Estados Unidos,
no início da década de 1970,
principalmente, como um movimento
de resistência da população negra
contra o racismo, pois a falta de
oportunidades de integração e a
atuação em todos os setores da
sociedade americana, colocava a
população negra em posições sociais
de vulnerabilidade e de miséria.
Devido a isso, Bill E. Lawson
(2006) afirma que a “cultura Hip-Hop de
4
Silvio Almeida (2020) argumenta que “o
racismo é sempre estrutural, ou seja, de que ele
é um elemento que integra a organização
econômica e política da sociedade.” (Almeida,
2020, p. 20). Desse modo, no Brasil, o racismo
fato tem suas raízes nas lutas políticas
dos negros” (Lawson, 2006, p. 171),
fazendo menção aos contextos
históricos desse movimento cultural,
notadamente de lutas e de
reivindicação de direitos da população
negra norte-americana, alicerçado em
contínuas manifestações contra o
racismo estrutural
4
. É marcante esta
cultura de contestação dotada de
posições político-filosóficas em favor
das comunidades negras e/ou
periféricas. Também estes aspectos de
luta e de contestação foram difundidos
mundo afora, e, no Brasil, a partir do
final da década de 1970 e início de
1980, conforme afirma a pesquisadora
Ana Cristina Ribeiro Silva (2021), na
obra “Laboratório Hip-Hop: Arte,
Educação Batalha- Cia Eclipse e
Convidadas (os) e suas andanças”,
LiteraRua.
Retomando a análise das rimas,
vemos que, na segunda estrofe, Mc
Alucard prossegue exaltando seu
compromisso com a cultura Hip-Hop,
por meio de sua atuação nas batalhas
de rimas, que, consonante à sua visão,
se manifesta em todas as relações sociais,
causando exclusão da população negra, além
de muitas vezes culminar em violência e morte
dessas pessoas.
83
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
ele “representa no microfone”, assim
como “Preto ou branco”, que ele afirma
que representam a cor da pele dele.
Então, as rimas improvisadas de Mc
Alucard assumem nitidamente
posições de pertencimento e de
identidade cultural constituída pelo Hip-
Hop, sobretudo no modo como ele se
define como um representante
absolutamente comprometido com
essa cultura, a ponto de assumir uma
postura antirracista.
Podemos constatar pelas rimas
improvisadas dos dois Mc’s que estes
jovens rappers acionam as camadas de
suas subjetividades e seus
conhecimentos, oriundos de vivências
e de leituras, para que suas rimas
exprimam suas visões crítico-sociais, a
exemplo da questão do preconceito
(contra a identidade da cultura Hip-
Hop) e do racismo, tão exacerbado em
diferentes contextos sociais e em
classes no Brasil.
Com vistas à formação de
leitores literários na escola, por meio de
diferentes práticas leitoras, escutas e
análises de raps, promovemos Oficinas
com as batalhas de rimas (com a
participação in loco dos Mc’s na escola)
a fim de fomentar as percepções de
alunos em favor de uma ampliação de
suas capacidades de interpretação e de
compreensão dos diferentes contextos
sociais em que vivem. As oficinas foram
realizadas em uma turma de ano e
outra de 9º no Colégio Estadual Adolfo
Bezerra de Menezes, na cidade de
Araguaína.
A seguir, apresentamos breves
biografias dos três Mc’s participantes
da Batalha do Cimba, que realizaram
as oficinas na escola:
Mc Lemes: Adotou esse nome
no Hip-Hop em alusão ao seu
sobrenome. Tem vinte e quatro anos de
idade (2022), autodeclara-se como
preto. Formou-se em Farmácia
recentemente e atua na área. Até os
dezesseis anos conhecia as
batalhas de rimas por meio de vídeos
assistidos em canais do YouTube e do
Instagram. Seu primeiro contato
presencial com esses eventos culturais
de rimas improvisadas ocorreu em
2017, quando foi convidado por um
amigo, em uma tarde de domingo, a ir
assistir um grupo de adolescentes e
jovens rimarem de forma improvisada
no Parque Cimba, na cidade de
Araguaína, onde ele mora.
A partir de então, o jovem
passou a frequentar essas batalhas de
rimas, que ocorre semanalmente,
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
reunindo um significativo número de
jovens rimadores e pessoas formando
uma plateia. Devido à localização do
evento, passou a ser denominado
como Batalha do Cimba, desde o início,
no ano de 2017. Vejamos, na
sequência, a Figura 1:
Figura 1 - Jovens reunidos em um evento de
batalha de rimas no Parque Cimba.
Fonte: arquivo do pesquisador (2019)
Mc Lemes, desde então, tornou-
se frequentador assíduo do Parque
Cimba e participante das batalhas,
destacando-se dentre os Mc’s da
cidade e do Estado do Tocantins, pelas
rimas improvisadas,
predominantemente construídas no
5
Nas batalhas de rimas improvisadas, as rimas
construídas pelos Mc’s podem ser classificadas
em três diferentes estilos: estilo gastação - em
que predominam palavras de desmerecimento
ou detratação de um Mc contra o outro, assim
como ocorre nas pelejas de cordel; estilo
pederastia- em que os Mc’s proferem
palavrões, fazem alusão ao ato sexual, e aos
órgãos genitais. Esses dois estilos de rimas, em
momento algum foram proferidos pelos Mc’s
participantes dessa pesquisa nos contextos do
estilo “ideologia”
5
. Desde 2018, visita
escolas de ensino fundamental e
médio, bem como faculdades, falando
aos estudantes sobre o movimento Hip-
Hop e a Batalha do Cimba, sempre
fazendo apresentações de rimas
improvisadas e ministrando oficinas,
com o objetivo de dar mais visibilidade
a essa cultura. A seguir, consideremos
a Figura 2:
Figura 2 - Mc Lemes (à direita) no Duelo
Nacional de Mc’s edição 2019, em Belo
Horizonte/MG, representando o Estado do
Tocantins
Fonte: foto cedida pelo Mc Lemes para essa
pesquisa (2023).
Anualmente, Mc Lemes,
juntamente com outros Mc’s
frequentadores da Batalha do Cimba,
projeto educativo do qual participaram como
colaboradores. E, por fim, temos o estilo
“ideologia”, em que os Mc’s demonstram seus
conhecimentos sobre temáticas diversas e
também tecem críticas sociais, sobretudo
contextualizadas com acontecimentos
noticiados nas mídias. O estilo “ideologia” é o
que constitui as batalhas de conhecimento,
predominantes no movimento cultural Batalha
do Cimba (Sousa, 2024, p. 77-78).
85
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
mobiliza-se para participar do
Campeonato Estadual de Mc’s, em que
rimadores de pelo menos cinco cidades
do Estado do Tocantins enfrentam-se
nas batalhas de rimas disputando quem
será o representante do Estado no
Duelo Nacional de Mc’s, que ocorre
anualmente no mês de novembro.
Considerando todo o empenho e
o comprometimento de Mc Lemes com
o movimento Hip-Hop, especialmente,
os modos como ele se mobilizou para a
continuidade da Batalha do Cimba em
Araguaína, nos anos de 2019, 2020 e
2021, ele se destacou nos
campeonatos estaduais de rimas
improvisadas, sendo o representante
estadual nos três anos consecutivos no
Duelo Nacional de Mc’s, na cidade de
Belo Horizonte/MG.
Mc Snout: Mc Snout conheceu o
movimento cultural da cidade de
Araguaína por meio da rede social
Facebook, quando soube que ocorreria
a primeira edição da Batalha do Cimba,
no ano de 2017. Desde então, ele
participa das batalhas de rimas
improvisadas, dentro e fora do Estado
do Tocantins.
Ele tem vinte e três anos (2022),
autodeclara-se como negro, o que é
posto contundentemente na construção
de suas rimas. Possui o ensino médio
completo e trabalha no comércio de
máquinas diversas como conferente de
mercadorias. Eis, na sequência, a
Figura 3:
Figura 3 - Mc Snout em apresentação a
estudantes da UFNT
Fonte: foto cedida pelo Mc Snout para essa
pesquisa (2023).
Conforme nos relatou Mc Snout,
em entrevista, sua identificação com o
movimento Hip-Hop justifica-se como
uma forma de “motivação pra seguir
meus sonhos e mostrar um novo ponto
de vista pra sociedade”, além de
representar a idealização de um “sonho
de carreira e uma válvula de escape do
meu dia a dia”.
À vista disso, podemos
compreender que a identidade cultural
de identificação com o Hip-Hop,
assumida pelo Mc Snout, configura-se,
um modo de se estar e interagir no
86
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
mundo, sobretudo na perspectiva de
realização pessoal na condição de Mc,
visto que, como tal, ele vislumbra
possibilidades de posicionar-se
criticamente diante de diferentes
questões sociais e de ser ouvido por
seus interlocutores. Além disso, o Mc
externa que sua atuação nas batalhas
de rimas permite que ele distancie da
vida comum marcada pelos afazeres
constantes do cotidiano.
Considerando os modos
interativos como Mc Snout participa das
batalhas de rimas e das oficinas de
produção de rimas nos ambientes
escolares, e suas percepções sociais e
vivências expressas em entrevista que
nos foi concedida para esta pesquisa,
evidenciamos seu posicionamento de
resistência e de reexistência (Souza,
2011) em que, por meio de sua
identidade cultural Hip-Hopper, ele
vislumbra perspectivas de intervenções
nos contextos sociais em que vive.
Mc Ferrugem: Embora goste
muito de rimar, na maioria das vezes,
esse jovem Mc assume a função de
apresentador das batalhas, instigando
a plateia a interagir e a expressar a
opinião quanto ao desempenho dos
Mc’s competidores em cada edição.
Mc Ferrugem assumiu esse
nome artístico no movimento Hip-Hop,
em referência às sardas que apresenta
no rosto e aos cabelos levemente
ruivos. Tem vinte e dois anos (2022),
autodeclara-se como branco de
cabelos ruivos e, assim como Mc
Lemes e Mc Snout também participa da
Batalha do Cimba desde as primeiras
edições, em 2017. É estudante do
curso de Direito na Faculdade Católica
Dom Orione (FACDO) e exerce
atividades remuneradas não
específicas, que denomina de “bicos”.
Consideremos, a seguir, a Figura 4:
Figura 4 - Mc Ferrugem em apresentação
Fonte: foto cedida pelo Mc Ferrugem para
essa pesquisa (2023).
Questionado sobre qual
concepção tem do movimento Hip-Hop,
Mc Ferrugem afirma que, para ele, “É
cultura, é a expressão dos oprimidos
pela sociedade em que são
87
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
discriminados justamente pelo que são”
(Mc Ferrugem em entrevista concedida
no dia 22 de março de 2023).
Quanto à inserção das batalhas
de rimas na escola, no contexto dessa
pesquisa, Mc Ferrugem considera que
é um modo de “[...] expressar em
palavras o que você está sentindo, seu
conhecimento e a batalha te uma
impulsão para isso. Por isso eu acho
bastante interessante essa ideia.” (Mc
Ferrugem em entrevista concedida no
dia 22 de março de 2023).
As percepções de uso
pedagógico das batalhas de rimas com
vistas ao incentivo à leitura literária e à
produção de poemas, expressas
anteriormente pelo Mc Ferrugem, estão
em conformidade com a assertiva de
Marc Lamont Hill (2014), que afirma
que:
Através da Literatura Hip-Hop,
os estudantes se envolvem
com os textos de Hip-Hop e uns
com os outros, de maneira que
produzem conversas críticas
em momentos transgressores.
Através da sala de aula imersa
6
A poesia slam, conforme Cynthia Agra de Brito
Neves (2017), é “Um novo fenômeno da poesia
oral e performática” que se realiza por meio de
“competições ou batalhas de poesias que dão
voz e vez a poetas da periferia, os quais versam
sobre as adversidades do seu cotidiano”
(Neves, 2017, p. 92). Nesse sentido, os
campeonatos de slam geralmente são
realizados em praças com presença de plateia
e também nas escolas: os slams escolares ou
no Hip-Hop e, particularmente,
através dos textos de Hip-Hop,
os alunos [são] capazes de
criar novos espaços e formas
para fazer soar suas vozes
(Hill, 2014, p. 51).
Sendo assim, a Literatura Hip-
Hop, citada pelo autor, congrega letras
de raps, poesias slam
6
, batalhas de
rimas improvisadas e, em muitos casos
os escritos em prosa e em versos de
autores da literatura marginal-
periférica, que também expressam
contestação à ausência do poder
público (governamental) nas
comunidades periféricas, no que
concerne à manutenção de serviços
sociais, como cultura, educação, além
de manifestar veementemente o
combate ao racismo e à violência
policial. É exatamente nesta
perspectiva que os Mc’s apresentados
colaboraram no projeto de leitura
promovendo batalhas de rimas
improvisadas e nas oficinas de rimas,
como já referimos nesse estudo.
interescolares. Consiste na apresentação de
uma poesia autoral com tempo máximo de até
três minutos, sem que o poeta utilize qualquer
recurso como suporte, apenas a voz e o corpo.
Ao final da apresentação um júri composto por
cinco pessoas da plateia emite suas notas.
Vence o poeta que conseguir chegar até a final
com a maior nota.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Destacamos que na primeira
participação deles na escola,
inicialmente, apresentaram uma breve
batalha de rimas, na modalidade
batalha de conhecimentos, em que
solicitaram aos estudantes que
falassem palavras contidas nos
poemas dos cards literários, lidos no
sarau do primeiro encontro, para que
pudessem ajudar a construir as rimas a
partir daquelas palavras.
Nessa ação de batalha de rimas
improvisadas, houve maior
envolvimento dos discentes; a maioria
não conhecia essa cultura Hip-Hop e se
mostrou fascinada pela capacidade de
improvisação rítmica-poética dos Mc’s.
Então, mediante a grande aceitação e
simpatia dos discentes para com os
Mc’s, e como estava previsto no
planejamento do projeto, convidamos
esses poetas da oralidade para
participar em outros dois momentos
posteriores.
A seguir, apresentamos a
transcrição da última batalha de rima
improvisada, que foi realizada na
quadra da unidade escolar, no evento
Mostra Literária, promovido pelos
professores da área de linguagem com
a participação de estudantes de todos
os turnos da escola:
Mc Lemes: Se vocês ama essa
cultura, como eu amo essa
cultura...gritem hip...
Plateia: hop!
Mc Lemes: gritem hip...
Plateia: ...hop!
Mc Lemes: Se vocês ama essa
cultura, como eu amo essa
cultura...gritem hip...
Plateia: ...hop!
Mc Lemes: gritem hip...
Plateia: hop!
Mc Lemes: Então eu vou fazer
aqui uma demonstração,/
passando a minha mensagem
e agradecendo/...só falando
verdade, porque vem do
coração!/ Por isso a cada verso
vou fazendo uma construção,/
tipo pedreiro! que o pedreiro
da cena./ Construindo
problema? Não!/
resolvendo meus esquemas,/
porque eu sou pouco a favor
desse sistema!/ Não, não, não!
Porque minha mente,/ ela
sempre segue plena!
Mc Snout: Minha mente segue
plena e encontra a alma! / Por
isso que eu dedico amor à
literatura. / E na minha cultura
expresso sempre isso, porque
eu sou o verso próprio da
cultura!/ Então eu me permito
com a intenção de melhorar,/
porque eu faço o freestyle na
frente pra mim somar! / Por
mais que o som
problema...tá ligado? / Diante
da perseverança não
obstáculo!
89
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Mc Lemes: Não obstáculo,
eu vou chegando!/ Cês sabe
que a rima, agora
incucando!/ Mas não importa
onde eu chego, eu sigo
somando!/ Decorrendo do que
eu corro, sabe que eu
suando!/ Um salve pro Colégio
que me abrigou nessa cultura!/
sabe que amo arte e
literatura!/ Porque isso é
mensagem do meu
vocabulário!/ sabe que eu
rimo, independente do horário:/
de manhã ou de tarde...talvez
ou trabalhando!/ Mas você
sabe que com a cena eu
somando!/ Na escola eu
sempre tive estudando,/ e
agora eu voltei na escola eu
voltei me apresentando!
Mc Snout: Hoje eu fazendo
ritmo com a escola, isso é
engraçado!/ Existe ditatura,
porque meus professores do
passado/ me salvaram de
sentar no canto de mais uma
ditadura!/ Por isso que eu digo
meu freestyle restaurado!/
Vários professores me tiraram
dessa.../ eu nem sabia que eu
tinha talento Hip-Hop,/ o
professor que me ensinou! É o
quinto ano que tô nessa!
Plateia: Êhhhhhh... (Gritos e
aplausos)
Mc Lemes: Por isso que aqui
eu vou lançar...o flow/ A
seguinte mensagem eu vou
passar:/ porque aqui se passa
verdade nos corações.../ do
professor, que é o mestre de
todas as profissões!/ Aqui tem
todas as profissões unidas!/
Por isso que todas as culturas
são bem-vindas,/ por isso que
todo conhecimento é de
verdade!/ Porque aqui se prega
a evolução com sagacidade!
Mc Snout: (primeiro verso
ininteligível) ...desperta o
conhecimento, a moral... tá
ligado que o meu rap diz a
causa: o melhor conhecimento,
a literatura passa! Por isso que
eu chego nessa animação
falando: vocês com a
Educação, vocês tão se
armando... contra uma
opressão garantida no futuro!
Porque cês sabe que a vida
num é fácil nesse mundo! A
vida não é fácil, mas se tiver
estudo, o caminho de vocês,
vocês que escolhe...é o futuro!
Plateia: Êhhh! (Aplausos)
Mc Lemes: Mano, por isso que
aqui se constrói!/ Então
cada professor é um super-
herói!/ É... eu sempre na
minha evolução!/ Por isso que
eu vou passar minha visão,/ de
tudo que eu faço aqui é de
coração!/ São verdades
passadas em forma de
improvisação!/ É... e a escola
sempre abriga quem quiser:/
não importa se ele é homem,
se ele é preto, ou se é mulher!/
Não importa, que ao
ir...cultura!/ isso aqui é muito
mais que... cultura de rua!/ A
gente tá constatando a postura
perpetua!/ Por isso que eu vou
rimando na minha e na sua!
Mc Snout: Eu apresento meu
conceito ideal de sociedade!/
Geral panguando!/ Não tem
mulher, não tem preto! Não tem
homem macho, mano!/ Pra
mim existe “bora ser
humano”!/ Por isso que eu
chego pro freestyle!/ Agora...
na rima eu digo: “fora com a
opressão!”./ Racismo e
preconceito na minha
sociedade,/ me deixam
90
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
indignado com a própria
convicção!
Mc Lemes: Por isso que com
verso eu faço magia!/ Então eu
faço rap: ritmo e poesia!/ Eu
agradeço a oportunidade de
coração!/ E com em Deus,
sábado o Flamengo é
campeão!
Plateia: Êhhhhhhh! (Aplausos).
(Fonte: transcrição feita pelo
pesquisador a partir de vídeo
cedido pela coordenação da
escola)
A batalha de rima acima foi
gravada em vídeo por meio de aparelho
celular pela coordenadora da escola
campo de pesquisa, que nos cedeu
para uso neste estudo. Assim, fizemos
a transcrição literal
7
do áudio com o
propósito de apresentar a batalha em
sua integralidade com a reprodução fiel
das rimas dos Mc’s. A batalha teve
duração de quatro minutos e doze
segundos, foi apresentada como forma
de demonstrar para toda a comunidade
escolar a importância do movimento
Hip-Hop na escola, e como os Mc’s
improvisam suas rimas que, naquele
momento, tiveram como mote suas
percepções do projeto de leitura
7
Na transcrição literal é importante que todo o
conteúdo enunciado pelos falantes sejam
transcritos, exatamente do modo como foi
enunciado: obedecendo a linguagem desses
literária que desenvolvemos com os
estudantes das turmas de e de
anos, do qual participaram como
colaboradores; e, ainda, a apreciação
dos trabalhos artístico-literários
expostos e apresentados no evento em
que fizeram a batalha.
Como marcamos na transcrição,
houve a participação da plateia, que
estava disposta, com a maioria das
pessoas sentadas, assistindo à
apresentação. Inicialmente, Mc Snout
falou brevemente sobre o movimento
Hip-Hop em Araguaína, destacando a
Batalha do Cimba. Ele falou ainda de
sua participação e dos Mc’s Lemes e
Ferrugem nas oficinas do projeto de
leitura que desenvolvemos na escola e,
em seguida, passou a palavra ao Mc
Lemes.
Mc Lemes iniciou sua
enunciação convocando a plateia a
interagir com a saudação usual das
batalhas de rimas, sempre entoada no
início dessas apresentações: “Se vocês
ama essa cultura, como eu amo essa
cultura...gritem: Hip-Hop!”. As pessoas
da plateia, animadas, responderam à
falantes, reproduzindo sua linguagem formal ou
coloquial, gírias, pausas e contração de
palavras, por exemplo.
91
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
saudação, conforme instruções de Mc
Lemes.
Os dois jovens abrem a batalha
com rimas que fazem referência a suas
condições de integrantes do movimento
Hip-Hop por meio de suas identidades
como Mc’s integrantes da batalha de
rimas improvisadas. Citam, ainda, o
comprometimento com o fazer poético
de construção de rimas improvisadas,
como vemos nos versos “Cê sabe que
eu rimo, independente do horário:/ de
manhã ou de tarde...talvez ou
trabalhando! /Mas você sabe que com
a cena eu tô somando!”, de Mc Lemes.
Por meio desses versos, Lemes
apresenta à plateia sua relação com a
batalha de rimas, demonstrando sua
identidade cultural, aparentemente
formada sob forte influência do
movimento Hip-Hop, ao qual ele se
refere como “a cena”. Vejamos, a
seguir, a partir da Figura 5, a imagem
dos Mc’s performando suas rimas.
Figura 5 - Mc Lemes e Mc Snout (à direita) em
batalha de rimas
Fonte: fotografia cedida pela coordenação do
Col. Adolfo (2022).
Na progressão da apresentação
da batalha de rimas, os Mc’s passaram
a rimar sobre a arte e a literatura,
expressando admiração e uma possível
relação com a leitura e com a produção
de literatura oral, por meio da
construção das rimas improvisadas e
do freestyle, como afirma Mc Snout, em
“Por isso que eu dedico amor à
literatura./ E na minha cultura expresso
sempre isso, porque eu sou o verso
próprio da cultura!/ Então eu me
permito com a intenção de melhorar,/
porque eu faço o freestyle na frente pra
mim somar!”.
No decorrer dos versos que dão
início à batalha, percebemos que os
dois Mc’s improvisam suas rimas
apresentando, enfaticamente à plateia,
suas relações com o movimento Hip-
Hop, destacando suas improvisações
92
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
rítmico-poéticas e, sobretudo,
demonstrando suas identidades
culturais, formadas a partir de suas
relações com essa cultura, que
expressa as vozes das populações
periféricas urbanas, histórica e
majoritariamente constituída de
pessoas negras.
Na continuidade, Mc Lemes
informa a plateia quanto à sua vivência
de interlocuções rítmico-poéticas nos
ambientes escolares, atuando como
artista da cultura Hip-Hop por meio das
rimas improvisadas, como está
expresso na sequência de rimas, a
seguir:
Um salve pro Colégio que me
abrigou nessa cultura!/ sabe
que amo arte e literatura!/
Porque isso é mensagem do
meu vocabulário!/ Cê sabe que
eu rimo, independente do
horário:/ de manhã ou de
tarde...talvez ou
trabalhando!/ Mas você sabe
que com a cena eu
somando!/ Na escola eu
sempre tive estudando,/ e
agora eu voltei na escola eu
voltei me apresentando! (Mc
Lemes, nov 2022).
Nessa construção de rimas,
Lemes faz referência à sua atuação em
apresentações nos ambientes
escolares, em que frequentemente se
faz presente junto com outros Mc’s,
levando a cultura Hip-Hop por meio de
palestras, de rodas de conversas com
crianças, com adolescentes e com
adultos, de oficinas de rimas, e,
principalmente realizando batalhas de
rimas improvisadas na modalidade
conhecimento.
Nesse contexto, salientamos
que acompanhamos a trajetória do
movimento Hip-Hopper Batalha do
Cimba desde o início, no ano de 2017,
e a partir de então incentivamos e
encaminhamos os Mc’s a levarem as
batalhas de rimas para as escolas e as
universidades, como forma de
expansão da cultura Hip-Hop e de
valorização da poesia oral construída
por esses poetas orais urbanos, Mc’s e
rappers, que, conforme assevera
Souza (2011), “[e]m suas narrativas,
eles tematizam o cotidiano,
aconselham, denunciam, ensinam,
tomando como referências aspectos do
meio social, político e cultural em que
vivem” (Souza, 2011, p. 61).
Em conformidade com o
argumento exposto acima por Souza
(2011), as construções poéticas dos
Mc’s, a exemplo das rimas de Lemes e
de Snout, em destaque, evocam como
temáticas, diversos aspectos sociais e
contemporâneos presentes nos
93
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
contextos urbanos-periféricos,
denotando suas vivências e suas
percepções crítico-sociais acerca dos
contextos em que estão inseridos.
Nas rimas em análise,
verificamos que os Mc’s colocam em
evidência a abertura gradual que as
escolas e as universidades têm dado
para a inserção do Hip-Hop nesses
ambientes, em perspectiva de
interlocuções poéticas e de
contribuições à construção de uma
educação literária, voltada aos
estudantes da educação básica e do
ensino superior, e ainda os próprios
Mc’s, dentre os quais percebemos que
alguns desenvolveram a consciência
de que para se sobressaírem nas
batalhas de rimas necessitam praticar
diversos tipos de leituras,
principalmente, a literária.
Podemos destacar, ainda, nessa
batalha de rimas realizada na escola,
outras temáticas enunciadas por
Lemes e por Snout que, de certo modo,
convocam a plateia, principalmente, os
estudantes presentes, a refletir sobre a
literatura como expressão das
percepções da realidade cotidiana. Isso
pode ser assinalado com base nos
seguintes versos de Mc Snout: “Minha
mente segue plena e encontra a alma!/
Por isso que eu dedico amor à
literatura./ E na minha cultura expresso
sempre isso, porque eu sou o verso
próprio da cultura!”; vemos também
referência ao papel de transformação
social desempenhado pela educação,
em:
Por isso que eu chego nessa
animação falando: vocês com a
Educação, vocês tão se
armando... contra uma
opressão garantida no futuro!
Porque cês sabe que a vida
num é fácil nesse mundo! A
vida não é fácil, mas se tiver
estudo, o caminho de vocês,
vocês que escolhe...é o futuro!
(Mc Snout, nov 2022).
As rimas de Snout destacam a
perspectiva de que, por meio do acesso
à educação, os adolescentes e os
jovens em formação poderão ter
melhores condições de romper com as
diversas dificuldades que acentuam as
desigualdades sociais e que limitam
e/ou impossibilitam o acesso à
cidadania.
Como construção artístico-
cultural, o movimento Hip-Hop é,
sobretudo, uma prática de grande
relevância que expressa as vozes da
população negra e periférica,
marginalizada ao longo da história
pelas impossibilidades de acesso à
cidadania, aspecto potencializado pelo
94
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
racismo. Em contraposição a essa
realidade, as poéticas enunciadas
pelos Mc’s nas batalhas de rimas,
assim como nas letras de raps,
potencializam o combate a todo tipo de
preconceito e de racismo, tão
presentes na sociedade brasileira.
Devido a isso, destacamos, a
seguir, as rimas em que Mc Snout faz
sua crítica social a partir de sua
percepção de diferentes preconceitos e
do racismo (que é uma questão
estrutural em nosso país), aos quais
repudia. Vejamos a letra:
Eu apresento meu conceito
ideal de sociedade!/ Geral
panguando!/ Não tem mulher,
não tem preto! Não tem homem
macho, mano!/ Pra mim
existe “bora ser humano”!/ Por
isso que eu chego pro
freestyle!/ Agora... na rima eu
digo: “fora com a opressão!”./
Racismo e preconceito na
minha sociedade,/ me deixam
indignado com a própria
convicção! (Mc Snout, nov
2022).
A partir da apropriação de uma
linguagem coloquial marcada pela
presença de gírias (“Geral”,
“panguando”, “mano”, “bora”),
característica acentuada das letras de
rap, do slam e das batalhas de rimas,
Mc Snout posiciona-se contra a
misoginia, em “Não tem mulher...não
tem homem macho”, com isso
podemos interpretar que uma
defesa da igualdade de gêneros. Na
sequência, o referido Mc ainda rejeita
qualquer forma de opressão e finaliza
expressando sua total indignação e sua
reprovação em relação ao preconceito
e ao racismo, nos versos “Racismo e
preconceito na minha sociedade, / me
deixam indignado com a própria
convicção!”.
Nessa perspectiva,
consideramos que as batalhas de rimas
na “modalidade conhecimento” (uma
vez que existem outras modalidades)
são práticas de um tipo de linguagem
poética mais democrática e
acreditamos que sua inserção na
escola seja muito importante, visto que
a linguagem coloquial dos Mc’s,
associada aos beats e ao freestyle, e,
ainda, considerando, sobretudo, os
seus estilos pessoais, conseguem
expressar suas identidades culturais.
Sendo assim, constatamos que este
estilo de poesia, comumente, de
poetas-Mc’s mais jovens, consegue
despertar fortemente a atenção de
adolescentes e/ou de jovens.
Acreditamos que há, portanto, uma
identificação maior. Além disso, esta
poesia considerada mais “marginal-
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
periférica” pode levar os estudantes ao
gosto pelas rimas, podendo despertar-
lhes o gosto pela prática da leitura de
poemas e até mesmo da escrita
literária.
Salientamos que, as habilidades
de improvisação dos Mc’s, que se dão
a partir de temáticas livres, ritmadas por
um beat instrumental, parece-nos ser o
fator que mais chama a atenção dos
espectadores. A progressão das rimas
apresentadas pelos Mc’s parece
corresponder à expectativa das
pessoas na plateia sobre qual dos dois
poetas-improvisadores conseguirá se
sobressair na performance poética-oral
do improviso.
Os sentidos enunciados por Mc
Lemes e por Mc Snout, na batalha de
rimas em evidência, denotam que
esses eventos de improvisações
poéticas, principalmente nos ambientes
escolares, podem contribuir para uma
leitura crítico-social da realidade em
que adolescentes e jovens são
instigados a refletirem e a expressarem
suas percepções, ao mesmo tempo em
que são motivados a exercerem
atitudes de reexistência frente às
adversidades presentes em seus
contextos de vivências sociais.
Considerações finais
A experiência de inserir os Mc’s
na escola em momentos de interação
com os estudantes por meio das
batalhas de rimas improvisadas foi uma
iniciativa muito significativa de
valorização da poética oral produzida
por esses jovens poetas urbanos, que,
em práticas de letramentos de
reexistência, enunciam em suas rimas
suas vivências e suas leituras críticas
acerca dos contextos sociais em que
estão inseridos, e que são capazes de
perceber as situações de
vulnerabilidades que por vezes são
presentes nesses contextos.
Consideramos que a presença
dos Mc’s na escola, na condição de
colaboradores realizando batalhas e
oficinas de rimas, foi muito relevante
sobretudo em virtude da boa
receptividade dos alunos para com
eles. Assim, foram vivenciados bons
momentos de interação a partir da
apreciação das rimas improvisadas
enunciadas pelos Mc’s, de modo que
os alunos puderam perceber a
expressividade poética dessas rimas e
foram instigados a vivenciarem a
poesia de outras formas e perspectivas
diferentes.
Referências
96
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
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LiteraRua, 2021.
SOUSA, Leomar Alves de. Hip-hop e a
literatura marginal-periférica:
contribuição para a formação leitora na
escola. Tese (Doutorado em Linguística
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Integradas CCI, Universidade Federal
do Norte do Tocantins, Araguaína,
2024.
SOUZA, Ana Lúcia. Letramentos de
reexistência: poesia, grafite, música,
dança: Hip-hop. São Paulo: Parábola
Editorial, 2011.
97
ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
Slam Xamego: amor como resistência no Hip-Hop do Espírito Santo
João Otávio Almeida1
Lara Brum de Calais2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v15i28.65114
Resumo: O Slam é uma arte periférica de protesto que pertence à cultura Hip-Hop. Na região da
Grande Vitória, no Espírito Santo, existem vários Slams, dentre eles o Slam Xamego, que é, até então,
o primeiro e único Slam afetivo da região, ou seja, um Slam que traz, em primeiro plano, os afetos, em
especial o amor. Este estudo teve como objetivos compreender a afirmação do amor como dispositivo
de resistência e produção de vida para jovens negros e periféricos participantes do Slam Xamego, bem
como o contexto e motivo de sua criação, além de acessar a função da poesia sobre amor para os
Slammer e sua localização como enunciado político. A metodologia incluiu entrevistas semi-
estruturadas e análise de produção de sentido. Como resultado, entendemos os caminhos desses
jovens negros e periféricos para uma aposta ético-estético-política no amor como forma de resistência
e de criação de outros modos de existir na cidade que fissura a lógica hegemônica.
Palavras-chave: slam; Slam Xamego; amor; amor político; Hip-Hop.
Slam Xamego: love as resistance in the Hip-Hop of Espírito Santo
Abstract: Slam is a peripheral art of protest that belongs to Hip-Hop culture. In the region of Grande
Vitória, in Espírito Santo, there are several Slams, among them Slam Xamego, which is, so far, the first
and only affective Slam in the region, that is, a Slam that prioritizes affections, especially love. This study
aimed to understand the affirmation of love as a device of resistance and a way of producing life for
Black and peripheral youth participating in Slam Xamego, as well as the context and reasons for its
creation. Additionally, it sought to explore the function of poetry about love for the Slammers and its
positioning as a political statement. The methodology included semi-structured interviews and an
analysis of meaning production. As a result, we understood the paths of these Black and peripheral
youth towards an ethical-aesthetic-political stance on love as a form of resistance and the creation of
alternative ways of existing in the city, disrupting hegemonic logic.
Keywords: slam; Slam Xamego; love; political love; Hip-Hop.
1Graduando em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Integrante do Grupo
de Pesquisa Infâmias Resistências (UFES) e do Coletivo Ocupação Psicanalítica - ES. E-mail:
joaootavio64@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0541-7203.
2Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Docente do Departamento
de Psicologia e do Programa de Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo
(PPGPSI/UFES). E-mail: lara.calais@ufes.br. ORCID: https://orcid.org/0009-0006-0346-630X.
Recebido em 24/10/2024, aceito para publicação em 07/12/2024.
98
ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
Slam Xamego: amor como resistencia en el Hip-Hop del Espírito Santo
Resumen: El Slam es un arte periférico de protesta que pertenece a la cultura Hip-Hop. En la región
de Grande Vitória, en Espírito Santo, existen varios Slams, entre ellos el Slam Xamego, que es, hasta
ahora, el primero y único Slam afectivo de la región, es decir, un Slam que pone en primer plano los
afectos, en especial el amor. Este estudio tuvo como objetivos comprender la afirmación del amor como
dispositivo de resistencia y producción de vida para jóvenes negros y periféricos participantes del Slam
Xamego, así como el contexto y los motivos de su creación, además de analizar la función de la poesía
sobre el amor para los Slammer y su ubicación como enunciado político. La metodología incluyó
entrevistas semiestructuradas y análisis de producción de sentido. Como resultado, entendimos los
caminos de estos jóvenes negros y periféricos hacia una apuesta ético-estético-política en el amor
como forma de resistencia y creación de otros modos de existir en la ciudad, que fisura la lógica
hegemónica.
Palabras clave: slam; Slam Xamego; amor; amor político; Hip-Hop.
Slam Xamego: amor como resistência no Hip-Hop do Espírito Santo
Introdução
Cantando sobre o que acontece
vejo que poucos mudaram
Quantas vezes você já foi amado?
Cantar sobre amar talvez seja mais
revolucionário
Baco Exu do Blues
No bojo da cultura Hip-Hop,
adolescentes e jovens negros e
periféricos, historicamente, e aos seus
modos, constroem passos e versos de
resistência embalados pela arte e pelos
manifestos. Neste sentido,
compreender a cultura Hip-Hop,
especificamente pelo slam como modo
de produção de resistência na relação
de jovens com suas vidas e territórios,
se torna potencial. Neste artigo,
daremos destaque, por meio da escuta
de jovens poetas, aos processos de
resistências que são produzidos por
meio da arte, da política, da cultura e da
estética, que atuam como dispositivos
políticos e artísticos de produção de
subjetividades.
Em meio às estratégias de
vigilância que se configuram em nossa
sociedade, especialmente sobre os
corpos e performances de pessoas
negras e periféricas, as juventudes
aparecem como alvo, sendo
constantemente entendidos como
supostamente perigosos e,
consequentemente, tomados pela
lógica de uma política de morte. Na
perspectiva de autores como Coimbra;
Nascimento (2005); Foucault (1997);
Mbembe, (2018), tais corpos são mais
99
ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
facilmente passíveis da morte seja ela
real ou simbólica. Engendra-se a
política de fazer morrer quando o
Estado elege um inimigo passível de
fazer guerra para justificar as mortes
que ocorrem, como se estivesse num
estado de sítio. A necropolítica, aqui
tomada na perspectiva de Mbembe
(2018), funde-se ao ato de apontar qual
corpo é passível de ser descartado,
fazendo com que o controle deixe de
ser pela vida e passe a ser gerido na
escolha de quem vai morrer.
Sob esta égide, é valioso pensar
a constituição da subjetividade desses
jovens, entendendo-a como modos de
ser, estar e sentir que não se originam
no interior do indivíduo, mas que se
formam através de constantes
atravessamentos. Assim, a expressão
'processos de subjetivação' preenche
de sentido a dimensão processual que
emerge do encontro do sujeito com o
mundo (Tavares, 2011) e, nesse caso,
também com as práticas de violência
perpetradas cotidianamente. Os
processos de subjetivação incididos
pela desigualdade social trazem,
portanto, um gama de efeitos para as
populações periféricas e
marginalizadas. Neste sentido, no que
se refere especificamente a
adolescentes e jovens, prioritariamente
negros e pobres, pode-se anunciar uma
ótica de produção da subjetividade
infame ou seja, aqueles que são
alocados como sem notoriedade e que,
supostamente, não fariam falta na cena
social. Tais corpos só se tornam dignos
de nota quando, de algum modo,
entram em conflito com o Estado
(Almeida, 2021; Foucault, 2003; Lobo,
2007).
Desta forma, o presente artigo,
fruto de uma pesquisa de iniciação
científica fomentada pela Universidade
Federal do Espírito Santo, aproximou-
se de jovens envolvidos com a arte do
slam e suas expressões poéticas.
Tendo, como objetivo, compreender a
afirmação do amor como dispositivo de
resistência e produção de vida para
jovens negros e periféricos
participantes do Slam Xamego, a
investigação ocupou-se, também, do
contexto e motivo da criação dessa
modalidade de slam, além de acessar a
função da poesia sobre amor para os
Slammers e sua localização como
enunciado político.
parte da cultura Hip-Hop e pode ser
definido de diversas maneiras, dentre
elas: i) como uma competição de
100
ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
performances de recitação de poesia;
ii) como um espaço livre para
expressão das construções poética dos
participantes; iii) como espaço para
debater questões políticas e iv) como
local de lazer e entretenimento. A
autora afirma que definir o slam é
complexo, pois ele se transformou ao
longo do tempo, expandindo-se,
globalmente, como um acontecimento
poético em um movimento cultural,
artístico e social. Afirma-se, portanto,
como um movimento de literatura
marginal, existindo um duplo enredo
para tal: sendo uma literatura que o
está nas prateleiras das bibliotecas,
não está do lado das literaturas
canônicas; e, sendo uma arte
produzida por pessoas que estão à
margem, está nas periferias. Esse
duplo enredo torna o slam um
movimento de literatura marginal
(Neves, 2017).
De composição eminentemente
política, o slam é um espaço para
debater questões da sociedade, do
cotidiano, afirmando-se como um
movimento estético-cultural que
envolve a poesia falada destacando o
potencial criativo e inventivo dos jovens
como principal instrumento para se
-se,
portanto, um espaço de subversão que
fissura a lógica hegemônica. O slam,
sendo um espaço de denúncia, grito,
desabafo, resistência, produção de
sentido, literatura, conhecimento,
subjetividade e estética, cria, assim,
lugares para uma outra existência
possível. (Neves, 2017). Este trabalho,
portanto, entende o slam como esse
espaço de fissura, de relevância social
e política para jovens negros e
periféricos, especialmente no que diz
respeito à construção de suas
subjetividades (Tavares, 2011).
O slam, de modo geral, tem seu
foco poético em críticas ao racismo, a
violência policial, as estruturas políticas
do país e denunciam as mazelas do
país. Contudo, em meio a esse amplo
movimento, destacamos aqui a
existência de um grupo de Slam que
tem, em seu foco poético, as
afetividades. Isto, por si só, já aponta a
estética desse movimento de
reexistência (Silva Neto, 2023; Neves,
2017). O Slam Xamego, já reconhecido
no estado, é o primeiro e a o
momento único Slam afetivo do Espírito
Santo, atuante na Região Metropolitana
da Grande Vitória (RMGV), onde
existem vários Slams.
101
ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
Em linhas gerais, o grito dos
Slammers anuncia e denuncia a
demanda por vida, quando ecoam as
frases de jovens em suas poesias:
cada 23 minutos morre um jovem negro
. Atravessamentos subjetivos
também ecoam em suas poesias,
demonstrando uma luta por
sobrevivência expandida no palco do
slam. Assim, tornam-se também
estratégia política falar dos afetos,
pautar outras formas de existência a
partir da performance em que as
críticas sociais ganham outros
contornos, apontando que, além de ser
urgente viver, também é urgente amar,
como ressalta o Slam Xamego.
Portanto, permitir-se ser afetado
é uma aposta ético-estético-política que
esses jovens fazem para se agarrar à
vida, para produzir modos a partir dos
quais a vida faça sentido. Nesta toada,
hooks3(2020) destaca o amor como
crescimento espiritual e fala de uma
ética amorosa. Noguera (2020) afirma
que o amor é uma emoção coletiva e
um ato político e, além disso, Souza
3O nome da autora bell hooks, é escrito em
letra minúsculo, pois a autora escolhe esse
pseudônimo e adota o minúsculo para desviar
a atenção de si mesma enquanto indivíduo e
focar na importância de seu trabalho e legado,
valorizando a coletividade e o impacto de suas
(2021) diz que amor é a esperança de
viver junto aos seus, pois está atrelado
à ancestralidade. Assim, a autora bell
hooks (2020), que dedica parte
importante de sua obra aos afetos e,
em especial ao amor, sugere que o ele
se manifesta nas ações, refletindo, tal
como anunciam os jovens do Slam
Xamego, que, apesar da violência
(Lanna et al., 2021; Silva Neto, 2023),
vale falar de amor e afeto como uma
decisão consciente e política (Noguera,
2020; Souza, 2021; Rodrigues, 2021).
Nessa sociedade da
necropolítica onde corpos negros,
periféricos são sistematicamente
descartados, seja pela morte concreta
ou simbólica (Mbembé, 2018), o amor
não é prontamente apresentado a
essas pessoas. Para pessoas negras, o
amor é negado, tanto para homens,
pois entende-se que não existe uma
cultura de amor em relação aos
homens negros (Farias et al., 2023),
como para mulheres, que relatam uma
vivência de mal-estar por conta da
negação do amor (Fernandes, 2024).
ideias. Isto é explicado no site da própria
autora: <https://bellhooksbooks.com/faq-
items/why-did-bell-hooks-want-her-name-
lowercase/?form=MG0AV3>. Acesso em: 30
jan. 2025.
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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
Para hooks (2020), uma
busca e ânsia pelo amor mesmo diante
da impossibilidade de ele ser
encontrado. Nesse sentido, uma
inventividade que se na
necessidade de amar e ser amado.
Fazer poesias e declamá-las em
espaços públicos nas competições de
slam fala sobre essa invenção de amar,
de demonstrar seus afetos. A poesia
marginal revela, então, a dimensão
estética-política-afetiva das relações
destes jovens com os espaços que
ocupam, desafiando o Estado e
apontando-o como o autor da violência
sistemática contra eles. O grito do slam
ressoa a urgência de viver.
Tornar evidente os afetos em
uma sociedade que mata real e
simbolicamente pessoas negras é o
que materializa ações de resistência,
de subversão e de invenção,
apontando que, mesmo diante das
violências que negam a vida e negam o
amor, viver e amar é parte do processo
de subjetivação desses sujeitos (Pinho,
2023; Tavares, 2011). Engendra-se,
então, um processo inovador em
afirmar a possibilidade do amor,
quando a morte é passível a qualquer
momento. Tornam-se esteticamente
revolucionários ao declamar poesias
nas ruas da cidade, anunciando que o
amor é possível para jovens negros e
periféricos; criam-se cenários de outros
modos de existir e estar no mundo,
subvertendo a história única sobre suas
próprias vidas, criando a possibilidade
de sonhar outros modos de viver
(Adichie, 2019; Lanna et al,. 2021;
Mbembe; 2018; Moten, 2023; Silva
Neto, 2023; Tavares, 2011).
Metodologia
Ladrão, então peguemos de volta
o que nos foi tirado
Mano, ou você faz isso
Ou seria em vão o que os
nossosancestrais teriam sangrado
Djonga
Em concordância com os
objetivos deste trabalho, delimitou-se
que os participantes seriam os jovens
do Slam Xamego acima de 18 anos,
sem restrição a gênero e raça. Em um
dos eventos do slam, foi feito o anúncio
sobre a pesquisa e sua relevância,
oportunidade em que alguns poetas se
dispuseram a participar. Foi utilizado,
como critério de seleção, que metade
dos participantes fossem de criadores
do Slam Xamego. Ao todo, foram
entrevistados quatro participantes, três
homens e uma mulher, todos
cisgêneros, autodeclarados negros,
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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
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transformações da cultura ")
com faixa etária entre 21 e 26 anos, e
escolaridade variando de Ensino Médio
completo à Superior Completo.
As entrevistas semiestruturadas
realizadas com integrantes do coletivo
tiveram, como base, o método de
Triviños (1987), cujo intuito foi de
investigar: i) como surge o Slam
Xamego e em qual contexto; ii) o que
leva esses jovens a escreverem sobre
o amor; iii) como eles percebem nessas
poesias os atravessamentos pelos
marcadores sociais de raça, classe e
gênero; iv) se esse movimento que
busca falar dos afetos tem alguma
função e impacto social na vida dos
jovens que frequentam o Slam
Xamego.
Além disso, cabe dizer que essa
pesquisa segue os critérios
estabelecidos pelas resoluções 466,
de 12 de dezembro de 2012, e
resolução 510, de 07 de abril de
2016, e foi aprovado pelo Comitê de
Ética em Pesquisa da Universidade
Federal do Espírito Santo (UFES)4,
assegurando o respeito à dignidade,
bem como a autonomia dos
participantes, por meio do Termo de
4CAAE: 70300623.2.0000.5542, aprovado na
data 21 de julho de 2023.
Consentimento Livre Esclarecido
(TCLE). A participação é voluntária, e,
caso seja necessário, eles podem
desistir a qualquer momento. Além
disso, é garantido o retorno dos
resultados obtidos. Antes de iniciar as
entrevistas, foi apresentado o TCLE
aos participantes para que assinassem.
Todos autorizaram que fossem
captados áudios com um aparelho de
telefone celular. Neste trabalho, serão
usados os mesmos nomes que eles
utilizam no slam.
Para a análise das entrevistas,
foi utilizada a Análise de Produção de
Sentidos (Lanna et al., 2021; Spink
2010). Nesse método, o processo de
categorização é realizado sem
categorias pré-definidas, uma vez que
elas vão emergindo à medida que o
trabalho de análise é realizado. De
certa forma, as categorias acabam
refletindo os elementos elencados
como relevantes para o roteiro da
entrevista (Lanna et al. 2021). Após
esta etapa, foi elaborado um Mapa de
Associação de Ideais, conforme Lanna
et al., (2021), apontando as categorias
e os sentidos atribuídos às narrativas
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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
dos participantes da pesquisa, com o
objetivo de alinhar os conteúdos, ou
seja, os sentidos obtidos com base
nessas categorias. Neste trabalho,
compreende-se o sentido como um
processo social, coletivo e interativo,
influenciado por relações históricas e
culturais, gerado por atravessamentos
coletivos, sendo a linguagem um ponto
crucial nesta produção, caracterizando
Práticas Discursivas (Lanna et al.,
2021).
Após a transcrição das
entrevistas, por meio do programa
Transkriptor, e feitas as devidas
correções, foi possível realizar a leitura
e sistematização dos trechos de falas
nas seguintes categorias: afeto-amor;
corpo político; sonhos e autoanálise. Ao
todo, por meio das narrativas das
entrevistas, foram elencados 9
sentidos, conforme demonstrado na
Tabela 1.
Tabela 1 Mapa de associação de ideias.
Categoria Sentidos
AFETO-AMOR
1.1 Amor romântico
1.2 Amor pelos familiares e amigos
1.3 Amor por si próprio
CORPO POLÍTICO 2.1 Resistência
2.2 Amor político
SONHOS
3.1 Possibilidade de amar/desejar
3.2 Continuidade
3.3 Ocupar espaços
AUTOANÁLISE 4.1 Mudança
Fonte: Autores.
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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
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transformações da cultura ")
sejam aquecidos, amores
5
Muitos aqui têm ódio e nem sabe
por que, cara
Ouve a dor na minha voz, me
responde: Por quê, cara?
Djonga
O campo desta pesquisa
compreende o próprio Slam Xamego,
corroborando com a noção de uma
formação artística de pessoas que
estão à margem da sociedade e são
produtoras de literatura marginal. Essa
literatura produzida pelo slam é
fissurante nos contextos onde existe,
pois acaba utilizando de aparatos
estéticos para reivindicar seu local
social. Nesse sentido, provoca a olhar
para cidade e a pensar como essa
manifestação imbrica em suas ruas,
praças, espaços. O poder público pode
se fazer presente para promover ou
reprimir essa movimentação marginal;
de ambas as formas, a existência do
slam provoca, no Estado, alguma ação.
Para além da sua marginalidade, o
Slam Xamego tem outro
5Todo slam tem seu grito, que é entoado antes
de algum poeta fazer sua performance. No
Slam Xamego, o grito é: "que os corações
desdobramento na sua forma de
ocupar a cidade, bem como outras
potencialidades como coletivo por sua
característica singular de colocar à tona
os afetos e o amor (Silva Neto, 2023;
Silva; Losekann, 2020). Essas
características serão exploradas nas
categorias a seguir.
Quando garotos negros amam,
quando garotos pretos se
amam
Quase sempre se inventou um
jeito
E percebi ser são cada vez
que fui amado
(Rico Dalasam; Céu).
A categoria Afeto-Amor é a
primeira a ser identificada e a que tem
mais volume de informações, tendo três
sentidos atribuídos: 1) Amor romântico;
2) Amor pelos familiares e amigos; 3)
Amor por si próprio.
Nos amparando na perspectiva
de hooks (2020), o conceito de amor é
entendido como o desejo de promover
o crescimento espiritual seu e de outra
pessoa, sendo, esta, uma ação
intencional. Essa definição se aproxima
da perspectiva sobre o amor de um dos
entrevistados, que
amor, velho, eu acho que é baseado no
sejam aquecidos, amores correspondidos e
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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
querer o bem. Querer o bem, quem
entrevista realizada, em 23/04/2024,
com Do Carmo).
Nestes termos, a teoria e a
realidade se encontram. Além disso,
Noguera (2021) afirma que essa
dimensão do bem-estar não se
individualmente, mas sim
coletivamente, entendendo que amar é
escutar, é ouvir os desejos, as
necessidades, o corpo; tanto o seu
próprio como do outro, num movimento
conhecer o amor, é necessário, antes
de tudo, conhecer a si mesmo e ao
sentido que hooks (2020) entende o
amor como tendo uma dimensão social,
que possibilita uma vivência cidadã por
via da ética amorosa.
Tal conjuntura afeta diretamente
a existência de pessoas negras, tendo
em vista que o amor e a cidadania
foram e continuam lhes sendo
negados. O negro não era uma pessoa,
nem cidadão livre na condição de
escravizado, sendo excluído do corpo
social (Nogueira, 1998). Porém, é pela
via do amor que se torna possível a
afirmação de estar vivo com os seus,
com a comunidade e seus ancestrais
e despertar, com intensidade, a nossa
capacidade de ação, que foi
cotidianamente vilipendiada (Souza,
2021).
A escolha por amar e ser amado
implica em confrontar o medo, a
alienação e a separação. Escolher
amar é escolher ir ao encontro e
estabelecer conexão: é uma escolha
que leva ao encontro, seja de si
mesmo, seja com o outro. Pela via do
amor é possível restituir a cidadania e a
possibilidade de viver, pois o amor,
mesmo sendo negado, não é nulo e
confere ao sujeito uma capacidade de
ação (hooks, 2020; Souza, 2021).
Em uma das entrevistas, João
Martins aponta:
O livro que eu tenho que o
amor, porém
não é somente sobre um amor
romântico. Esse livro, inclusive,
é um livro totalmente dedicado
às minhas avós, que pra mim
são, são os maiores exemplos
que eu tenho na minha vida de
amor, de afeto, de carinho
(Trecho da entrevista realizada
14/03/2024).
Souza (2021) discorre a respeito
da reverberação da ancestralidade,
entendendo que, além das gerações
anteriores a esses jovens em sua
própria linha genética, uma
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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
dimensão ampliada na ancestralidade
para pessoas negras que é
experimentada dentro de um singular-
coletivo, nesse caminho, quem guie
até a jornada pelo amor (Almeida et al.,
2023; hooks, 2020). Na perspectiva de
de amar esteja presente em todas as
crianças pequenas, ainda assim, elas
precisam de orientação quanto às
dimensão relacional como ponto de
profunda relevância na construção
humana.
Outro entrevistado, em um
trecho de seu relato, aponta que:
eu não sei se é certo falar que
o Xamego me deu tudo, mas eu
sei que o Xamego me levou
para as pessoas certas. Me
levou para o João, me levou
para a Thales, para a Italo, para
a Marquinhos, para a Júlia, me
aproximou dos meus pais.
Mesmo tendo uma certa
distância, me aproximou deles.
Então, começo de tudo, o
menor revoltado, hoje, o menor
que se ama, ama a namorada,
ama os pais e ama os amigos
(Trecho da entrevista realizada
em 06/03/2024 com Filipe
Soul).
Esse trecho engloba todos os
três sentidos desta categoria. No que
diz respeito ao amor pelos amigos é
importante dessa
experiência de comunidade é a
amizade, que para muitos é o primeiro
comunidade é o melhor lugar para
aprender sobre a arte do amor:
aprende-se a lidar com os conflitos,
com as diferenças e a processar os
problemas enquanto o vínculo
permanece ativo. Amar as amizades
traz um fortalecimento para que esse
amor seja levado para outras relações,
familiares, românticas, consigo mesmo
(hooks, 2020).
Sobre o amor próprio, hooks
(2020
mais significativa a fala do entrevistado
que, ao relatar que o slam lhe trouxe
amigos, e que, na relação com esses
amigos, ele passou a amar a si mesmo,
os próprios amigos e seus familiares,
começou a namorar e amar sua
namorada também. Nogueira (1998)
afirma que esta configuração do amor
próprio é, de fato, um desafio para
pessoas negras em relação à
construção da sua própria identidade, e
da sua construção enquanto indivíduo
que pertence ao grupo de pessoas
negras. Contudo, nesse processo,
revelar o amor enquanto possibilidade
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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
cria laços consigo e com outros,
conferindo outras alternativas de ser no
mundo.
a respeito do amor romântico,
outra entrevistada relata que teve
algumas questões a compreender
que o amor romântico também era
possível pra ela e que passa a perceber
isso no Slam Xamego, por meio da
interação dos amigos e dos casais que
se constituíram naquele espaço:
Nunca desacreditei do amor em
relação à amizade e essas coisas, mas do
romântico eu desacreditava muito que eu
poderia viver isso. E foi muito importante
pra minha coletividade nesse sentido,
porque eu não fazia poesia de amor
romântico, mas eu ouvi pessoas fazendo e
vi pessoas amando no Slam Xamego. [...]
Eu penso muito sobre o cuidado, mesmo,
de entender, por exemplo, como é que
funciona o cabelo da minha mulher, por
exemplo, os cuidados com a pele. É muito
o cuidado, sabe, disso tudo, e com pessoas
que se entendem muito por serem pessoas
pretas, pessoas com vivências parecidas
(Trecho da entrevista realizada em
13/04/2024 com Adrielly).
O direito à liberdade e de viver
plenamente e bem são pressupostos
de uma ética amorosa (hooks, 2020).
Imergir nessa ética significa fazer uso
das dimensões do amor no cotidiano,
ou seja, o cuidado, a confiança, o
compromisso, a responsabilidade, o
respeito e o conhecimento. Na medida
em que se autoanalisa criticamente, é
possível ajustar o que é preciso para
dar carinho, cuidado, respeito e
aprender a se relacionar na medida em
que se relaciona (hooks, 2020).
Noguera (2020) aponta que o processo
de amar e ser amado perpassa o
cotidiano, a aventura de conhecer o
outro e a si a cada dia. Amar é fazer um
percurso de intimidade com o outro. A
visão dos autores se encaixa na fala de
Adrielly, que destaca a facilidade de
criar intimidade com quem compartilha
experiências semelhantes.
Pode tentar, mas vocês nunca vai
calar minha voz
Mas talvez
Meu povo se levanta algum dia
Mas talvez
A paz reine pelas periferias
Mas talvez
Meu morro volta a viver com
alegria
(Mc Poze do Rodo)
Em relação a categoria Corpo
Político, foram atribuídos os seguintes
sentidos: 1) Resistência; e 2) Amor
político. No tocante ao sentido da
resistência, os jovens negros e
periféricos entendem, desde cedo, que
seu corpo carrega aquilo que Foucault
(1997) chama de virtualidade, ou seja,
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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
aquele que pode vir a ser. Esses jovens
são marcados com olhares, falas,
gestos, ações da sociedade para com
eles (Kilomba, 2019). Afinal, ser jovem
e pobre é perigoso?6(Coimbra;
Nascimento 2005).
Nesse sentido, é pela
experiência dos mais velhos que se
apreendem os modos de se mover na
cidade, de resistir, de existir, por meio
de uma tecnologia de resistência: o
aquilombamento. Jovens, negros e
periféricos formam coletivos como
forma de continuarem vivos:
-se é o ato de assumir uma
posição de resistência contra-
hegemônica a partir de um corpo
processo de alijamento social das
pessoas negras durante os períodos da
abolição e no que se seguiu a ela,
foram e ainda são constituídos espaços
para resistir às violências,
principalmente para que tenham um
espaço para serem sujeitos, um lugar
onde as representações de si e dos
seus semelhantes têm um outro olhar
(Nogueira, 1998; Souto, 2020).
Além disso, o recurso de
linguagem utilizado por esses jovens é
6Título da obra das autoras.
o da poesia falada. Grifamos o termo
para recorremos a Fanon (2020, p. 31),
-se
dizer que os jovens poetas buscam dar
forma aos seus corpos, às suas
existências. Ao falarem suas poesias,
reafirmam suas existências em coletivo
no quilombo que formam (Souto, 2020).
Ademais, ao mesmo tempo em que
ocupam os espaços da cidade
recitando suas poesias aos quatro
cantos, afirmam sua existência para o
próprio coletivo e para a cidade, para
que esta reconheça a existência tanto
coletiva do grupo quanto da
singularidade de cada integrante.
É na formação dos quilombos e
no aquilombamento que os negros
tendem a superar as consequências do
seu processo de tentar se constituir
enquanto indivíduo social. Nesse
indivíduo social, desenvolveu um horror
(Nogueira, 1998, p. 36). Vemos essa
falava, caraca, e eles tem tudo isso, né,
de ter um amor preto, de vivências
parecidas. E eu falei, caraca, eu queria
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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
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mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
realizada em 13/04/2024 com Adrielly),
sente, sem medo nenhum, de forma
boa, um amor bom, um amor legal, fala
o que sente e fala que ama uma outra
pessoa preta que ali, presente e
felizona, isso é importante pra caralho e
(Trecho da entrevista realizada em
06/03/2024 com Filipe Soul). Entende-
se que o mais um horror; pelo
contrário, existe um sentido, uma
admiração em olhar seus semelhantes
e tê-los como referência.
movimentações de
resistência na cena do slam no Espírito
Santo, especialmente contra o aparato
de controle realizado por meio da
necropolítica (Mbembe, 2018). Neste
ponto, uma das vias entende que a
polícia procura impedir o amor, o afeto
e o lazer de jovens de periferia na praça
no centro da cidade, implicando uma
morte simbólica alicerçada na
necropolítica (Silva Neto, 2023).
A gente não sofreu tanta
repressão policial ou social e
tal. Acredito que, ainda mais
nós, por carregar essa ideia do
xamego de serem coisas um
pouco mais leves, por dizer,
não que o discurso político e
social não estivesse presente,
embutido ali no texto, mas
parece que tem uma
passabilidade. [...] A galera que
estava antes capinou uma
estrada para que isso
acontecesse, sacou? Da galera
ser presa, de ser parada dentro
do ônibus, de apanhar de
polícia, estar respondendo por
coisas até hoje (Trecho da
entrevista realizada em
14/03/2024 com João Martins)
Assim como as mulheres do
Complexo da Maré no Rio de Janeiro
criam estratégias de resistência
(Ribeiro, 2022), o Slam Xamego
também cria suas formas, afirmando a
todo tempo que falar de amor é um ato
de resistência.
me leva a escrever poesia sobre amor
é enxergar o amor negro e periférico
como um ato d
entrevista realizada em 23/04/2024). O
amor, portanto, alcança seu caráter
político, o outro sentido dessa
categoria. Assim, pensar o coletivo, a
formação de um quilombo, em um
espaço de produção de vida, de
sentido, de afeto, impede que a morte
simbólica alcance esses jovens, uma
vez que a morte simbólica está
justamente no impedimento do lazer,
amor, afetos, da circulação e ocupação
dos espaços da cidade, e também no
do próprio viver (Silva Neto, 2023;
111
ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
Souto, 2020). Portanto, falar sobre
amor dentro do coletivo possibilita a
resistência por meio da dimensão
parada extremamente revolucionária
entrevista realizada em 14/03/2024
com João Martins), que isso
possibilita transformar.
E, para além disso, o ato de falar
também exerce uma função
falar sobre coisas que a gente quer
falar, que confortam as pessoas e até
quando é sobre traição, morte de
alguém ou algo do tipo, não deixa de
ser um desabafo [...] o que você sente,
(trecho da entrevista realizada em
06/03/2024 com Filipe Soul). Assim,
essa fala tem endereço e tem
acolhimento justamente por estar
dentro de uma comunidade que
também se forma por meio dela.
Além do mais, Noguera (2020)
traz uma reflexão, a partir de Somé, ao
apontar que o bem-estar é de
responsabilidade coletiva; e, se
tratando de uma emoção coletiva, é
pela escuta do outro e de si que se
conhecerá o amor. Nesse caminho, a
dinâmica de falar trazida por Fanon
(2020), que entende que falamos para
existir para o outro, se complementa
pela escuta apontada por Noguera
(2020). Instala-se, portanto, uma ética
amorosa (hooks, 2020) que implica na
disposição de confrontar os impasses e
mudar o que for preciso.
Um dos entrevistados vai
apontar os processos de aprendizado
falou coisa errada, toma, testemunho
errado, toma, tipo, foi aquele processo
realizada em 06/03/2024 com Filipe
Soul), que só é possível a partir da fala
e da escuta. A partir desta ideia, o slam
vai se tornando um espaço onde
a única coisa que não pode, e
que vai ser repreendida de
todas as maneiras se
acontecer no slam, vão ser
falas misóginas,
preconceituosas, racistas,
homofóbicas, porque não
espaço para isso. Então a
gente está ali exatamente para
poder ouvir essa verdade e
essa realidade que atravessam
as pessoas que estão lá.
(Trecho da entrevista realizada
em 14/03/2024 com João
Martins)
Eu sou a continuação de um
sonho
Da minha vó, do meu vô
Quem sangrou pra gente
poder sorrir
(BK; JXNV$)
112
ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
Na categoria que versa sobre os
Sonhos, foram atribuídos três sentidos,
sendo eles: 1) Possibilidade de
amar/desejar; 2) Continuidade; 3)
Ocupar espaços. Essa categoria
aborda a possibilidade de um futuro, de
um presente diferente do que se espera
para jovens negros e periféricos. O
próprio Slam Xamego configura-se
como um sonho pelo desejo de viver
algo diferente das violências e do
racismo. O coletivo um passo além
nesse desejo-sonho trazendo o amor e
os afetos para esse campo, apontando
que, além de querer viver sem
violências, sem racismo, esses jovens
querem amar e serem amados.
Para além dos contornos
clássicos, conhecidos pela perspectiva
dos sonhos a partir da lógica freudiana
(Freud, 2001), que entende os sonhos
como a manifestação do inconsciente
constituído de desejos reprimidos, o
movimento político artístico anuncia
novos contornos. Como no verso
vê-se sustentada a ideia da
possibilidade de amar/desejar/sonhar
como combustível para as práticas
desejantes da vida. Além disso, a
-se como essencial para
a produção da arte, pois tem uma
intenção concreta: formar e moldar as
fantasias (Franco, 2017; Rodrigues,
2021).
A partir desse sonho consciente,
compreendemos algumas das falas dos
vamos fazer um slam de amor?
Vamos fazer um slam
(Trecho da entrevista realizada em
14/03/2024 com João Martins). O slam
desejo, da vontade de fazer algo novo,
algo diferente, o que complementa a
Slam que a gente não fala sobre isso
[militância, protesto, denúncia]? pra
gente falar sobre outr
da entrevista realizada em 06/03/2024
com Filipe Soul). O desejo o sonho
é que impulsiona esses jovens a querer
fazer algo novo, algo que traga uma
nova perspectiva sobre suas próprias
vidas (Franco, 2017; Rodrigues, 2021).
Em seu relato, o poeta Do
entrevista realizada em 23/04/2024).
Essa afirmação pode ser aproximada
da reflexão de hooks (2020) quando
afirma que, por vezes, a estratégia de
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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
endurecer o coração parece tornar a
vida menos difícil, pois dá-se atenção
às demandas mais práticas da vida,
deixando de lado a possibilidade de
amar. Os jovens que se reúnem para
jovens, ali, querendo fazer poesia e
da entrevista
realizada em 14/03/2024 com João
Martins).
Em coletivo, vão inspirando
outros jovens a enxergar essa
aquilo e eu falava, caraca, e eles tem
tudo isso, né, de ter um amor preto, de
vivências parecidas, e eu falei, caraca,
entrevista realizada em 13/04/2024
com Adrielly). Como destaca Noguera
(2020), as pessoas amam porque têm
um desejo do que está fora e que, sem
esse desejo, a vida seria insuportável.
Assim, hooks (2010; 2020)
apresenta que, apesar do processo de
escravização e de suas consequências,
que têm gerado feridas aos povos
negros e marginalizados em relação ao
amor, ainda há uma vontade de amar e
ser amado e, por vezes, uma
incapacidade de dar e receber amor. As
entrevistas corroboram que a vontade
de amar tem sido um ato de resistência,
afirmando que esta capacidade existe
apesar da dificuldade de entrar nessa
dinâmica (de amor) por conta do
processo de negação da humanidade
às pessoas negras.
Dois entrevistados relataram
amado em qualquer aspecto, porque eu
acho que é muito difícil para a gente
(trecho da entrevista realizada em
amor romântico [uma vivência], que eu
fui entendendo como é que é
importante falar sobre o amor do bem
também, até porque é difícil falar sobre
o amor do bem se você nunca tem. E
quando você tem, você entende,
realizada em 06/03/2024 com Filipe
Soul). Além disso, o Slam Xamego
tornou-se um espaço em que é possível
cuidar dessas feridas a partir do
processo de aquilombamento (Souto,
2020). O coletivo se torna um quilombo
onde repousar. Afirma o entrevistado:
Xamego é
algo onde as pessoas vão pra ser
saradas [...] Eu enxergo o Slam
Xamego como uma via de descanso,
entrevista realizada em 23/04/2024
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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
com Do Carmo). Além de ser uma via
de descanso para o público, abre a
possibilidade dos sonhos e da vontade
de amar e ser amado. Enquanto houver
desejo e sonho, haverá vida; sem o
desejo/sonho, uma morte simbólica
(Mano Brown, 2017).
No caminho histórico, o slam é
2014), porque quem o começou passou
para outras pessoas para que o
movimento permanecesse, dando
contornos ao sentido de continuidade.
Xamego hoje em dia como potencial de
pessoas que entenderam a
continuidade [...] a gente com a
chave agora, mas a gente tem que
passar essa chave pra tudo isso aqui
realizada em 13/04/2024 com Adrielly).
Sua fala entra em consonância com o
que outro entrevistado aponta:
eu quero que a galera que
vindo realize, mano, porque,
tipo, eles realizando coisas que
eu nunca imaginei na minha
vida, pra mim também é uma
satisfação enorme de ter
certeza de que todas as
atividades, todas as coisas que
a gente fez, serviu pra poder
florescer e a galera colher os
frutos, ligado? (Trecho da
entrevista realizada em
14/03/2024 com João Martins)
Nesse sentido, algo de
transmissão, de continuação, que fez e
faz com que a culturas marginalizadas
sejam preservadas, isso também
acontece no movimento do slam. A
transmissão, por vezes, se pela
oralidade, pela palavra, porque por
mais que tentem destruir ou impedir
sua continuidade, a palavra não é
destruída (Santos, 2015). Por vezes, se
por outros meios como este
trabalho, que também busca registrar a
importância do Slam Xamego na
história, por outras vias.
Em relação a ocupar espaços, é
preciso enfatizar que isto é fundamental
para a existência e acontecimento do
Slam. Segundo o poeta João Martins, o
Slam Xamego realizou
Novamente, dentro do teatro,
uma transmissão ao vivo em tv
aberta de uma competição de
Slam no Espírito Santo. Sei lá,
a gente é convidado, em 2019,
a gente é convidado pela
SEDU [Secretaria de
Educação] para poder ir fazer
uma cerimônia de fechamento,
de encerramento dos jogos na
rede em Guarapari. Então, tipo
assim, a passo do tempo a
gente é convidado para poder
realizar uma programação no
Parque Casa do Governador
(Trecho da entrevista realizada
em 14/03/2024 com João
Martins)
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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
Sendo assim, o Slam Xamego
instaura um movimento de produção de
fissuras na lógica hegemônica, traz
uma ocupação estético-política da
cidade e busca tensionar a lógica da
desigualdade dos acessos e esses
relacionados ao direito à cidade passa
pela possibilidade de acessar e ocupar
criativamente os espaços urba
(Martin e Bueno, 2021, p. 59). Assim
como outros Slams, o Slam Xamego
também fortalece a luta pelo direito à
cidade, bem como promove a
apropriação dos espaços urbanos,
oferecendo ao seu público e aos
moradores da cidade espaços de lazer,
cultura e literatura (Martin e Bueno,
2021).
uma produção de cultura
crítica e criativa inserindo seu público
jovens negros e periféricos em
ambientes de sociabilidade, até mesmo
espaços por eles não acessados
(Martin e Bueno, 2021):
hoje eu consi
(Trecho da entrevista realizada em
13/04/2024 com Adrielly) ou
shopping, mano. Se os moleques
conseguem ocupar a universidade pra
(Trecho da
entrevista realizada em 14/03/2024
com João Martins). Independente de
qual coletivo ocupe os espaços
urbanos, é uma vitória para o
movimento Hip-Hop como um todo.
Sou feito de ruas do Taboão
Alê, Paula, Ju e Ana
Sabe, às vez', minha vista
pesa
Mas eu olho vocês e vou
caminhando
(Rico Dalasam)
Por fim, a categoria de
Autoanálise refere-se a falas das
reflexões e análises de si próprio, tendo
um único sentido, a mudança.
Papo de sentimento mesmo,
me deu muita dor de cabeça,
não vou mentir não, pra você.
Deu muita dor de cabeça, em
questão emocional, entender
que uma pessoa preta precisa
amar, precisa ser amada,
precisa se amar. Xamego me
deu assim: acorda, meu irmão,
muito doido. Tem gente que
te ama pra caralho, você
que não tá vendo (Trecho da
entrevista realizada em
06/03/2024 com Filipe Soul)
Segundo hooks (2020), o amor
tem um papel fundamental na
transformação de cada indivíduo.
Noguera (2020) complementa ao
afirmar que essa transformação
acontece de maneira coletiva, sendo o
amor e a comunidade os meios através
116
ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
dos quais é possível se autoavaliar.
Além disso, Gomes (2017) destaca o
papel educador do movimento negro
para as pessoas negras, demonstrando
que a dinâmica de existência,
resistência e cuidado do movimento
social também ensina aos seus
membros. O Slam Xamego, como um
movimento social-cultural periférico e
predominantemente negro, também
atua nesse processo educacional. O
movimento Hip-Hop tem sua função
educadora com seus participantes.
Podemos ver isso como acontece
também nas batalhas de rima, pois elas
revelam o racismo estrutural e criam
um espaço de ressignificação e
resistência, permitindo que jovens
negros sonhem e discutam questões de
classe e gênero (Santos, 2023).
Portanto, as questões de gênero
e classe aparecem nas narrativas ao
longo das entrevistas nesses trechos:
presentes e falarem sobre as coisas
delas. E aí, uma parada é, se essas
pessoas não estão nesse lugar falando
sobre essas coisas, alguma coisa
em 14/03/2024 com João Martins). Tal
colocação destaca a importância do
slam como um movimento democrático,
periférico.
Em outro trecho de entrevista, é
perceptível como o movimento faz suas
cobranças em relação aos
falou coisa errada, toma, testemunho
errado, toma, tipo, foi aquele processo
realizada em 06/03/2024 com Filipe
Soul). O entendimento de acolhimento
questão de classe, por exemplo, você
está com pessoas que entendem as
suas dificuldades. É tudo parte do
entendimento, né? Entende as
dificuldades que você passa. Você não
precisa ficar provand
entrevista realizada em 13/04/2024
com Adrielly).
O slam também se torna local de
aprendizagem sobre o amor, já que:
nós, jovens, negros,
periféricos, a gente não
acostumado a falar sobre isso
[amor]. A gente não
acostumado a falar sobre isso.
A gente acostumado a falar
sobre dor. A nossa narrativa,
ou a narrativa que construíram
e sempre mostraram pra gente,
é uma narrativa de dor. Então,
talvez, seja um bloqueio por
não ser um processo de dor
(Trecho da entrevista realizada
em 14/03/2024 com João
Martins)
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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
hooks (2010) aponta que
pessoas negras têm, como estratégia
de sobrevivência, a prática de reprimir
os sentimentos e acabam entendendo
esse ato como uma ação positiva. Por
esse motivo, torna-se para
a gente entender que a gente pode ser
(Trecho da entrevista realizada
em 13/04/2024 com Adrielly). Tal
construção, ainda a partir de hooks
(2010), produz inúmeros desafios de
existência e, até mesmo, para a
garantia da sobrevivência. Por isso,
entendemos que, a partir das trocas
que acontecem no Slam Xamego, é
possível um exercício cotidiano sobre o
amor, como vemos nesse trecho:
E aí isso também vai moldando
muito, vai amadurecendo muito
a gente, de como a gente age,
de como a gente pensa sobre
determinadas coisas. Quando
a gente chega no slam e ouve
fulano de tal falar uma parada
diferente ou de uma outra
perspectiva que você talvez
nunca tenha parado pra
pensar, sabe? Você fica tipo,
pô, isso aqui me pega [...]
quantas vezes eu fui num
slam, ouvi alguém falar alguma
coisa e falei, mano, isso aqui
me pegou. E eu chegar em
casa e automaticamente
escrever sobre. Sabe? (Trecho
da entrevista realizada em
14/03/2024 com João Martins)
Por fim, entendemos que o
movimento Slam Xamego promove um
processo educador que forma tanto os
indivíduos quanto sua percepção do
mundo. Neste sentido, os participantes
se autoanalisam e, a partir desse
processo, são capazes de mudar,
transformar-se e encontrar novas
estratégias para agir e de ser no mundo
(Gomes, 2017; Santos, 2023; Tavares,
2011).
Considerações finais
Pôs o sonho no carretel,
descarreguei tudo que eu tinha
Nunca vai tocar o céu quem
tiver medo de dar linha
Cesar MC
Este trabalho investigou parte da
cultura Hip-Hop, com foco no Slam
Xamego, bem como a aposta desse
coletivo em falar sobre como o amor é
revolucionário, especialmente diante
das violências que os jovens negros e
periféricos sofrem constantemente,
seja pela via armada do Estado, seja
por outras tantas formas estabelecidas
na sociedade. Essa aposta emerge do
desejo desses jovens de falar sobre
algo além das violências, racismos e
dores, trazendo leveza e encontrando,
no amor, uma resposta. A análise do
material coletado revela que as poesias
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ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
de amor declamadas no Slam Xamego
são fundamentais, pois proporcionam a
esses jovens a oportunidade de sonhar.
Além de inspirar sonhos, o amor
também assume uma função política a
partir da criação de um corpo político e
permitindo que esses jovens aprendam
uns com os outros por meio de suas
experiências, em consonância com
outros movimentos da cultura Hip-Hop.
Os achados desta pesquisa,
mesmo que limitados à uma pesquisa
de iniciação científica com duração de
um ano, reafirmam a enunciação do
amor como transformação da vida.
Portanto, destaca-se a importância de
dar continuidade e aprofundar esse
estudo com a juventude participante do
Slam Xamego.
O estudo evidencia a força do
coletivo na vida dos jovens, a
possibilidade de planejar, amar e viver,
resistindo às dificuldades e violências
cotidianas, evitando a morte física e
simbólica, ocupando espaços urbanos
e expressando suas necessidades
através da arte e das expressões
poéticas. A criatividade e sagacidade
desses jovens desafia a lógica
hegemônica de que jovens negros e
pobres são perigosos; como podem ser
perigosos se seus gritos clamam por
amor e declaram seus amores e suas
decepções amorosas? A sagacidade
está na dupla satisfação em falar de
amor e subverter a lógica hegemônica.
Nesse processo, o Slam Xamego
conquista espaços importantes, como a
transmissão do campeonato estadual
na TV aberta e a realização do evento
no teatro, fomentando nos jovens um
senso crítico sobre a ocupação dos
espaços na cidade, apontando como a
cultura Hip-Hop, na
contemporaneidade, tem uma função
educativa e atua como fomentadora de
produção de conhecimento pela
juventude.
Em suma, o maior achado desta
pesquisa foram as considerações sobre
os sonhos. Falar de amor permite a
possibilidade de sonhar, de expressar e
construir desejos, entendendo que
estão profundamente conectados à
própria vida e existência. Falar de amor
é falar de maneiras de viver e de se
manter vivo. Os sonhos estão
entrelaçados com o presente e o futuro;
enquanto houver sonhos, haverá luta,
resistência e vida. A transformação
torna-se possível, pois um futuro a
ser vivido, e o Slam Xamego se destaca
como revolucionário por potencializar o
desejo de sonhar através do amor.
119
ALMEIDA, João Otávio; CALAIS, Lara Brum de. Slam Xamego: amor como
resistência no Hip-Hop do Espírito Santo. PragMATIZES - Revista Latino-
Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.97-122,
mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
Esse ato revolucionário está na
sagacidade de abalar a lógica
dominante que busca exterminar a vida
desses jovens. A cultura Hip-Hop e o
Slam Xamego criam um furo na
narrativa, estabelecida pela
hegemonia, de que jovens negros e
periféricos são perigosos, bem como
criam a possibilidade de ser mais, ou
seja, de sonhar em ser além do que
dizem. Falar de amor cria a chama de
desejar e, consequentemente, de
sonhar.
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noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.123-
147, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
O Hip-Hop na linha do tiro: Rap noventista e a denúncia estética da
necropolítica
Enio Passiani1
Róbson Peres da Rocha2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v15i28.65176
Resumo: O presente artigo argumenta que o rap dos anos 1990, enquanto forma estética
constantemente reelaborada, realizou a denúncia da necropolítica no Brasil, abrindo caminho para uma
formação intersubjetiva libertadora para a periferia. Sustentamos este argumento a partir de uma
revisão bibliográfica e dos conteúdos históricos, assim como pela análise de discurso de matriz
foucaultiana das letras produzidas no período, uma vez que, para Foucault, os discursos só podem ser
compreendidos no interior de formações discursivas que também são sociais. A conclusão é a de que,
para além da denúncia, o rap possibilita a produção de uma consciência crítica calcada na noção de
periferia, que anuncia uma relação mais diversa com raça, classe, gênero e território.
Palavras-chave: Hip-Hop; rap nacional; necropolítica; periferia; intersubjetividade.
Hip-Hop in the firing line: 1990s Rap and the aesthetic denunciation of necropolitics
Abstract: This article argues that 1990s rap, as a constantly re-elaborated aesthetic form, denounced
necropolitics in Brazil, paving the way for a liberating intersubjective formation for the periphery. The
article supports this argument through a bibliographic review and historical content, as well as a
Foucauldian discourse analysis of the lyrics produced during this period, since, for Foucault, discourses
can only be understood within discursive formations that are also social. The conclusion is that, beyond
denunciation, rap enables the production of a critical consciousness grounded in the notion of the
periphery, which announces a more diverse relationship with race, class, gender, and territory.
Keywords: Hip-Hop; rap; necropolitics; periphery; intersubjectivity.
1Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Docente do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas (IFCH), do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e do Mestrado Profissional
em Segurança Cidadã, todos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail:
eniopassiani@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9937-4413.
2Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (PPGS-UFRGS). Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS-
UFRGS). Graduado em Comunicação Social - Habilitação em Publicidade e Propaganda pela
Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: robperesrocha@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-3281-2997.
Recebido em 13/11/2024, aceito para publicação em 20/12/2024.
124
PASSIANI, Enio, ROCHA, bson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.123-
147, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
El Hip-Hop en la línea de fuego: El rap de los 1990 y la Denuncia Estética de la Necropolítica
Resumen: Este artículo argumenta que el rap de los años 1990, como una forma estética en constante
reelaboración, realizó una denuncia de la necropolítica en Brasil, abriendo camino a una formación
intersubjetiva liberadora para la periferia. Sostiene este argumento a partir de una revisión bibliográfica
y de los contenidos históricos, así como mediante un análisis de discurso de matriz foucaultiana de las
letras producidas en el período, dado que, para Foucault, los discursos solo pueden ser comprendidos
dentro de formaciones discursivas que también son sociales. La conclusión es que, s allá de la
denuncia, el rap posibilita la producción de una conciencia crítica fundamentada en la noción de
periferia, que anuncia una relación más diversa con la raza, clase, género y territorio.
Palabras clave: Hip-Hop; rap; necropolítica; periferia; intersubjetividad.
O Hip-Hop na linha do tiro: Rap noventista e a denúncia estética da
necropolítica
Introdução
O presente artigo tem por
objetivo demonstrar que o rap,
enquanto forma estética
constantemente reelaborada, abriu
caminho para uma formação
intersubjetiva libertadora para a
periferia nacional. Para tanto,
argumentamos que o rap noventista
realizou a denúncia da necropolítica no
Brasil. Antes mesmo do conceito
propriamente existir nos termos dados
pelo filósofo e cientista político, Achille
Mbembe (2006), cantores,
compositores e produtores de rap
evidenciavam uma política de morte
sustentada pelo racismo no país,
superando, muitas vezes, o olhar
estigmatizante da mídia e da própria
ciência vigente. Com isso, abriu a
possibilidade para que moradores da
periferia contassem sua própria
história.
Durante os anos 1990 grupos
Cruel, De Menos Crime e Câmbio
Negro registraram, de forma visceral, a
Brasil. Rompendo com o discurso
conciliatório dominante, os rappers
causaram uma verdadeira revolução no
modo como a desigualdade passou a
ser vista, ou melhor, ouvida por todos.
Radicalizando os limites do discurso
sobre democracia racial, o tom de
denúncia presente em álbuns, como
Sobrevivendo no inferno (1997), que
representaram uma mudança no
125
PASSIANI, Enio, ROCHA, bson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.123-
147, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
paradigma cultural estabelecido à
época em toda a quebrada.
A identificação positiva com sua
própria condição, de acordo com Grada
Kilomba (2019), é parte do processo de
reparação que leva à descolonização;
desse modo, a intersubjetividade que
leva à visão positiva da periferia é um
passo fundamental para a libertação do
subalternidade. Nas palavras de bell
direito de definir suas próprias
realidades, estabelecer suas próprias
(hooks, 1989, p.42 apud Kilomba, 2019,
p. 28). Tornar-se sujeito, desse modo, é
apud
Kilomba, 2019, p. 29). De tal forma que
se manifestar enquanto sujeito é tomar
parte na história.
Procuramos percorrer o caminho
que leva à identificação da periferia
como sujeito histórico a partir da
abertura proporcionada pelo rap
enquanto contraposto à gestão da
pobreza pelo Estado, mas também
como uma alternativa ao mundo do
crime.
Recuperar esses momentos
históricos sob um olhar crítico
possibilita novas aberturas para se
pensar a periferia, hoje, sob o ponto de
vista do próprio marginalizado. Para
tanto, o artigo se divide em três tópicos,
o prime
recupera o conceito de necropolítica de
Mbembe (2016) evidenciando como ele
coloca a periferia na linha do tiro,
marcando o território das favelas como
território hostil e perigoso. O segundo
t
por meio de uma contextualização
histórica, como o rap produziu uma
alternativa à política de morte do
Estado, produzindo dissenso na visão
hegemônica sobre a periferia. Por fim,
argumentamos que a partir dessa
abertura o rap instaura uma
subjetividade dialógica capaz de
produzir uma forma de consenso que
se contrapõe à lógica da democracia
racial. A conclusão é a de que, para
além da denúncia, o rap possibilita a
produção de uma consciência crítica
que anuncia novas possibilidades para
a periferia.
A metodologia utilizada foi a
revisão bibliográfica de artigos e teses
sobre o tema e análise discurso de
trechos de letras que tiveram
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PASSIANI, Enio, ROCHA, bson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.123-
147, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
expressividade à época. Os trechos
escolhidos procuram demonstrar a
diversidade de temas abordados que
passam por raça, classe, violência, a
crítica ao Estado neoliberal, assim
como a manifestação de uma
consciência que aponta para saídas
coletivas aos problemas encontrados.
Para tanto, optamos por uma
abordagem de matriz foucaultiana.
Segundo Foucault (2018), o discurso é
formado por um grupo de enunciados,
que, por sua vez, é regulado por uma
formação discursiva, que se constitui
de regras discursivas acessadas por
meio dos enunciados. Nas palavras de
são analisados no nível do enunciado,
e o que circunscreve, delimita e regula
um grupo de enunciados é uma
Da biopolítica à necropolítica: o rap
na linha do tiro
Quer seu filho indo pra escola
e não voltando morto? / Então
meta a mão no cofre e ajude
nosso povo / Ou veja sua
mulher agonizando até morrer
/ Porque alguém precisava
comer / Isso aqui é uma guerra
Isso, 1999.
O rapper Eduardo Taddeo, ex-
membro do grupo Facção Central, em
seu livro A guerra não declarada na
visão de um favelado (2012), descreve
o modo como percebe a periferia, mais
especificamente a favela. Em seu relato
é possível notar que, em sua
perspectiva, o território das favelas é
escorregadio aos sensores científicos e
às demarcações oficiais enquanto
localização, mas nem por isso são
invisíveis à repressão estatal e à
política de morte. Os moradores da
Uma vez desprezados pela
cartografia comum, que produz
os mapas tradicionais, as
linhas divisórias de onde
começam e terminam
localizações independentes
(não por escolha) reservadas
aos marginalizados, são
encontradas na geografia
delimitada pela miséria. Cada
bolsão de pobreza é uma pátria
composta por pessoas
afastadas à força da dignidade
humana, assistidas
exclusivamente pelos órgãos
de repressão. A demarcação
sociológica é o ponto cardeal
que rumo à agulha da
bússola dos repressores
garantidores da padronização
comportamental geral e letal.
Com ela, mesmo os citados
lugares sendo países
clandestinos, sem Cep,
menções em páginas de guias
de ruas e nomes de moradores
inclusos em listas telefônicas,
os cães diabólicos não se
deparam com a menor
dificuldade em encontrar as
suas latitudes e longitudes.
Com ela os cães diabólicos não
127
PASSIANI, Enio, ROCHA, bson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.123-
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
se deparam com a menor
dificuldade em encontrar as
suas latitudes e longitudes,
para aplicar as famosas e
desprezíveis: atuações
ostensivas, preventivas,
tirânicas e assassinas que nos
mantêm na linha. Na linha do
tiro! (Taddeo, 2012, p.312).
Esse trecho do livro denuncia o
modo como a modernidade e seus
desdobramentos no capitalismo, por
meio do ordenamento e da
ara os moradores
causa seu apagamento e sua
esterilização3geográfica, demarcada
passível de ser encontrada pelos
Em última instância, os marcadores
externos d
delimitam a fronteira sobre quem deve
viver e quem deve morrer a partir da
produção de estereótipos e estigmas.
3Seguindo Kilomba (2019, p. 168), o termo
'contágio racial' descreve a ansiedade e o medo
que pessoas brancas sentem ao se
aproximarem de espaços historicamente
associados a pessoas negras. Essa divisão
territorial, imposta por brancos, cria uma
A descrição da periferia feita por
Taddeo (2012) constitui uma
interpretação do esquema que
fundamenta as constatações feitas por
Jaime Amparo Alves (2011), as quais
indicam que têm se produzido
cor, a colocar jovens negros periféricos
como as principais vítimas de
assassinatos no país. Alves sugere que
bém
idade, classe e gênero) são categorias
importantes para o modo como os
contexto letal. As altas taxas de
letalidade do jovem negro no Brasil são
demonstrativas do modo como a
categoria que indica que o Estado é
incapaz de domesticar o direito de
matar, tem sido fundamental para o
entendimento da gestão da vida das
populações periféricas no Brasil.
Necropolítica e necropoder,
conceitos de Achille Mbembe (2016),
ampliam o conceito de biopolítica de
Michel Foucault, que, segundo
fronteira simbólica que separa os considerados
'superiores' dos 'inferiores', reforçando relações
de poder raciais.
128
PASSIANI, Enio, ROCHA, bson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.123-
147, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Mbembe, não explica completamente o
controle das vidas contemporâneas
pela morte. Para Foucault (2005), o
poder sobre a vida se organiza em dois
pólos: o primeiro, no século XVII,
focava na disciplinarização dos corpos,
tornando-os dóceis e controláveis; o
segundo, no culo XVIII, tratava do
corpo como espécie, regulando
aspectos como natalidade, mortalidade
e saúde, configurando a biopolítica.
Essa gestão sobre os corpos,
meio de regulações e correções
4
não se trata de pôr a morte em ação no
campo da soberania, mas de distribuir
os vivos em um domínio de valor e
soberania, nesse sentido, diz respeito
ao poder de suspensão da morte, de
fazer viver e deixar morrer.
Foucault identificou o racismo
como uma tecnologia de poder
essencial ao biopoder, em que o
Estado se torna mais disciplinador e
regulamentador. O racismo exerce
duas funções: fragmenta o contínuo
4
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,
medidas administrativas, enunciados
científicos, proposições filosóficas, morais,
biológico, criando hierarquias entre
superiores e inferiores, determinando
quem deve viver ou morrer; e permite
uma relação positiva com a morte do
outro, visto como "degenerado" e cuja
eliminação fortalece o grupo dominante
(Almeida, 2018). Assim, o racismo
regula a distribuição da morte,
possibilitando a existência de um
Estado assassino (Mbembe, 2016).
No entanto, se, para Foucault, a
experiência exemplar da relação entre
racismo e burocracia estatal foi o
premissas materia
(2016, p. 129) se encontravam em
períodos anteriores, como no
colonialismo imperialista. Desse modo,
as técnicas de morte utilizadas no
regime nazista são a culminância de
um longo processo de
encarnada na própria razão moderna,
se comprovando pela produção de
equipamentos tecnológicos cada vez
mais eficazes para o assassínio das
populações:
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito o
(Foucault, 2000, p.244 apud Gomes, 2017, p.
49).
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PASSIANI, Enio, ROCHA, bson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.123-
147, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
O mundo hobbesiano do
Holocausto não veio à tona
saindo de sua sepultura rasa
demais, ressuscitado pelo
tumulto das emoções
irracionais. Apareceu (de uma
forma formidável que Hobbes
certamente desautorizaria)
num veículo de produção
industrial, empunhando armas
que a ciência mais
avançada poderia fornecer e
seguindo um itinerário traçado
por uma organização
cientificamente administrada. A
civilização moderna não foi a
condição suficiente do
Holocausto; foi, no entanto,
com toda a certeza, sua
condição necessária (Bauman,
1998, p. 32).
A soberania é constituída e
demanda morte para sua manutenção
(Mbembe, 2016, p. 127). Sendo assim,
O Estado não exerce o direito de
matar como trabalha para produzir tais
exceções, emergências e inimigos
ficcionais (Mbembe, 2016, p. 128).
A relação entre política e terror
não é recente: as tecnologias de poder
proibição de casamentos mistos, a
esterilização forçada e até mesmo o
extermínio dos povos vencidos foram
inicialmente testados no mundo
Mbembe, o que persiste da filosofia
moderna é a colônia como a
representação de um lugar em que a
soberania consiste em um exercício de
al
colônias são os locais em que as
garantias e a ordem legal são
suspensas, a zona em que a violência
estatal pode ser exercida
(Mbembe, 2016, p. 133).
Na colônia, a ausência de
qualquer normatividade jurídica abre
espaço para que o terror se entrelace
com uma série de ficções, produção de
de real, os territórios se caracterizam
como hostis, em que a diferença entre
criminoso e inimigo não faz mais
concebidas como a expressão de uma
hostilidade absoluta que coloca o
conquistador contra um inimigo
Sendo assim, todo território colonial é
interpretado como um território
perigoso:
Alguns políticos, ao invés de
130
PASSIANI, Enio, ROCHA, bson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.123-
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
articulando medidas para
resgatar a nossa gente das
masmorras modernas,
desperdiçam o dinheiro do
contribuinte, cogitando ideias
para projetos de lei
estapafúrdios, como o de
sinalizar os arredores das sub-
pátrias, com placas contendo
os dizeres: ÁREA DE RISCO
(Taddeo, 2012, p. 324, grifo do
autor).
A ocupação colonial não pode
mais ser vista como um evento restrito,
mas como uma nova forma de
dominação política em que poderes
disciplinares, biopolíticos e
necropolíticos atuam juntos nas
ocupações tardo-modernas (Mbembe,
2016, p. 137). Viver sob os diversos
regimes de ocupação é viver, portanto,
sob uma condição permanente de
(...) estruturas fortificadas,
postos militares e bloqueios de
estradas em todo lugar;
construções que trazem à tona
memórias dolorosas de
humilhação, interrogatórios e
espancamentos; toques de
recolher que aprisionam
centenas de milhares de
pessoas em suas casas
apertadas todas as noites
desde o anoitecer ao
amanhecer; soldados
patrulhando as ruas escuras,
assustados pelas próprias
sombras; crianças cegadas por
balas de borracha; pais
humilhados e espancados na
frente de suas famílias;
soldados urinando nas cercas,
atirando nos tanques de água
dos telhados por diversão,
repetindo slogans ofensivos,
batendo nas portas frágeis de
lata para assustar as crianças,
confiscando papéis ou
despejando lixo no meio de um
bairro residencial; guardas de
fronteira chutando uma banca
de legumes ou fechando
fronteiras sem motivo algum;
ossos quebrados; tiroteios e
fatalidades um certo tipo de
loucura (Mbembe, 2016, p.
146).
Apesar do terror e da reclusão,
outras formas de compreensão do
tempo, do espaço e do trabalho
regime colonial, sendo tratado como se
não existisse, o escravizado foi capaz
instrumento, linguagem ou gesto uma
representação, e ainda lapidá-
(Mbembe, 2016, p. 132). Onde
poder, resistência (Foucault, 2005,
p. 91):
Rompendo com sua condição
de expatriado e com o puro
mundo das coisas, do qual ele
ou ela nada mais é do que um
fragmento, o escravo é capaz
de demonstrar as capacidades
polimorfas das relações
humanas por meio da música e
do próprio corpo, que
supostamente era possuído
por outro (Mbembe, 2016, p.
132).
131
PASSIANI, Enio, ROCHA, bson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.123-
147, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
O rap, nesse sentido, é o próprio
que rompe com sua condição.
dinheiro tira um homem da miséria /
Mas não pode arrancar de dentro dele
Para além de
uma condição econômica, aquilo que é
representar um estilo de vida
vivenciado e compartilhado por
indivíduos que são marginalizados. Ser
favelado para quem vive nesses
espaços não necessariamente é
idêntico a ser miserável. A miséria,
como descrita por Eduardo Taddeo, é o
modo como a estrutura repressiva
(colonizadora, patriarcal, branca,
hétera) identifica (racializa, generifica,
coloniza etc.) os moradores dessa
delimitação geográfica, arrastando-os
para uma política de morte.
como política
Embora a história mais
reproduzida sobre o início do
movimento Hip-Hop no Brasil esteja
ligada à Estação de MetSão Bento,
5Em itálico, pois diz respeito ao funk americano
que tem um papel influente tanto no rap quanto
no funk carioca (funk nacional), que mais tarde
em São Paulo, de acordo com Roberto
Camargos (2015) o movimento
apareceu de maneira simultânea em
várias localidades do país, não de
maneira idêntica, mas similar. No
princípio de tal processo era comum
que as pessoas de classe média e alta
viajassem para fora do país e
trouxessem os discos e vídeos de Hip-
Hop disseminando-os em diferentes
contextos (Camargos, 2015, p. 40).
A chegada do Hip Hop à periferia
se deu de forma um pouco diferente a
partir de movimentos coletivos, como
os bailes promovidos por equipes de
som, nos quais os jovens procuravam
black
frequentemente tocavam nestes bailes
eram o samba, o soul, o funk5e, mais
tarde, o rap. Por terem uma acentuada
marcação rítmica, esses ritmos levaram
o público a criar uma designação
comum a todos: o balanço (Camargos,
2015; Guedes, 2007).
Em relação aos quatro
elementos do Hip Hop, foi o break quem
tomou a dianteira abrindo espaço nos
programas de TV em que aconteciam
veio a ser hegemônico dentro dos bailes
(Guedes, 2007).
132
PASSIANI, Enio, ROCHA, bson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.123-
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
competições de dança entre diferentes
m a
formar as crews (Macedo, 2016, p.
228). Foi apenas em 1985 que o ponto
de encontro em São Paulo passou a ser
a Estação de Metrô São Bento, lugar
simbólico, pois as estações de trem e
metrô costumavam ser o cenário de
muitos filmes americanos:
O boca a boca trazia mais e
mais gente, reunindo na São
Bento jovens de dezenas de
formavam, como Back Spin,
Street Warriors, Nação Zulu e
Crazy Crew, cada uma com
suas cores e uniformes,
sempre no street wear. O termo
jovens, não implicava na [sic]
realização de baderna, crimes
ou provocações era uma
maneira provocadora de se
apropriar de um vocabulário
que designa uma associação
de pessoas (Teperman, 2015,
p.33).
Segundo Guilherme Botelho
(2018), a Estação São Bento
inicialmente funcionou como um
espaço de troca e lazer para jovens,
onde eram compartilhados artefatos
culturais como fitas VHS, recortes de
jornais e revistas. O cinema teve um
papel crucial na disseminação da
cultura Hip Hop, com filmes como Wild
Style (1983) circulando em versões
piratas até os anos 2000, aproximando
o público do lifestyle do movimento.
Durante esse período, as vias públicas
tornaram-se palco central para a cultura
Hip Hop, caracterizada como uma
"cultura de rua" por Márcio Macedo
(2016).
As primeiras coletâneas de rap
foram gravadas a partir de 1987. O
grupo de baile Kaskatas lançou a
primeira, intitulada Ousadia do rap, em
1987; em 1988 a gravadora Eldorado
lançou a coletânea Hip Hop Cultura de
Rua; e, em 1989, Consciência Black
saia pela Zimbabwe, o que veio a
aproximar o rap da indústria fonográfica
de maneira incipiente. A coletânea Hip
Hop Cultura de Rua trazia em seu
repertório os aentão desconhecidos
Thaíde e DJ Hum, que passaram a
fazer um sucesso considerável com a
canção Corpo fechado, hit que trouxe
projeção nacional para o rap. Ainda em
1988, o primeiro disco seria gravado
por um grupo de rap, Hip Rap Hop, do
grupo Região Abissal (Macedo, 2016,
p. 31).
No final dos anos 1980, as
músicas gravadas na coletânea
Consciência Black: de Mano Brown e
Ice Blue, Pânico na Zona Sul; e, de Edi
Rock e KL Jay, Tempos Difíceis, viriam
a estabelecer o tom estético do próximo
133
PASSIANI, Enio, ROCHA, bson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
período, caracterizado pela temática
racial (Macedo, 2016, p.31). Nos anos
seguintes os rappers viriam a formar o
responsável pela venda de mais de 1
milhão de cópias, de forma
independente, somente pelo disco
Sobrevivendo no inferno, de 1997,
lançado pelo selo Cosa Nostra,
pertencente aos próprios integrantes.
De acordo com Macedo (2016,
p. 32), a primeira metade dos anos
1990 foi atravessada por uma forte
consciência das lutas antirracistas,
muito influenciadas, de acordo com o
autor, pelas lutas por direitos civis nos
EUA e pela influência da segunda
geração do rap naquele país, tendo
como destaque o grupo Public Enemy
(PE), o que reafirma o caráter global
que o rap já assumia naquele período e
a conexão entre as opressões vividas
por jovens no mundo todo:
O impacto do PE sobre o
Racionais MCs é visível no seu
primeiro álbum, Holocausto
Urbano. Lançado em 1990, o
disco capitalizava a boa
presentes na coletânea
Consciência Black Volume 1
lançada dois anos antes. O
álbum, composto de seis
faixas, se aproxima de uma
espécie de aula sobre racismo,
desigualdade e violência
policial, contando ainda com
uma faixa de aspecto machista
33).
A década de 1990 foi marcada
por turbulências econômicas, políticas
e sociais no Brasil. Nos primeiros anos,
a violência, incluindo chacinas, expôs o
genocídio da população negra
(Oliveira, 2018). Organizações sociais,
partidos de esquerda e sindicatos
enfraqueceram com o avanço
neoliberal, que deteriorou o poder de
compra, aumentou o desemprego e a
informalidade, dificultando a
organização política dos trabalhadores
e ampliando a desigualdade (D'Andrea,
2013).
O enfraquecimento das
organizações sociais, acompanhado de
forte aparato propagandístico
ideológico neoliberal, criou espaço para
o fortalecimento de uma ética da
prosperidade no período pós-ditadura.
O incentivo ao consumo exacerbado,
amparado em uma lógica individualista,
colocava abaixo qualquer tentativa de
udo
aquilo que denotasse ser comum ou
público era criticado em nome das
vantagens do privado
2013, p. 54, grifo do autor).
134
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noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
A partir desse discurso, o
desmonte do Estado, a expropriação e
a marginalização das populações
periféricas passaram a ser o plano
principal, trazendo à luz um novo
sistema de exploração local ligado à
dinâmica econômica mundial. A
transformação dos serviços públicos
em privados, a responsabilização dos
indivíduos, somados a um histórico
escravagista e autoritário formaram
Em 1992, o Massacre do
Carandiru, em que 111 detentos,
majoritariamente réus primários, foram
mortos pela polícia, impactou o
imaginário social e a história do sistema
penitenciário brasileiro. Em 23 de julho
de 1993, a Chacina da Candelária
chocou o país com o assassinato de
oito crianças em situação de rua por ex-
policiais no Rio de Janeiro. Pouco
depois, em 29 de agosto de 1993, outro
massacre ocorreu em Vigário Geral,
onde um grupo de extermínio formado
por policiais matou 21 moradores sem
qualquer evidência de ligação com atos
ilícitos, em vingança pela morte de
quatro policiais no dia anterior.
O genocídio negro no Brasil não
se inicia nos anos 1990, períodos
anteriores são permeados por
episódios violentos por parte do Estado
(Nascimento, 1978). Contudo, como
constatado por Acauam Oliveira, na
apresentação do livro Sobrevivendo no
inferno (2018), a partir desse período
uma expansão da política de morte
operada pelo Estado por meio de um
O que a periferia percebeu
antes de todos é que esse
modelo genocida de
organização social, ancorado
numa série de mecanismos
herdados da escravidão e
aperfeiçoados durante a
ditadura, não se voltava
apenas contra aqueles
tendo se convertido em norma
geral, com aprovação quase
irrestrita da opinião pública
(Oliveira, 2018, n. p).
Assim como no Bronx, o rap no
Brasil dos anos 1990 emerge em meio
à fragmentação social, exclusão
institucional e abandono das
populações mais pobres. Diante do
capitalismo exacerbado, o rap oferece
uma nova forma de organização. Para
Walter Garcia (2007), são "versos em
cima dos destroços", em que sons
recorrentes e o ritmo preenchem as
lacunas de um sistema violento que se
pretende civilizado.
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PASSIANI, Enio, ROCHA, bson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Para Giordano Bertelli (2012), a
partir dos anos 1990 a experiência
política da periferia se encontra cindida
entre duas formas de organização: de
um lado, o Estado gerindo populações
omo uma alternativa
econômica atrativa. O rap instaura uma
dissensão tanto em relação às políticas
do Estado quanto ao mundo do crime.
Essa dissenção não isola o rap de suas
relações com ambas as formas de
organização. Longe disso, se torna:
Mescla de conflito político e
agressividade, a
ressignificação da política pelo
crime palavras convertidas
em armas e do crime pela
política armas convertidas em
palavras deixa entrever o fio
da navalha em que se equilibra
o potencial político da dinâmica
social das periferias
contemporâneas (Bertelli,
2012, p. 234).
Contrariando a lógica
consumista do mercado, o rap se
posiciona como uma forma de
expressão autêntica e inclusiva. Como
argumenta Kehl (1999), o rap 'não quer
excluir nenhum garoto ou garota que se
pareça com eles', revelando uma
'intenção de igualdade' e uma
capacidade de dar voz aos
marginalizados. Desse modo, não se
desenvolveu de forma isolada, mas
com o apoio de instituições como o
Geledés Instituto da Mulher Negra,
criado em 1978 para combater o
racismo e o sexismo. A pedagogia do
grupo foi fundamental para os primeiros
projetos de rap. Segundo Botelho
(2018), a aproximação entre o Instituto
e os Hip hoppers ocorreu após a morte
de um jovem por um policial nos anos
1990, quando os jovens buscaram
parcerias para combater a violência
policial:
Um caso emblemático, na
época, uma banda de rock se
apresenta em São Paulo, seu
vocalista abaixa as calças e
mostra as suas partes traseiras
para a plateia que delira e
ainda cospe na bandeira
brasileira. Nada lhes
aconteceu. No entanto, rappers
cantando e denunciando a
violência eram brutalmente
retirados dos palcos e
enquadrado pela polícia em
crime de desacato à
autoridade. Eles então nos
procuram para saber o que o
SOS Racismo do Geledés
poderia fazer para protegê-los
(Geledés - Instituto da Mulher
Negra, 2009, on-line).
O Projeto Rappers,
desenvolvido a partir dessa parceria,
contribuiu significativamente para a
descriminalização do movimento Hip-
Hop em São Paulo, mas não isso,
136
PASSIANI, Enio, ROCHA, bson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
instrumentalizou o discurso das e dos
a partir de oficinas e eventos,
discurso esse que passou a tratar a
questão cultural relacionando-a à
política, impactando diretamente a
estética do rap. De acordo com Botelho
(2018, p. 79-85), foi por meio do
Instituto Geledés que pautas presentes
no Movimento Negro Unificado Contra
a Discriminação Racial (MNUCDR)
chegaram até os rappers:
Em suma, um número
considerável de artistas de Rap
-
função de anunciar os ideais
contidos na perspectiva da
militância. Entre tantos
citados no decorrer do trabalho,
também ouve-
do Possemente Zulu;
Hum. Agora, como isso
apareceu nas letras de Rap na
década de 1990? Os estudos
comprovam que foi através do
debate oriundo das ações do
Instituto da Mulher Negra. As
atuações do Geledés estão
dentro dessa concepção de
Quilombismo (Botelho, 2018, p.
91).
A virada estética e política no rap
dos anos 1990 não ficou restrita ao eixo
Rio-São Paulo. Segundo Tavares
(2010, p. 309), nesse mesmo período o
rap de Brasília passou por uma
6
reestruturação. As letras cômicas
6foram
perdendo espaço para narrativas que
abordavam problemas sociais. O grupo
Câmbio Negro, antes descrito pela
e
pelo Distrito Federal, agora
apresentava, na canção Sub-raça
(1995), o peso crítico característico do
rap que vinha se desenvolvendo no
resto do país:
Agora irmão vou falar a
verdade/ A crueldade que
fazem com a gente/ por
nossa cor ser diferente/ Somos
constantemente assediados
pelo racismo cruel/ Bem pior
que fél, é o amargo de engolir
isso é fato/ O valor da própria
cor não se aprende em
faculdades ou colégios que/ ser
negro/ nunca foi um defeito
será sempre um privilégio/
Privilégio de pertencer a uma
raça/ Que com o próprio
sangue construiu o Brasil/ Sub-
raça é a puta que pariu (Sub-
raça, 1995).
De acordo com Macedo (2016,
p. 31-35), a partir de 1995 o rap viria a
abandonar a estética baseada
centralmente na concepção de
negritude em prol de um
137
PASSIANI, Enio, ROCHA, bson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
posicionamento ampliado de pautas
sociais que colocaria a periferia7no
centro do movimento, o que daria força
ideia de
virada rumo à periferia se daria pela
estética do álbum Sobrevivendo no
inferno, que incorporaria temáticas
ligadas ao cotidiano periférico, entre
elas violência, desigualdade e
criminalidade. Teria iniciado, nesse
período, um processo de
ressignificação da representação da
periferia, que de espaço estigmatizado
ressurgiria como elemento identitário
(Macedo, 2016, p. 36-37). De acordo
Racio
sensibilidade de captar a subjetividade
da periferia de forma mais bem
acabada, nesse período, em seus
trabalhos.
A força do elemento raça no
primeiro quinquênio dos anos 1990 se
dava por um esforço de inclusão do
jovem negro, que até aquele momento
não era reconhecido como ator político,
7-25),
essa virada foi capaz de impactar a visão dos
cientistas sociais e agentes públicos e culturais
sobre a periferia.
8O termo 'periferia', antes associado a
conotações negativas, foi reinterpretado e
pois não se enquadrava na
representação de juventude engajada,
majoritariamente branca, classe média
e cursando ensino médio e superior:
e/ ou mestiços, nordestinos ou filhos de
famílias migrantes, trabalhadores e
(Macedo, 2016, p. 39).
Contudo, a racialização
exacerbada e, por muitas vezes, o
caráter misógino das letras levava a
conflitos internos no movimento.
Jovens ativos dentro do movimento,
que não se identificavam com o perfil de
homem negro, ou seja, jovens
mulheres e homens brancos pobres,
não se contentavam com os espaços
restritos. Desse modo, a noção de
periferia começou a adentrar o Hip-
Hop8feria, portanto,
desloca a discussão ou a origem dos
problemas dos jovens Hip hoppers do
apropriado positivamente por seus próprios
moradores. D'Andrea (2013) argumenta que
essa transformação ocorreu em resposta à
violência e à desigualdade, tornando-se um
símbolo de identidade e resistência.
138
PASSIANI, Enio, ROCHA, bson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
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transformações da cultura")
Fazendo comunidade: desafiando o
mito da democracia racial
Os rappers podem ser
encarados como produtores do espaço
social onde atuam. Compreender o
contexto nos ajuda a acessar a
complexa rede de relações sociais que
produzem e são produzidas por esses
sujeitos periféricos. A preferência dos
rappers por se posicionarem de
determinado modo diante de certos
tópicos como raça, classe, gênero e
todo tipo de desigualdades só pode ser
interpretada diante de seus
desdobramentos históricos sociais
levando em conta sua referenciação e
o contexto, nesse caso, a periferia9
(Bentes, 2011, p.61).
O ponto de vista radicalmente
situado trazido pelo rap talvez seja a
sua contribuição mais significativa para
a cultura popular brasileira naquele
de todo mundo que o projeto político do
Estado brasileiro naquele momento
consistia em transformar o país em um
n-
line). Isto é, o rap é responsável por
9Segundo Macedo (2016), a periferia configura-
se como um espaço onde a classe social, mais
do que a raça ou a origem, unifica jovens
diversos em torno de experiências comuns:
evidenciar posições dentro da estrutura
social que, até então, estavam
mascaradas pelo mito da democracia
racial. Evocando Jacques Rancière,
podemos dizer que o rap apresenta a
Nesse ponto, política e estética se
O PCC controlou os homicídios
em São Paulo, posso ser morto
por falar isso. O sistema é
falho! O sistema depende da
violência pra sobreviver, é
diferente do PCC onde a
violência faz eles perderem
dinheiro. Eles precisam da paz
pra ganhar. O sistema precisa
da guerra pra vender bala,
vender arma, vender munição,
pra empregar mais gente na
polícia, fazer mais cadeia, pra
superfaturar mais. Isso que
gera tudo. O Bezerra da Silva,
antes de morrer, a gente fez um
show junto, ele disse assim:
show, tem que tá lotado pra
-
line).
De acordo com Garcia, o grupo
sociedade brasileira a partir do ponto
violência, desigualdade e falta de
oportunidades. Essa vivência compartilhada
gera um sentimento de pertencimento e
identidade entre os moradores.
139
PASSIANI, Enio, ROCHA, bson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
p.221). Na canção Fim de semana no
Parque (1993), argumenta Garcia, esse
ponto de vista se constrói a partir da
exp
Essa delimitação, denominada como
assim de ser apreendida diante da
multiplicidade de significados que a
atravessam. Não se trata, portanto, de
uma marcação no mapa, como
argumenta Taddeo (2012), e não se
reduz à delimitação racial ou de classe,
como aponta a perspectiva
necropolítica.
Podemos dizer que o rap não
canta a periferia, o rap faz a periferia
nesse jogo de fazer-sentido. É nessa
busca por ressignificação que o rap se
inscreve como uma poderosa
ferramenta de transformação social:
criticavam a monopólio da palavra pela
língua culta, afirmando assim uma
identidade periférica que requeria o
status
(Gatti, 2005, p. 190).
A respeito da figura do bandido,
por exemplo, Oliveira (2019, on-line)
argumenta que o objetivo do rap no
Brasil dos anos 1990 nunca foi a figura
puramente metafórica. A representação
de um bandido poderoso, endinheirado
e cercado de mulheres estaria muito
mais presente no rap norte-americano,
nesse período. Para o rap nacional, a
questão seria uma intervenção real na
existência do bandido, uma
ressignificação do sentido que até
Quando esses artistas falam do
bandido, ou melhor, quando
falam junto com o bandido, é o
criminoso de fato que está
sendo retratado, pois a ideia é
elaborar um horizonte
discursivo onde essa anti-voz,
avesso da nação, possa
efetivamente existir (Oliveira,
2019, on-line).
De acordo com Oliveira, o rap
em que os cidadãos periféricos
puderam se apropriar de sua própria
imagem, construindo para si uma voz
que, no limite, mudaria a forma de
enxergar e vivenciar a pobreza no
modo, contrapõe-se à significação
negativa reproduzida pelo Estado e
pela mídia. Em síntese, o rap oferece a
atuar
de maneira digna com seu
(Garcia, 2013, p. 88, grifo nosso).
140
PASSIANI, Enio, ROCHA, bson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
A experiência da violência e
seus desdobramentos no judiciário e no
sistema penitenciário é ressignificada
por meio de um esforço de
humanização em Diário de um
detento10
Dia de visita, do grupo Realidade Cruel:
Sinto uma grande vontade de
chorar / Ao ver a minha mãe
aqui vindo me visitar / Talvez se
eu tivesse pensado um pouco
mais / Talvez hoje eu não
estaria atrás / De uma cela num
pátio de um presídio / Numa
triste tarde de domingo / É foda
mano você não sabe, é triste /
Mas sobreviver em paz aqui
tem que ser firme (Dia, 2020).
Como é possível observar no
trecho, a música procura expressar de
forma intimista o modo como um
detento se sente em situação de
cárcere, capaz de expressar
sentimentos como tristeza e vergonha,
e se arrepender; a imagem se
distancia, pois, daquela reproduzida
pela mídia tradicional da figura do
bandido monstruoso e incurável.
O orgulho negro, característico
da luta antirracista, é expresso em
Considere-se um verdadeiro preto, do
mulatinho? Qual é que é mano? /
10 Para uma análise de Diário de um detento,
ver: Garcia, 2007.
Branco é branco, preto é preto. Foda-
-se,
1993).
Ou em Voz Ativa dos Racionais
Eu tenho algo a dizer / E
explicar pra você / Mas não
garanto, porém / Que
engraçado eu serei dessa vez /
Para os manos daqui! / Para os
manos de lá! / Se você se
considera um negro / Um negro
será, mano (Voz, 2015).
O rap rompe com uma série de
estereótipos segregacionistas e,
também, com mitos históricos que
ligam negros à ideia de passividade
durante o período escravocrata, ao
preconceito com as religiões de matriz
africana, aos padrões de beleza
embranquecidos e ao preconceito com
a língua vernacular (Botelho; Garcia;
Rosa, 2015, p.2). Como é possível ver
em ambos os trechos, a afirmação da
negritude e criação de posições bem
definidas entre negros e brancos
colabora com a desmistificação
causada pela democracia racial,
afirmando uma posição positiva para
negros em relação aos brancos.
141
PASSIANI, Enio, ROCHA, bson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.123-
147, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
A luta de classes também é tema
central e constante nesse período;
junto a isso, a denúncia das condições
de vidas precarizadas na periferia, a
falta de saneamento básico e saúde, os
subempregos, a inexistência de
espaços de lazer etc. (Garcia, 2011;
Botelho, Garcia, Rosa, 2015, p.3):
Vocês produzem a miséria / E
nos impedem de chegar a nível
social / Enquanto minha gente
se quebra e requebra / Para se
pôr o pão na mesa, sua lixeira
transborda alimentos / Não é
sua fartura que me incomoda /
E sim a sua hipocrisia é que me
sufoca, burguesia idiota
(Burguesia, 2015).
Contrapondo-se ao hedonismo
do mercado e à ética da prosperidade
neoliberal, uma ética da coletividade11
que parte do ponto de vista da periferia
é prescrita em Fórmula Mágica da Paz:
quê? / Não me olha assim, eu sou igual
a você/ Descanse o seu gatilho,
descanse o seu gatilho/ Entre no trem
11 Maria Rita Kehl argumenta a respeito de uma
2018, n.p).
12
(Brown, 2011 apud Garcia, 2013, p. 82). O
revide está na gênese do movimento Hip-Hop,
(Fórmula, 2015). E em Capítulo 4
Versículo 3, em que Brown evoca seus
50 mil manos:
Vinte e sete anos contrariando
a estatística/ Seu comercial de
TV não me engana / Eu não /
preciso de status nem fama /
Seu carro e sua grana já não
me seduz / E nem a sua puta
de olhos azuis / Eu sou apenas
um rapaz latino-americano /
Apoiado por mais de 50 mil
manos / Efeito colateral que o
seu sistema fez / Racionais
Capítulo 4, Versículo 3
(Capítulo, 2017).
À medida que a consciência
sobre a estrutura violenta vai
aumentando, o gesto de revide12 se
dos raps, adensada a cada trabalho,
Garcia (2013, p. 82). A prática do revide
abre a possibilidade para uma
visualização do cotidiano que se
demonstra rumo à concretude das
relações, dando corpo a uma
subjetividade intersubjetiva que
p
portanto, do próprio rap a partir da estética
africanista. O breakdance foi o modo
encontrado para a resolução de conflitos entre
as gangues do Bronx, como explicitado
anteriormente. Na dança, que simula um
confronto, o revide seria a resposta de um
participante a outro, uma espécie de jogo de
ataque e contra-ataque. Essa estrutura se
repete também nas batalhas de rima e .
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PASSIANI, Enio, ROCHA, bson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.123-
147, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
(2000, p. 531), um lugar de coabitação
que permite que falem, argumentem,
comuniquem-se e cheguem a
consensos, em última instância,
coordenem suas ações de modo a
produzir uma identidade própria.
Trata-se de um processo
homem se constitui enquanto
subjetividade, porque abre espaço para
as relações intersubjetivas e para o
reconhecimento recíproco das
Portanto, di
Não só a consciência da violência, mas
o reconhecimento dos manos como
iguais alimenta esse olhar contestatório
sobre o cotidiano, a presença do Outro
que é constitutiva do eu. Desse modo,
como sugerido por Macedo (2016, p.
41), o rap instaura uma democracia de
baixo para cima13 de modo a se
Fazendo comunidade: desafiando o
13
Sabotage, Toni C. Para Toni C., o fato de
Sabotage não ter os dentes revelava a
característica da democracia no Brasil,
vivenciada pela experiência compartilhada da
mito da democracia racial
A leitura do Brasil sob o ponto de
vista do marginalizado, realizada por
grupos de rap nos anos 1990,
escancarou a desigualdade encoberta
pela ideologia dominante. Ao
emancipação individual de Mano
Brown, Edy Rock, Ice Blue e KL Jay,
mas a formação de um sentimento
comum na periferia tendo como
horizonte a vida. O compromisso
comunitário proporcionado não apenas
pelo rap, mas por um conjunto de
manifestações presentes nesse
território, fundamentou saberes,
práticas, valores e representações que
possibilitam estratégias de
sobrevivência cada vez mais
elaboradas.
Com o avanço do neoliberalismo
e o aumento do genocídio negro por
parte da política de morte aplicada pelo
Estado, o rap uniu quebradas,
fortaleceu os laços e deu voz à
periferia. Dar voz, todavia, é dar as
pobreza, uma vez que a ausência de dentes é
um dos marcadores de classe mais presentes
no país (Macedo, 2016, p. 41).
143
PASSIANI, Enio, ROCHA, bson. O Hip-Hop na linha do tiro: Rap
noventista e a denúncia estética da necropolítica. PragMATIZES - Revista
Latino-Americana de Estudos em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.123-
147, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
condições necessárias para que jovens
moradores da periferia possam se
expressar por meio do poder ancestral
das palavras, possibilitando não
apenas que contem, mas que
reinventem sua própria história, o
resultado disso é a abertura para a
diversidade em diversos quesitos.
Desse modo, embora o rap
indique a existência de um sujeito
histórico periférico, isso não implica a
ausência de divergência e diversidade
de pontos de vista nesse contexto. Isso
fica mais claro com a entrada do
movimento no século XXI. Se, por um
lado, um arrefecimento no discurso
de classe por parte dos rappers no
que um novo polo de operação será
projetado. Desse modo, outros debates
vão entrando no radar do movimento. A
inclusão de femininas na abertura
justamente, uma exigência de Eliane
Dias14. Os avanços do movimento
feminista no Brasil, assim como o
aumento no poder de compra centrado
nas mulheres, impulsionado pelas
14
políticas públicas, possibilitaram uma
série de reavaliações, o só na classe
média, mas em frações da própria
periferia. Embora possamos recuperar
de algum modo um sujeito contestatório
calcado nos interesses da periferia é
sempre a favor de uma certa
provisoriedade.
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não vira não é problema meu, a minha questão
é a inclusão social. Eu tenho a obrigação de
colocar as mulheres no palco e dar visibilidade
144
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148
liberdade de expressão: um Raio X do Brasil e a exposição da
Colonialidade.. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.148-164, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
da Colonialidade
Lucas dos Anjos1
José Roberto Rodrigues2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v15i28.65563
Resumo: A década de 1990 no Brasil é marcada por ser um período de constante violência nas regiões
periféricas com ênfase na população negra, além de se destacar como um momento de ampliação à
desigualdade social a partir do avanço de políticas neoliberais que não contemplavam as camadas
o álbum Raio X do Brasil. Esse artigo resulta de uma pesquisa exploratória de monografia com foco no
álbum Raio X do Brasil do gru
, sua
representação a partir das músicas, bem como as relações entre as denúncias presentes nas faixas
analisadas frente às observâncias críticas trazidas pelo pensamento Decolonial. Conclui-se que o
álbum Raio X do Brasil
da colonialidade em atuação como força dominante a partir da manutenção do capitalismo e do racismo
como ferramenta de opressão. Além disso, nota-se que apesar de o grupo anunciar a existência no
direito da liber
-
hegêmônicos.
Palavras-chave: colonialidade; liberdade de expressão.
1Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (PPGedu/UNIRIO). Bolsista FAPERJ Nota 10 pelo PPGedu/UNIRIO.
Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Formação de Professores, Currículo (s), Interculturalidade
e Pedagogias Decoloniais (GFPPD). Email: lucasdosanjos@edu.unirio.br ORCID:
https://orcid.org/0009-0000-7658-424X.
2Doutor em Ciências Humanas - Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio). Docente Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro pelo (CAp-UERJ). Foi um dos fundadores e integrou o Programa de Pós-Graduação
de Ensino em Educação Básica (PPGEB). Vice-Líder do Laboratório de Ensino de História - LEH/CAp-
Uerj. Integrante do Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Educação e Culturas - GECEC/PUC-Rio e do
Grupo de Pesquisa Patrimônio, Memória e Educação PAMEDUC/UFSC. Email:
zrsrodrigues@yahoo.com.br ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1941-1996.
Recebido em 30/11/2024, aceito para publicação em 20/12/2024.
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liberdade de expressão: um Raio X do Brasil e a exposição da
Colonialidade.. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.148-164, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
Abstract: The 1990s in Brazil are marked as a period of constant violence in peripheral regions, with a
focus on the Black population. It is also characterized as a moment of increasing social inequality driven
-income groups. Within this
album Raio X do
Brasil. This article results from an exploratory monograph research focused on the album Raio X do
Brasil
relationship between the context in which the group is embedded, its representation through the songs,
as well as the connections between the critiques present in the analyzed tracks and the critical
perspectives brought by Decolonial thought. The study concludes that the album Raio X do Brasil
effectively portrays the exposed fractures of a country still grappling with the enduring effects of
coloniality, which remains a dominant force through the perpetuation of capitalism and racism as tools
of oppression. Furthermore, it is noted that, although the group asserts the existence of the right to
freedom of expression in the t
consistently persecuted for their counter-hegemonic stances.
Keywords: coloniality; freedom of expression.
ayo X de Brasil y la exposición de la Colonialidad
Resumen: La década de los 1990 en Brasil está marcada por ser un período de constante violencia en
las regiones periféricas, con un énfasis en la población negra. Además, se destaca como un momento
de aumento de la desigualdad social debido al avance de políticas neoliberales que excluían a las capas
lanzamiento del álbum Raio X do Brasil. Este artículo resulta de una investigación exploratoria de
monografía centrada en el álbum Raio X do Brasil
grupo está inserto, su representación a través de las canciones, acomo las conexiones entre las
denuncias presentes en las pistas analizadas y las observaciones críticas aportadas por el pensamiento
decolonial. Se concluye que el álbum Raio X do Brasil logra representar fracturas expuestas de un país
que aún enfrenta los efectos de la colonialidad, que actúa como una fuerza dominante a través del
mantenimiento del capitalismo y el racismo como herramientas de opresión. Además, se observa que,
te perseguido por sus
posturas contra-hegemónicas.
Palabras clave: colonialidad; libertad de expresión.
e a liberdade de expressão: um Raio X do Brasil e a exposição
da Colonialidade
Introdução
A partir da Ditadura Militar no
Brasil, as repressões às favelas foram
intensificadas. diversas denúncias
de vítimas relatando a truculência
policial nos períodos ditatoriais. Uma
das principais formas de abuso policial
era referente a utilização da lei contra a
150
liberdade de expressão: um Raio X do Brasil e a exposição da
Colonialidade.. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.148-164, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
vadiagem, em que permitia que um
policial desse voz de prisão a um
cidadão que não pudesse comprovar
que era um trabalhador, sendo esta
utilizada diversas vezes como pretexto
para agredir pessoas negras. Outro
caso era referente ao ataque à
identidade negra a partir do corte
além da perseguição aos bailes black3.
Daniela Vieira e Jaqueline Lima
Santos (2023) apontam os bailes black
como porta de entrada para o Hip-Hop
espaços, a negritude se sentia entre
iguais e o entretenimento era
vivenciado como uma alternativa ao
2023, p. 31). Sob isso, é notável que os
bailes blacks ofereciam um
enaltecimento a identidade negra e
uma ampliação na compreensão sobre
os efeitos do racismo na sociedade e
que devido a isso ocorreram
perseguições a esse movimento, mas
ao mesmo tempo serviu como
inspiração para a chegada abrupta do
Hip-Hop no Brasil.
3Pedretti (2022) apresenta inúmeros relatos e
documentos registrando prisões por vadiagem,
tortura física, cortes forçados dos cabelos black
power, além de invasões e proibições aos
bailes black.
Anderson da Costa e Silva
Greeco (2007) ressalta que a
expressão Hip-Hop é proveniente dos
Estados Unidos e significa movimentar
os quadris (to hip) e saltar (to hop) e sua
criação é atribuída ao DJ Afrika
Bambaataa, que inventou este termo
em 1968 para caracterizar o encontro
dos dançarinos de break, , e
grafiteiros nas festas de rua produzidas
no bairro do Bronx em Nova Iorque. É
preciso ressaltar que o elemento
corporal no Hip-Hop é representado
pelos dançarinos de break, enquanto o
DJ comanda os aparelhos musicais
montando uma base rítmica e o MC
(Mestre de Cerimônia) complementava
o som através do canto ou da narração
de histórias4e o grafite representava o
elemento visual do Hip-Hop através da
expressão artística utilizando as latas
de spray.
É notável que o elemento do
Hip-Hop responsável pela expressão
musical é o rap, composto pelo DJ e o
MC, em que o primeiro é responsável
por prover o ritmo e o segundo a
poesia, daí a tradução de rap ser
4Atualmente os protagonistas do rap são os
fica que a mensagem
atribuída ganhou maior relevância no Hip-Hop.
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liberdade de expressão: um Raio X do Brasil e a exposição da
Colonialidade.. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
rhythm and poetry
preciso ressaltar a origem jamaicana no
Hip-Hop, que apesar de ter sido
popularizado principalmente através
dos rappers e estadunidenses5,
[...] o rap, na realidade, possui
influências advindas
inicialmente de um canto falado
da África Ocidental, reflexo da
circularidade cultural entre
América e África e serviu como
elemento de fortalecimento da
negritude. (Grecco, 2007, p.
15)
O rap no Brasil é recepcionado
em São Paulo, por grupos de jovens
moradores da periferia que escolheram
o centro da cidade, apesar da distância
de sua moradia, para difundir essa
manifestação cultural. A princípio,
devido à dificuldade em compreender a
língua inglesa, o Hip-Hop se
caracterizava apenas como um gênero
musical dançante, ao qual o rap,
denominado de tagarela, era somente
uma forma de acompanhar a base
musical através de rimas simples6.
Entretanto, ainda na década de 1980, o
rap toma forma como um gênero
musical e uma expressão cultural
negra, crítica e combativa de linguagem
5Ibidem, p. 14.
periférica, afinal, como aponta Grecco
(2007)
[...] o Hip-Hop demonstra certa
consolidação em suas práticas
e verificamos o lançamento de
trabalhos como os de Thaíde e
DJ Hum gerando dentro do rap
o início de sua fase
contestatória, o que faz com
que o rap
o modelo estadunidense de
20)
ressalta que o rap no Brasil se afirma a
partir de uma ruptura com a esquerda
tradicional (crise do ideário socialista
em escala mundial), ao apresentar uma
transformação social provinda da
periferia e não do mundo do trabalho
(como defendia o marxismo) e com o
pensamento neoliberal (que vinha
ganhando força no Brasil), ao
denunciar a miséria social causada por
esta linha de pensamento. Além disso,
uma perda de referencial político
nas periferias a partir de uma
diminuição na presença de agentes
ligados ao catolicismo de esquerda, o
desaparecimento dos núcleos de base
nas favelas, principalmente, após a
derrota de Lula para o Collor na eleição
presidencial de 1989 e a expansão de
6Ibidem, p. 19.
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liberdade de expressão: um Raio X do Brasil e a exposição da
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transformações da cultura ")
medidas neoliberais que
constantemente privatizam os espaços
públicos. A partir dessas
especificidades ocorridas nos anos
1990, permitiu-se que o rap emergisse
como uma das principais formas de
representatividade das periferias.
É nesse contexto que surge o
união entre a dupla Mano Brown (Pedro
Paulo Soares) e Ice Blue (Paulo
Eduardo Salvador) que se intitulavam
como B.B.Boys (Black Bad Boys) com
Edi Rock (Edivaldo Pereira Alves) e Kl
Jay (Kleber Geraldo Lelis Simões)
que se intitulavam como Edi Night e Kl
Night e decidiram se juntar para
realizarem o seu primeiro lançamento
7É importante ressaltar que enquanto Mano
Brown e Ice Blue eram da Zona Sul de São
Paulo, Kl Jay e Edi Rock moravam na Zona
Norte paulistana e que apesar de cada dupla
pertencerem a zonas regionais distantes, se
juntavam a partir dos territórios negros da
região central da cidade, que como destaca
Mano Brown, para os moradores de periferia,
era necessário buscar constantemente as
São Paulo, ao qual se destacava a estação do
metrô São Bento que tornou-se ponto de
encontro para os jovens que se identificavam
com a cultura Hip-Hop (Vieira; Santos; 2023, p.
30-33).
8Vieira e Santos (2023) destacam que o projeto
Consciência Black registra, portanto, o começo
grupo realizar diversos shows; dentre as
obteve maior engajamento do público. Vieira;
Santos, 2023, p. 43).
em conjunto7na coletânea Consciência
Black8, em 1989, ao qual são lançadas
iriam compor também o primeiro álbum
do grupo Holocausto Urbano (1990)9.
destaque ao apresentar uma versão
mais contundente do que a maior parte
dos grupos da época e por
transformarem o rap nacional em um
montagem de suas bases com forte
influência da sica nacional e
apresentar duras críticas aos inúmeros
problemas sociais brasileiros (Grecco,
2007). Segundo Ivan dos Santos
Messias (2008),
9Vieira e Santos (2023)
1980, uma oportunidade de gravação em vinil
era algo muito raro para os rappers. Esse
processo consistia em compor a música, gravar
a demo em fita de rolo, passar para a fita
cassete e, finalmente, gravar o disco. O custo
desse processo era alto, assim cada grupo
gravou apenas uma ou duas músicas para a
. Além disso, ressaltam a
importância de Milton Sales para a
ver o potencial do grupo cantando rap os
convidou para gravar na sua
partir desse projeto da coletânea, foi Sales
quem dividiu o que era político e o que não era
na música rap e começou a divulgar as
produções . A partir disso, resgata as falas de
da pré-história dos Racionais, ainda antes de
Santos, 2023, p. 43).
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Colonialidade.. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
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transformações da cultura ")
[...] as canções de rap,
especialmente dos Racionais
específico: racismo, violência
policial constante, extermínio
etno-físico e orgulho negro. [...]
As composições de Hip-Hop
exumaram o sujeito oculto,
(Messias, 2008, p. 38).
Além disso, eles se destacam
por, ao longo de 30 anos de carreira,
possuírem uma alta quantidade de
projetos lançados como o álbum
Holocausto Urbano (1990), o EP
Escolha seu Caminho (1992), além dos
álbuns Raio X do Brasil (1993),
Sobrevivendo no Inferno (1997), Nada
como um Dia após o Outro Dia (2002)
e o mais recente Cores e Valores
(2014). Ademais, são também um dos
poucos grupos formados na década de
90 a se manterem ativos, com a mesma
formação inicial e relevância através de
seus shows e projetos individuais e
coletivos.
Em tempos recentes, o grupo
destaque nos espaços formais de
educação através do reconhecimento
de sua importância enquanto
pensadores críticos e com isso,
adentraram nesses espaços através da
inserção da letra de suas músicas em
vestibulares como o Enem e como obra
obrigatória no vestibular da
Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), além de que o grupo
receberá pela mesma instituição o título
de Doutor Honoris Causa (2025).
Entretanto, apesar de notadamente
serem reconhecidos pelo seu caráter
contestador acerca da sociedade, é
através do álbum Sobrevivendo no
Inferno (1997) que o grupo se destaca
perante à academia, como o exemplo
da escolha da UNICAMP para o seu
vestibular ser este álbum, ou mesmo a
vasta análise das músicas desse álbum
através de artigos, dissertações e
teses, o que causa o apagamento de
seus outros projetos, como é o caso do
álbum Raio X do Brasil, que demanda a
ampliação e aprofundamento na sua
análise e estudo por parte do(a)s
pesquisadores(as) da cultura Hip-Hop.
Desta forma, percebe-se que o
álbum Raio X do Brasil (1993) marca o
formas, seja a partir de uma ascensão
social através do rap ao conseguir
consolidá-lo enquanto uma profissão e
se manter economicamente através
disso, seja o alcance nacional com
suas músicas que se tornaram
clássicos do rap. É necessário então
refletir acerca dos impactos que esse
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Colonialidade.. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
álbum tem para a sociedade, de forma
a pensar sobre alguns pontos que o
grupo destaca em suas músicas.
O objetivo geral deste trabalho é
analisar as letras do grupo Racionais
M
hegemônico enquanto difusor de
perspectivas críticas em meio a um
contexto social e histórico de sua
época. Os objetivos específicos se
pautam na observação de que, esse
álbum, seria uma forma de demarcar a
efetivação do direito da liberdade de
expressão, como citado na faixa
identificar as críticas realizadas pelo
diálogo que essas perspectivas têm
com o pensamento decolonial.
Devido a sua expressão no
movimento Hip-Hop a partir dos seus
raps, este trabalho se propõe a fazer
um estudo exploratório a partir da
análise das letras do álbum Raio X do
Brasil de forma a buscar entender as
perspectivas expostas nesse álbum,
bem como identificar as relações que o
projeto tem com o contexto ao qual foi
lançado. Supõe-se que o álbum Raio X
10
PRO-AIM, SIM Sistema de Informação sobre
do Brasil está inserido em um contexto
com perpetuações de ideais coloniais
reexposto através da ditadura e que
devido a isso é possível notar
denúncias nas músicas, de forma a
perceber os efeitos da colonialidade em
corpos negros e periféricos.
Raio X do Brasil e a década de 1990
Os anos 1990 são marcados por
um período de extrema violência às
periferias e pessoas negras, além de se
destacar pela desigualdade social entre
as classes sociais brasileiras, com um
avanço de políticas neoliberais que não
contemplavam as camadas populares
no país. A violência era tanta que
da Zona Sul de São Paulo os índices de
assassinatos eram próximos aos de
países em guerra civil. Nos anos 1990,
o bairro do Jardim Ângela era
considerado o mais violento do mundo
e junto com o Capão Redondo e o
Jardim São Luís foi denominado como
10. a respeito
da questão econômica nos anos 1990,
Brettas (2007) analisa os dados
Mortalidade, Município de São Paulo a partir do
trabalho de Telles (2012).
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
apresentados por Mattoso (2001) e
identifica que
Um balanço da década de 1990
nos permite analisar os efeitos
da adoção do receituário
neoliberal que começa no
início da década e ganha força
e expressão em 1994, com a
implementação do Plano Real
para o Brasil. O desempenho
econômico desta década foi
menor se comparada ao de
qualquer outra década do
século XX, inclusive a década
de 1980, conhecida como a
(Brettas,
2007, p. 5)
Além disso, o autor descreve
que apesar de haver o controle da alta
inflação na década de 90, é notável que
[...] a instabilidade econômica
articulada à queda da
atividade, produziram efeitos
extremamente danosos para
os veis de emprego e renda.
Qualquer que seja a
metodologia adotada, o
desemprego aumentou
substancialmente. (Brettas,
2007, p. 5).
Já Aguiar (2011) aponta que
[...]durante a década de
noventa, temos um processo
de flexibilização das leis
trabalhistas, e a CLT
(Consolidação das Leis do
Trabalho) passa a ser vista
pelos neoliberais como
empecilho para as relações
trabalhistas e principalmente
como obstáculo na geração de
empregos. (Aguiar, 2011, p. 8).
Sob essa perspectiva, Brettas
(2007) complementa que além da falta
de empregos, ocorre na década de 90
a perda na qualidade de empregos, o
que gera
[...] O crescimento do emprego
temporário, parcial, em
domicílio, informal, e outras
tantas formas de expressão da
precariedade das condições de
trabalho, ganhou força. Este
fato contribuiu para fragilizar e
desarticular a organização dos
trabalhadores, além de criar um
ambiente favorável para a
intensificação destas
mudanças. Um movimento de
mútua influência que vem
deteriorando as condições de
vida de um número cada vez
maior de pessoas. (Brettas,
2007, p. 5).
Campos (2015) apresenta dados
que demonstram que a pobreza
permaneceu como um fator marcante
na década de 1990 no Brasil, afinal
[...] entre 1992 e 1993, o
número de indivíduos
renda domiciliar per capita
inferior à linha de pobreza)
aumentou de 58,9 para 60,9
milhões. Entre 1993 e 1995,
diminuiu de 60,9 para 51,8
milhões. Entre 1995 e 2003,
por conta da variação na
dimensão da população,
aumentou de 51,8 para 61,8
milhões sendo assim, o maior
2015, p. 30).
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
É possível aferir que a
desigualdade econômica foi um ponto
marcante na década de 1990 e
acompanha a trajetória do grupo
entrevista realizada pelo canal Red Bull
Station (2017) que é apenas a partir do
sucesso com o álbum Raio X do Brasil
(1993) que eles conseguem realmente
transformar o rap como sua profissão11,
o que tornou o rap como uma
alternativa para a ascensão social em
um período marcado pela
desigualdade.
A partir do álbum Raio X do
amplia sua difusão a âmbito nacional12,
conquistando hits com faixas como
11 Vieira e Santos (2023) destacam que essa
ou que tivessem suas músicas tocando nas
ois
do rap .
12 Vieira e Santos (2023) ressaltam que através
do senador Eduardo Suplicy (PT-SP) a faixa
Raio X do Brasil
chegou ao Senado Federal durante uma
sessão da Comissão de Constituição e Justiça
a respeito da redução da maioridade penal e
que esta foi utilizada como argumentação para
que o político protestasse contra a proposta de
diminuir a idade mínima para a prisão.
alteração de postura do grupo que,
segundo Acauam Oliveira (2018)13.
a multiplicidade de vozes e
olhares oferece uma
percepção mais densa da
realidade periférica ao conferir
à dispersão das experiências
particulares fragmentárias um
sentido geral de coletividade
(Oliveira, 2018, p. 29).
O Raio X do Brasil e as fraturas
expostas
A premissa deste trabalho é de
que ao analisar as letras do álbum Raio
X do Brasil encontrar-se-
colonialidade e os seus efeitos que
continuam em atuação na sociedade.
atenta-se ao mantenimento do direito
de liberdade de expressão, muitas
vezes negado nas periferias e aos
sujeitos periféricos, sendo suas
13
partir de Raio X do Brasil o Grupo vai
apresentar uma mudança radical de postura. O
ponto de vista particular dos rappers deixa de
ser o elemento principal em canções como
para se tornar apenas uma das muitas
perspectivas possíveis, criando um mosaico de
vozes e olhares contraditórios entre si. A obra
se torna essencialmente aberta, apresentando
perspectivas que são confrontadas da forma
mais complexa possível e assumindo um
modelo épico de representação narrativa,
conforme definido por Walter Garcia (Oliveira,
2018, p. 29).
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
músicas uma forma de exercer esse
direito ao expor a realidade das
periferias e a violência ao qual estão
submetidos. A partir disso, o álbum é
iniciado pelos versos:
1993! Fudidamente voltando!
Racionais! Usando e abusando
da nossa liberdade de
expressão. Um dos poucos
direitos que o jovem negro
ainda tem nesse país. Vo
está entrando no mundo da
informação,
autoconhecimento, denuncia e
diversão. Este é o Raio-X do
Brasil, seja bem-vindo
Primeiramente, é preciso
ampliar a ideia de Liberdade de
Expressão, afinal apesar do grupo ter
liberdade para lançar suas músicas
contestando a desigualdade social e o
racismo no Brasil diferente da época
da Ditadura, em que a censura impedia
qualquer manifestação crítica a esse
regime , o grupo passou por episódios
de censura na realização de seus
shows, como aponta Vieira e Santos
(2023)
Ao narrar a violência do braço
armado do Estado (as polícias)
em tom de revolta, explicitando
a reação dos rappers com o
racismo institucional
enfrentado cotidianamente, o
grupo chama a atenção das
autoridades, em especial da
Polícia Militar, e passa a ser
alvo de perseguições (Vieira;
Santos, 2023, p. 56-57).
Devido a isso, as autoras
destacam o que ocorreu no ano de
presos durante sua apresentação no
Rap do Vale
Paulo, no Vale do Anhangabaú,
acusados de estimularem a violência.
Dessa forma, é necessário repensar se
dos poucos direitos que o jovem negro
1993), pois, quando expressadas suas
críticas, tiveram sua liberdade cerceada
e nesse período o grupo ficou marcado
pela mídia e pelas forças de segurança
por denunciar as formas de violência,
exclusão e abandono em que estavam
submetidas as pessoas negras, pobres
56).
As autoras apontam que o grupo
era noticiado pela mídia hegemônica de
que falam de crime, de drogas, de
violência e que
(Vieira; Santos, 2023, p. 57) , ou seja, a
forma que eram lidos pela mídia era a
da ignorância, apesar de estarem
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
utilizando sua música, como uma forma
denuncia e
1993), o que representa também outro
fator que se distancia de uma liberdade
de expressão plena, afinal, suas ideias
estavam sendo deturpadas de forma a
gerar a sua deslegitimidade enquanto
pensadores negros e periféricos.
Dentre os principais
apontamentos presentes no álbum
Raio X do Brasil, Vieira e Santos (2023)
trajetórias e experiências de vida na
periferia e os temas são segregação
espacial e urbana, violência,
encarceramento, autovalorização,
capitalismo, poder, ganância, crime,
56). Ao adentrarmos na análise da
notamos as críticas ao capitalismo em
que o grupo expõe a discrepância entre
um fim de semana comum nas
periferias da favela em relação a de
famílias com melhores condições
14 Boaventura de Sousa Santos (2009)
regime social de relações de poder
extremamente desiguais que concedem à parte
mais forte o poder de veto sobre a vida e o
financeiras. Isso fica explícito no verso
abaixo:
A número 1 em baixa renda da
cidade. Comunidade zona sul
é, dignidade. Tem um corpo no
escadão, a tiazinha desce o
morro. Polícia a morte, polícia
socorro. Aqui não vejo nenhum
clube poliesportivo. Pra
molecada frequentar, nenhum
incentivo. O investimento no
lazer é muito escasso. O centro
comunitário é um fracasso.
Mas aí, se quiser se destruir
está no lugar certo. Tem bebida
e cocaína sempre por perto
Essa situação descrita pelo
grupo é o que Boaventura de Sousa
Santos (2009) entende como efeitos da
colonialidade a partir da ascensão do
fascismo social14 e ao relacionar com
este caso, se apresenta sob a forma de
apartheid social, que trata da
através de uma cartografia urbana
dividida em zonas selvagens e zonas
partir disso,
[...] a divisão entre zonas
selvagens e zonas civilizadas
está a transformar-se num
critério geral de sociabilidade,
um novo espaço-tempo
hegemônico que atravessa
2009, p. 37).
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
todas as relações sociais,
econômicas, políticas e
culturais e que, por isso, é
comum à acção estatal e à
acção não-
2009, p. 37).
Logo, é possível perceber que
os efeitos da colonialidade dialogam
entre si pela manutenção desse
sistema de dominação, ao passo que a
segregação social se faz presente a
partir da dominação pelo capitalismo e
escolhe se fazer mais presente a partir
das perspectivas raciais e coloniais
cujo alvo se encontra o povo negro e
periférico.
escancara os efeitos do capitalismo na
sociedade e expõe uma de suas
atuações, que é a partir da ilusão em
virtude de superar as questões éticas e
morais do ser humano em prol de tentar
alcançar bens pessoais para que assim
seja possível alcançar a felicidade.
Rachel Sciré (2023) ressalta que nessa
MC se apresenta como uma
de um mano respeitado em traficante e
homicida, e o foco narrativo permanece
319). Essa faixa conta a história de um
homem comum, que possuía amigos,
tentava ajudar as pessoas ao seu
redor, tinha poucos bens como um
carro antigo e tinha uma mulher
apaixonada por ele, ou seja, uma vida
tranquila e feliz, porém devido a sua
ambição entrou para a venda de drogas
e caiu na ilusão da ostentação, ao
passo que sua única preocupação se
tornou fazer mais dinheiro
independente do que fosse necessário
ser feito e a consequência disso é que
ele acaba sendo assassinado, como
aponta os versos:
Ele é feliz e tem o que sempre
quis. Uma vida humilde, porém
sossegada. Um bom filho, um
bom irmão. Um cidadão
comum, com um pouco de
ambição [...] A lei da selva
consumir é necessário.
Compre mais, compre mais,
supere o seu adversário! O seu
status depende da tragédia de
alguém. É isso, capitalismo
selvagem! Ele quer ter mais
dinheiro, o quanto puder [...]
Você viu aquele mano na porta
do bar? Ele mudou demais de
uns tempos para cá... Cercado
de uma de tipo estranho,
que promete pra ele o mundo
dos sonhos. Ele está diferente,
não é mais como antes. Agora
anda armado a todo instante.
Não precisa mais dos aliados
[...] A lei da selva é traiçoeira,
surpresa! Hoje você é o
predador, amanhã é a presa.
É possível notar em evidência os
efeitos do Racismo enquanto forma de
dominação social ao analisarmos a
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
Homem na Estrada 15. Essa
música conta a história de um jovem
adulto que acaba de ser liberado da
prisão e tem a intenção de mudar de
vida e sair do crime. O rapaz, desde a
infância está inserido na criminalidade,
porém agora que é mais velho, não
quer que o filho passe pelas mesmas
coisas. Apesar de ter cumprido sua
pena, ele ainda é marcado como um ex-
presidiário, o que dificulta que o
protagonista de fato siga adiante. E é
justamente pelo seu passado, que o
protagonista é julgado pela sociedade
como culpado de um assassinato ao
qual não investigação sobre isso,
apenas o preconceito social que gera a
execução dele pela polícia, ao qual os
rappers ressaltam na música ser algo
ciclo, em que futuramente o filho desse
homem executado acabaria entrando
na criminalidade por não enxergar outra
forma de ascensão social, como
pegam, meu filho fica sem ninguém. É
15
narrativo oscila entre a primeira e a terceira
pessoa para contar a história de vida de um ex-
presidiário. (Sciré, 2023, p. 319).
16 Djamila Ribeiro (2018) conta em entrevista
para o lançamento do livro Sobrevivendo no
Inferno que em sua docência numa escola
o que eles querem: mais um pretinho na
16
A partir disso, podemos concluir
que a perspectiva que o grupo
mencionadas dialoga com a ideia de
configura como
um dos elementos constitutivos
e específicos do padrão
mundial do poder capitalista.
Sustenta-se na imposição de
uma classificação racial/étnica
da população do mundo como
pedra angular do referido
padrão de poder e opera em
cada um dos planos, meios e
dimensões, materiais e
subjetivos, da existência social
quotidiana e da escala societal.
(Quijano, 2000, p. 73)
Logo, nota-se que uma
relação direta entre o Capitalismo e o
Racismo enquanto força de opressão
voltada para a manutenção da
colonialidade, ao passo que esta busca
exercer poder sobre classes pré-
selecionadas como é o caso do povo
negro periférico , de forma que
[...] a colonialidade do poder, tal
como foi conceitualizada por
Raio X do Brasil
para realizar sua aula de filosofia e a partir disso
gerou-se uma análise crítica sobre a música, no
qual não só ocorreu uma participação da turma
que se interessou pela atividade, mas também
a dedicação ao refletir sobre uma realidade que
eles se identificavam.
161
liberdade de expressão: um Raio X do Brasil e a exposição da
Colonialidade.. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.148-164, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
Quijano, é a chave analítica
que permite visualizar o espaço
de confluência entre a
modernidade e o capitalismo,
bem como o campo formado
por essa associação estrutural.
(Quintero; Figueira e Elizalde,
2019, p. 5-6)
É preciso ressaltar também a
caráter julgador presente desde o
primeiro disco do grupo. Essa sica
simula um júri em que o acusado está
sendo julgado por negar sua
ancestralidade, negritude e de servir
como instrumento para que a
branquitude exerça o racismo sem
reações. Apesar disso, é destacado a
necessidade de se aceitar como negro
e trabalhar a autoestima do povo preto,
através dos versos:
Você não tem amor próprio,
fulano! Nos envergonha, pensa
que é o maior. Não passa de
um sem-vergonha em seus
atos! Por si define sua
personalidade, mas é a
inferioridade que vosente no
fundo. aos racistas imundos
razões o bastante, pra
prosseguirem nos fodendo
roupas caras, se não tem
atitude? Do que vale a
negritude, se não pô-la em
prática? A principal tática,
herança de nossa mãe África!
A única coisa que não puderam
roubar! Se soubessem o valor
que a nossa raça tem, tingiam
a palma da mão pra ser escura
1993)
É possível compreender que o
grupo está preocupado em ampliar as
perspectivas acerca do orgulho e
identidade negra. É um enaltecimento a
ser negro, em constraste aos efeitos
que o racismo têm enquanto forma de
dominação social. Além disso, para
além da identificação, ressalta-se
como uma forma de incentivar a
militância negra, ao passo que dialoga
com as ideias trazidas por Neusa
Santos Souza (1983) com a ideia de
-
-se negra [...] é
também, e sobretudo, a experiência de
comprometer-se a resgatar sua história
e recriar-
(Souza, 1983, p. 17-18). Sendo assim,
e dos modos de
compreender o sentido da prática
política, seu exercício é representado
para o negro como o meio de recuperar
a auto-estima, de afirmar sua
(Souza, 1983, p. 44).
Dessa forma, ao ressaltar a
necessidade de se reconhecer como
negro e ter orgulho de sua negritude, o
162
liberdade de expressão: um Raio X do Brasil e a exposição da
Colonialidade.. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.148-164, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
grupo busca auxiliar os ouvintes a
retomar sua autoestima como pessoa
negra. A partir disso, Prado (2020)
relaciona o rap com a perspectiva de
Tlostanova (2014) como uma ruptura
com a estética normativa ocidental de
forma que:
Tlostanova (2014) defende que
a ruptura com a estética
normativa ocidental é crucial
para a emergência de novas
experiências e sujeitos no
campo da arte. Na sua
perspectiva, o surgimento de
uma estética decolonial que,
nos parece, é também
promovida pelo rap permite
exercer uma remodelação
subjetiva do lugar dos sujeitos
de curar uma mente y alma
colonizadoras, libertando a la
persona de complexos de
inferioridade coloniales, y
permitiéndole sentir que ella
también es un ser humano con
dignidad, que también es
2014 apud Prado, 2020, p. 148)
Considerações finais
É possível concluir que o álbum
Raio X do Brasil lançado pelo grupo
relevante para se compreender o
contexto histórico ao qual estavam
inseridos e ampliar a reflexão dos
ouvintes acerca da desigualdade social
e a perpetuação do racismo em
diferentes esferas. Confirmou-se que
apesar de o grupo mencionar a
efetivação no direito à liberdade de
expressão a partir do lançamento do
álbum, esse direito não se afirma em
toda a sua concretude, afinal ainda que
as sicas do grupo o tenham sido
censuradas, houveram perseguições
pela mídia que utilizavam de estigmas
para deslegitimar suas perspectivas
críticas acerca da sociedade e também
pela polícia ao ponto de ocorrer a prisão
do grupo em 1994.
Outro fator relevante que
pudemos perceber é que a partir da
análise das letras desse álbum,
notamos um diálogo com as
perspectivas decoloniais acerca da luta
Anticapitalista e Antirracista, ao qual
constantes menções sobre os
problemas do capitalismo e do racismo,
além do incentivo para que os ouvintes
se rebelem contra essas formas de
opressão, de tal maneira que ao utilizar
sua música como uma forma de
rebelar-se contra os efeitos da
encontro com as críticas realizadas
pelo pensamento decolonial e a
perpetuação dos efeitos da
colonialidade que se mantém ainda na
atualidade. Sendo assim, é notório a
163
liberdade de expressão: um Raio X do Brasil e a exposição da
Colonialidade.. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.148-164, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura ")
importância que o grupo Racionais
críticos e a força contra hegemônica
que suas músicas possuem frente à
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MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.165-184, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
(Re)construção do ethos e da identidade negra em duas canções do álbum
Ladrão, de Djonga
Leandro Moura1
Benedicto Roberto Alves Carlos2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v15i28.65326
Resumo:
além de ser corresponder, também, a uma pessoa desonesta. Frequentemente, jovens negros são
vistos e/ou julgados como ladrões devido à cor da pele. É a partir dessa perspectiva que o rapper
mineiro, Djonga, lançou o álbum intitulado Ladrão, em 2019. No álbum, o músico tenta desconstruir
essa imagem prévia (ethos) que é formada em volta da população negra. É por meio da arte e do
discurso que o rapper busca empoderar o sujeito negro, ao mesmo tempo em que reforça a
reinvindicação de espaços e direitos. Desse modo, o presente artigo busca investigar a maneira como
o músico, a partir de suas músicas, utiliza cnicas argumentativas para descontruir e, efetivamente,
construir uma nova imagem acerca da população negra.
Palavras-chave: argumentação; ethos; rap; doxa; retórica.
(Re)construction of ethos and black identity in two songs from the album Ladrão, by Djonga
Abstract: According to the Portuguese
or stealing, in addition to also being a dishonest person. Often, young black men are seen and/or judged
as thieves because of the color of their skin. It is from this perspective that the rapper from Minas Gerais,
Djonga, released the album entitled Ladrão, in 2019. In the album, the musician tries to deconstruct this
previous image (ethos) that is formed around the black population. It is through art and speech that the
rapper seeks to empower the black subject, while at the same time reinforcing the demand for spaces
and rights. Therefore, this article seeks to investigate the way in which the musician, based on his songs,
uses argumentative techniques to deconstruct and, effectively, construct a new image about the black
population.
Keywords: argumentation; ethos; rap; doxa; rhetoric.
(Re)construcción de ethos e identidad negra en dos canciones del disco Ladrão, de Djonga
1Doutor em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail:
leandro_slm@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6777-5773.
2Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Universidade Federal de
Minas Gerais (POSLIN/UFMG). E-mail: benedictorcarlos@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-
0003-1593-4255.
Recebido em 10/11/2024, aceito para publicação em 22/12/2024.
166
MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.165-184, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Resumen:
hurtar, además de ser también una persona deshonesta. A menudo, los jóvenes negros son vistos y/o
juzgados como ladrones por el color de su piel. Es desde esta perspectiva que el rapero minero Djonga
lanzó en 2019 el álbum titulado Ladrão. En el álbum, el músico intenta deconstruir esta imagen previa
(ethos) que se forma en torno a la población negra. Es a través del arte y el discurso que el rapero
busca empoderar al sujeto negro, al mismo tiempo que refuerza la demanda de espacios y derechos.
Por ello, este artículo busca investigar la manera en que el músico, a partir de sus canciones, utiliza
técnicas argumentativas para deconstruir y, efectivamente, construir una nueva imagen sobre la
población negra.
Palabras clave: argumentación; ethos; rap; doxa; retórica.
(Re)construção do ethos e da identidade negra em duas canções do álbum
Ladrão, de Djonga
Introdução
A história do Brasil é marcada
pelo processo de colonização,
realizado pela coroa portuguesa, entre
os anos de 1530 e 1822. A música
sempre se fez presente para os negros
e, segundo Nascimento (2019), no
início do período da colonização, a
música servia como alívio para os
negros escravizados, depois de um
longo e doloroso dia nas colônias.
Nesse sentido, a música servia como
uma possibilidade de futuro. Em outras
palavras, a música era um vislumbre de
um futuro com melhor qualidade de
vida.
Conforme Mariani (2004), o
processo de colonização pode ser
entendido como um sistema violento no
qual uma nação e/ou cultura impõe-se
sobre a outra. Além disso, a autora
compreende que a única maneira de
relatar os acontecimentos do passado e
ressignificar ideias é por meio da língua
deixada pelo colonizador, ou seja, por
meio da língua, é possível lutar contra
o processo de colonização, contra a
discriminação e contra o preconceito.
Mais do que isso, é necessário se
apropriar da ngua do opressor para
combater os seus preconceitos, pois é
por meio da linguagem do dominador
que as pessoas subalternas irão se
libertar. Nesse sentido,
muitas vezes não como
dizer essa outra história a não
ser pelo uso da língua vinda
com o colonizador. Mesmo que
seja para dizer de um outro
jeito, renomear os
167
MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.165-184, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
acontecimentos, por exemplo,
que se passar por uma
política de sentidos organizada
inicialmente na língua da
metrópole (Mariani, 2004, p.
24).
Assim, é exatamente por meio
desse recurso, qual seja, o de utilizar a
língua colonizadora, que cantores de
rap, como Djonga, Mano Brown,
Emicida, entre outros, buscam retomar
o passado para criar alternativas no
presente.
Nesse sentido, compreendemos
que o rap é um gênero que integra o
quadro cultural do Hip-
rap é um dos elementos que fazem
parte do Hip-Hop, um movimento
cultural que surgiu no início dos anos
1970, no bairro do Bronx, em Nova
Iorque, criado por jovens negros e
Devido à sua relevância para a
população, o Hip-Hop e,
consequentemente, o rap conquistaram
espaço nos cenários culturais ao redor
do mundo, especialmente no Brasil.
rap é um gênero musical
mundialmente conhecido que comporta
2006, p. 179).
No contexto brasileiro, a cultura
do rap se manifesta como uma forma
de resistência e valorização da cultura
afro-brasileira, além de representar um
instrumento de emancipação para a
população historicamente
subalternizada. Nessas trilhas, cabe
lembrar do sankofa, provérbio africano
cuja ideia é retomar o passado para
ressignificar o presente. No trabalho
musical desenvolvido pelo rapper
Djonga, é possível perceber que o
músico brasileiro busca retomar o
passado para que, desse modo,
reivindique todo o espaço negado para
os negros.
Ademais, é válido dizer que a Lei
Áurea, assinada em 1888, não
concedeu ao negro a possibilidade de
emancipação e ascensão social. Uma
das estratégias utilizadas para manter a
população negra subjugada foi a
racionalização, quando se colocava
uma raça contra a outra, pois tal noção
opera como uma forma de manter o
controle sobre os corpos negros. Nessa
perspectiva, Sodré (2023) aponta que o
processo de racionalização, que
ocorreu após a abolição, serviu como
uma estratégia endocolonial, uma vez
q
estratégia de hierarquização social
dentro de uma cadeia de continuidade
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MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
2023, p. 44).
Desse modo, o processo
endocolonial pode ser caracterizado
pela criação de barreiras que
impossibilitam o sujeito negro de atingir
determinado nível econômico e social.
Além disso, entendemos que um
controle sobre a identidade negra, uma
vez que, embora tal identidade seja
socialmente reconhecida, a imagem
que se constrói em torno dela não
reflete sua verdadeira identidade. Em
vez disso, essa representação funciona
como um reflexo do racismo presente
em nossa sociedade. Nesse sentido,
entendemos que o rap, enquanto
gênero musical, busca o resgate da
identidade e da valorização da cultura
negra.
Por conseguinte, com a
retomada dos estudos retóricos e com
a publicação do Tratado da
Argumentação: a nova retórica, em
1958, o campo da Análise do Discurso
tem oferecido importantes
contribuições para a reflexão sobre a
construção dos mais variados tipos de
discurso. Para além disso, a obra de
Perelman e Olbrechts-Tyteca buscou
demonstrar como o orador constrói sua
argumentação em função do outro,
utilizando recursos linguísticos que
visam fortalecer sua argumentação.
Desse modo, para que
possamos investigar as técnicas
argumentativas utilizadas por Djonga
para desconstruir e, efetivamente,
construir uma nova imagem acerca da
população negra em suas músicas,
adotaremos, como arcabouço teórico,
os escritos de Perelman e Olbrechts-
Tyteca. Mais do que isso, as análises
aqui propostas se voltam para a
problemática da argumentação como
discurso, que está diretamente
relacionada à problemática retórica,
pois, conforme Emediato (2022, p.
retomada atualmente pelos trabalhos
que se orientam para o discurso e seus
objetos diversos, como o espaço do
debate público, os auditórios, a
subjetividade e as intenções dos
necessário analisar como a relação
entre o orador e o auditório pode ser
construída por meio da música, uma
vez que
o sujeito tem um estatuto social
(um papel social) que gera
expectativas sobre suas
atitudes discursivas (papéis
discursivos). Os fatores de
determinação não apenas
ideológicos, mas ligados ao
169
MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
funcionamento complexo e
multivariado das estruturas
sociais, das normas, dos rituais
conversacionais, das
tecnologias, dos dispositivos
comunicacionais, das
situações das diferentes
lógicas de relações entre
31).
Além do Tratado, haja vista que
este artigo foi desenvolvido com foco
na problemática da argumentação e no
papel do ethos como uma forma de
reconstrução de identidades, valemo-
nos de filósofos da Retórica, como
Aristóteles (2011); de estudiosos da
argumentação e de analistas do
discurso, como Amossy (2018),
Emediato (2020, 2022), Galinari (2014),
Lima (2023) e Perelman & Olbrechts-
Tyteca (2020).
Por fim, visamos investigar como
as provas retóricas e as técnicas
argumentativas foram utilizadas para
conquistar a adesão de seu público e
como elas auxiliam na reconstrução da
identidade da população negra. Antes
de passarmos às análises, serão
apresentados, brevemente, alguns
pensamentos sobre argumentação e
retórica na próxima seção.
3Nossa tradução do texto original em espanhol:
primeiros textos de la literatura grega, la
Entre a Argumentação e a Retórica
Muito se discute sobre o
surgimento e/ou a origem dos estudos
retóricos, mas não é possível definir
com exatidão sua criação. Entretanto,
compreendemos que a utilização da
retórica se faz presente desde o
momento em que os seres humanos
passaram a utilizar a linguagem como
forma de comunicação, o que dificulta a
definição do local de seu surgimento. O
poeta Homero, por exemplo, é
notoriamente reconhecido pela
utilização constante de discursos em
seus poemas épicos, além de reflexões
acerca das diversas formas de
discursar. Nesse sentido, Pernot (2016)
homéricos, que são os primeiros textos
da literatura grega, as palavras e a
persuasão ocupam um lugar de
3.
Na Antiguidade, os estudiosos
concebiam a retórica como uma
ferramenta utilizada para persuadir o
outro, ou seja, ela era sinônimo de
eloquência. Essa definição de retórica
fez com que ela fosse compreendida de
palavra y la persuasión ocupan um lugar
170
MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
uma maneira pejorativa entre os
cidadãos, pois ela era entendida como
um modo de enganação. Nas palavras
acha-se constantemente associada à
manipulação, ou seja, a
comportamentos discursivos pautados
na demagogia, por lidar,
perigosamente, com emoções, desejos
e anseios das subjetividades human
(Galinari, 2014, p. 261). Além disso,
Pernot (2016) aponta que o
aparecimento da retórica na
Antiguidade é marcado pelo surgimento
da polis que, consequentemente,
influenciou os diferentes usos públicos
da linguagem.
Alguns pesquisadores da área
atribuem o surgimento da retórica aos
sofistas, mais precisamente a Córax e
Tísias. Cabe destacar que Córax teria
sido o professor de Tísias, tendo em
vista que o segundo teria recorrido ao
primeiro em busca de ganhar um
processo judicial. Córax era
reconhecido por ensinar a arte oratória
a qualquer um mediante pagamento.
ansioso de aprender retórica, fue em
busca de Córax, comprometiéndose a
pagarle el salario que él fijara, a
(Pernot, 2016, p. 38). Os dois foram
responsáveis por publicarem o primeiro
manual de retórica, fazendo com que
ela se tornasse uma disciplina, mas
suas obras não sobreviveram com o
passar dos anos e as únicas
referências que temos a eles são em
autores como Aristóteles, Cícero,
Quintiliano e Platão.
O estudo da retórica surge,
então, a partir da necessidade de os
cidadãos da polis defenderem seus
bens nos tribunais. Córax e Tísias são
reconhecidos por desenvolverem a
ideia da verossimilhança, uma vez que
compreendem que um argumento não
apresenta uma verdade concreta, mas
uma verdade aparente. Ainda que
tenham sistematizado um manual de
retórica, não é possível creditar o
surgimento da retórica a tais
estudiosos, tendo em vista que existem
outras histórias sobre o invento da
referida disciplina.
Acontece que, embora tenha se
baseado nos estudos dos sofistas, a
retórica se popularizou com Aristóteles
e se difundiu a partir do filósofo grego.
Os estudos de Aristóteles sobre
retórica são mais conhecidos do que os
dos sofistas, devido ao fato de sua obra
171
MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
séculos. Para Aristóteles (2011, p. 44),
em cada caso, o que este encerra de
Nessa busca pela persuasão, o
orador tem à sua disposição três provas
retóricas, as quais podem ser
mobilizadas para que ele conquiste a
adesão: o ethos, o pathos e o logos. O
primeiro é voltado para a imagem
pessoal do orador (ethos); o segundo é
a capacidade do orador de despertar as
emoções de seu público (pathos); e o
último é referente ao próprio discurso
no que diz respeito ao que apresenta ou
parece apresentar (logos).
Apesar de, classicamente, as
provas serem apresentadas de modo
individualizado, é importante mencionar
que, em uma análise argumentativa,
essas três provas retóricas se
complementam e não funcionam
ethos e o pathos se tornam realidade
a partir do discurso, ou seja, do uso de
sua estrutura, de seus raciocínios, em
suma, de tudo que se chamou [...] de
logos
Após os estudos de Aristóteles,
instala na cultura grega helenística
como disciplina essencial, tão
importante quanto para nós a
o passar dos séculos, o ensino da
retórica esteve presente em diversas
culturas e sociedades, tais como no
Império Romano, na Europa medieval e
no mundo islâmico, por exemplo.
realmente declinou, a ponto de quase
dos motivos para tal é a relação
estabelecida entre a retórica e o
Cristianismo, ou seja, a apropriação
problemática dos estudos retóricos,
feita por parte dos religiosos.
Assim como lembra Moura
(2022), é importante salientar que, após
esse período de deslegitimação da
retórica, ocorrido durante a passagem
do século XIX para o XX, os estudos de
argumentação precisaram se
reinventar. Assim, ao nos debruçarmos
sobre as trilhas percorridas por
estudiosos contemporâneos da
argumentação, notaremos que, hoje,
não existe somente uma definição de
argumentação, mas sim um conjunto
de possíveis definições, ou melhor, o
que temos hoje são teorias da
argumentação, entre as quais se
destacam O Tratado da Argumentação,
de Perelman e Olbrechts-Tyteca, e Os
172
MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
usos do Argumento, de Toulmin. Essas
obras foram publicadas em 1958 e
foram extremamente importantes, pois
marcaram o novo momento vivido pelos
estudos da argumentação na segunda
metade do século XX.
A inscrição da argumentação nos
estudos discursivos
No Tratado da Argumentação: a
nova retórica, publicado em 1958,
Perelman e Olbrechts-Tyteca
buscaram recuperar os estudos de
Aristóteles acerca da retórica para ser
aplicado no campo do Direito. Além
disso, com a Nova Retórica, buscou-se
estabelecer certo distanciamento dos
estudos gicos, tendo em vista que,
para o positivismo lógico, a
argumentação deve ser sustentada a
partir de raciocínios lógicos e de fatos
que fundamentam a sua arguição. Em
vista disso, os autores reconhecem que
o campo da argumentação, assim
campo do verossímil, do plausível, do
provável, na medida em que este último
escapa às
(Perelman; Olbrechts-Tyteca, 2020, p.
1).
Embora o discurso possa ser
utilizado como uma ferramenta de
a linguagem pode ter efeitos
semelhantes aos da dor sica ou de um
Perelman e Olbrechts-Tyteca
compreendem que os estudos acerca
da argumentação possam servir como
recurso para evitar a violência física.
Para os autores,
a razão é totalmente
incompetente nos campos que
escapam ao cálculo e de que,
onde nem a experiência, nem a
dedução lógica podem
fornecer-nos a solução de um
problema, nos resta
abandonarmo-nos às forças
irracionais, aos nossos
instintos, à sugestão ou à
violência (Perelman; Olbrechts-
Tyteca, 2021, p. 3).
Dessa forma, é possível dizer
que, a partir da argumentação, os
sujeitos serão capazes de chegar a um
consenso, evitando, assim, possíveis
agressões físicas em situações de
conflito.
Ademais, com o Tratado da
Argumentação, Perelman e Olbrechts-
Tyteca pretendem ampliar os estudos
retóricos de Aristóteles em novas
perspectivas e reflexões. Assim,
diferentemente dos retóricos da
Antiguidade, que priorizavam os
173
MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
discursos orais, Perelman e Olbrechts-
Tyteca (2020) afirmam que não
pretendem limitar seus estudos apenas
às análises de discursos orais. Assim,
os autores reconhecem a importância
de discursos escritos, como os
literários. Percorrendo essas trilhas e
considerando o contexto atual do
século XXI, com a popularização da
Web 2.0 e da internet, os analistas de
discursos são agora convidados a
considerar, também, os discursos feitos
e publicados online, o que nos
propomos a fazer neste trabalho.
Um dos objetivos dos autores
com o Tratado da Argumentação é
investigar o modo como os recursos
linguísticos são utilizados pelos
oradores para conquistar a adesão dos
espíritos. Em vista disso, Perelman e
Olbrechts-Tyteca (2020) entendem que
a argumentação corresponde às
estratégias discursivas utilizadas por
um orador para aumentar e/ou provocar
a adesão dos espíritos às teses
apresentadas. A argumentação
acontece, então, a partir da relação
entre um orador e seu auditório, sendo
o último responsável por qualificar a
argumentação. Em outras palavras,
cabe ao auditório avaliar e julgar o
discurso q
de fato, ao auditório que cabe o papel
principal para determinar a qualidade
da argumentação e o comportamento
-
Tyteca, 2020, p. 27).
O auditório, segundo os autores,
é constituído por aqueles a quem o
orador busca persuadir com sua
argumentação. Assim, a argumentação
é toda construída e moldada a partir do
auditório ao qual o orador se dirige.
Cabe destacar a importância que é
concedida ao auditório no Tratado, uma
s novas
funções, assumiu uma personalidade
(Perelman; Olbrechts-Tyteca, 2020, p.
24). Em síntese, o orador necessita
projetar seu auditório o mais próximo
possível da realidade para conquistar
sua adesão, uma vez que a
argumentação é toda desenvolvida a
partir do auditório o qual o orador
pretende conquistar.
Com relação à argumentação
escrita, Perelman e Olbrechts-Tyteca
apontam a dificuldade que um escritor
enfrenta ao projetar seu auditório, visto
que, em um discurso escrito, o autor
não tem controle sobre quem será seu
difícil determinar, com a ajuda de
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MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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transformações da cultura")
critérios puramente materiais, o
auditório de quem fala; essa dificuldade
é ainda maior quando se trata do
auditório do escritor, pois, na maioria
dos casos, os leitores o podem ser
(Perelman; Olbrechts-Tyteca, 2020, p.
22). Ao longo da obra, Perelman e
Olbrechts-Tyteca dividem o auditório
entre o auditório universal, particular,
de elite, heterogêneo etc.
Para auxiliar na construção e/ou
na adaptação ao auditório, o orador
tende a se apoiar nos valores que
valores intervêm, num dado momento,
em todas as argumentações [...].
Recorre-se a eles para motivar o
ouvinte a fazer certas escolhas em vez
de outras e, sobretudo, para justificar
estas, de modo que se tornem
(Perelman; Olbrechts-Tyteca, 2020, p.
85).
Desse modo, os autores
apontam que, embora o orador não
compactue com os valores de seu
auditório, não seria interessante que
ele os negasse completamente, pois,
assim, não conquistaria sua adesão. A
noção de valores trabalhada por
Perelman e Olbrechts-Tyteca se
assemelha à concepção de doxa, da
retórica antiga, recuperada e
acrescentada aos estudos discursivos
contemporâneos. Amossy (2018), por
exemplo, reconhece a doxa como parte
do campo da verossimilhança e/ou da
probabilidade, uma vez que, segundo a
autora, a doxa fornece meios para que
se alcancem pontos de acordo entre o
orador e seu auditório.
Em seu livro A Argumentação no
Discurso, Amossy (2018) aponta as
problemáticas que envolvem a noção
de doxa e/ou valores, destacando que,
no século XX, essa noção era estudada
de forma negativa. A autora explica que
os estudos sobre a noção de doxa
comum aliena a consciência individual,
obstruindo a verdadeira reflexão, e
prende o sujeito falante a uma ideologia
que se oculta sob as aparências
(Amossy, 2018, p. 109). Entretanto, na
mesma obra, a autora busca trazer
outra reflexão acerca da doxa, pois
compreende que é possível fazer um
movimento contrário e desconstruir
determinados valores dominantes.
A partir das considerações
apresentadas até este momento,
buscamos investigar, também, como o
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MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
rapper doxa,
assinala o engano e a manipulação; em
2018, p. 111). Nesse contexto,
entendemos que o músico, por meio de
sua argumentação e de sua música,
tenta instaurar novos valores para
elevar a autoestima da população
negra.
Compreendemos que, ao fazer
esse movimento de discursar contra os
valores dominantes e de elevar a
autoestima da população negra, o
rapper mineiro possibilita uma
reconstrução do ethos pré-discursivo
que é criado em torno da população
negra. Para além disso,
compreendemos que a música de
Djonga possibilita a reconstrução da
identidade negra, tão perseguida no
Brasil. Então, para analisar essa
elaboração argumentativa do rapper,
investigamos quais as possíveis
técnicas argumentativas utilizadas por
ele para validar seu discurso e
conquistar a adesão de seus ouvintes,
sobreposição de argumentação que se
conseguirá explicar melhor o efeito
(Perelman; Olbrechts-Tyteca, 2020, p.
214).
No próximo tópico, como forma
de contextualização, abordaremos
brevemente a trajetória de Djonga e,
por fim, faremos uma análise de duas
músicas, a saber, Hat-Trick e Ladrão,
as quais estão no álbum "Ladrão"
(2019). A escolha dessas músicas
baseia-se no fato de Hat-Trick ser o ato
de abertura do álbum, enquanto Ladrão
corresponde à faixa que título à
obra. Além disso, acreditarmos que
ambas demonstram, na prática, como
Djonga utiliza a argumentação para a
reconstrução da identidade da
população negra.
Notas sobre o rapper
Gustavo Pereira Marques,
conhecido por seu nome artístico
Djonga, nasceu em Belo Horizonte, no
ano de 1994. Atualmente, é
considerado um dos maiores rappers
brasileiros dos últimos anos, tendo
lançado sete álbuns e um EP. Djonga é
conhecido por trazer em suas letras
referências a filmes, a pensadores
negros e à cultura pop de modo geral.
Além disso, as composições do rapper
abordam, de forma objetiva e
contundente, a luta contra o racismo,
contribuindo para a relevância de
Djonga no cenário musical brasileiro.
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MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
No terceiro álbum do cantor,
Ladrão (2019), o artista constrói um
discurso rodeado de críticas sociais ao
tentar resgatar a autoestima do povo
negro que há tanto tempo segue sendo
entrevista para a revista Rolling Stone
Brasil (2019)4, o rapper relatou que:
quando eu era criança, eu
andava na rua e me sentia
ladrão. Mesmo quando nunca
tinha roubado nada, as
pessoas olhavam com medo. O
tempo passou e eu entendi que
tipo de ladrão eu devia ser,
esse que busca e traz de volta
pras minhas e pros meus. eu
fui e fiz o que eu sempre fiz:
roubei, roubei e trouxe de volta
(Djonga, 2019).
A partir do trecho da entrevista
apresentado acima, é possível
perceber as motivações que levaram
Djonga a compor o álbum Ladrão. Entre
elas, podemos perceber como ele
utiliza a indignação para comover,
conscientizar e, consequentemente,
mobilizar seu público em prol da causa
que defende. Lima (2023) aponta que
utilizar da indignação como forma de
113). O desejo de vingança é um dos
4Cf.
<https://rollingstone.uol.com.br/noticia/lista-13-
segredos-de-ladrao-o-terceiro-disco-do-
motores que conduzem Djonga na
tentativa de reconstrução de valores
acerca da identidade negra.
Outro ponto de apoio utilizado
pelo artista, mesmo de maneira
inconsciente, é o uso do ressentimento
como forma de mobilização social. Uma
pessoa ressentida compreende que
por acreditar ser prejudicado pelas
instituições jurídica, política,
educacional , o sujeito se (re) sente,
sente-
108). No entanto, o ressentimento
utilizado pelo artista pode ser
compreendido como uma forma de
reparação histórica em benefício do
sujeito negro que, por tantos anos,
sofreu (e ainda sofre) com as
consequências do racismo. Além disso,
compreendemos que o processo de
conscientização acerca das questões
raciais acontece por meio de um
processo de ressentimento, tendo em
vista que essa sensação leva a
desconfiança de que uma situação está
errada.
djonga-e-um-dos-melhores-de-2019/>. Acesso
em: 11 jun. 2024.
177
MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Ethos e identidade negra: a música
como estratégia de (re)construção
das imagens de si
O álbum Ladrão, de Djonga, é
composto por 10 músicas autorais.
Para a análise, separamos duas
músicas, quais sejam, Hat-trick e
Ladrão. Sobre o critério de seleção das
músicas, vale destacar que optamos
por selecionar a faixa que abre o álbum
e a faixa que leva o nome do trabalho,
considerando, também, as temáticas
desenvolvidas durante as canções.
Para dar início à análise, optamos pela
faixa Hat-trick. Cabe destacar que
foram selecionados apenas alguns
trechos de destaque das músicas para
análise.
A primeira música5,
possivelmente, se chama Hat-trick por
compor o terceiro álbum consecutivo do
artista. O termo em questão, comum na
língua inglesa, é utilizado no futebol
quando um jogador marca três gols em
uma mesma partida, uma vez que seu
significado está atrelado a algo que
acontece, sucessivamente, por três
vezes. O primeiro verso da música diz
o seguinte:
5-
<https://www.letras.mus.br/djonga/hat-trick/>.
Acesso em: 11 jun. 2024.
falo o que tem que ser dito
pronto pra morrer de pé
pro meu filho não viver de
joelho
(Djonga, 2019)
marcas linguísticas na
composição, como o emprego da
primeira pessoa do singular, as quais
nos autorizam dizer que,
possivelmente, o eu-lírico corresponde
ao cantor. Nesse sentido, o artista
utiliza a modalidade enunciativa em 1ª
pessoa para se projetar em sua própria
música e gerar um efeito de
subjetividade. A modalização contribui
para a compreensão dos argumentos
do orador e para a construção de sua
autoimagem (ethos), a qual ele
pretende transmitir ao seu auditório.
Nas palavras de Emediato (2022),
pelos modos de dizer, o texto
expressa pontos de vista,
atitudes, sentimentos e
percepções do sujeito; pode
mostrar fatos como reais,
hipotéticos, possíveis ou
desejáveis; pode insinuar
efeitos de sentido que queira
causar no destinatário,
comportamentos e reações
que queira ver desencadeados
(Emediato, 2022, p. 237).
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identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Nesse sentido, no primeiro verso
da música, Djonga afirma, de maneira
assertiva, que ele diz apenas o
necessário, ou seja, evidencia fatos.
Desse modo, no segundo verso o
rapper afirma que, por conta das
verdades ditas por ele, está pronto para
morrer em pé, o que demostra que,
além de estar preparado para a morte,
ele não teme o fim da vida. Por
conseguinte, Djonga afirma que toda a
luta dele é para que o seu filho possa
viver, possivelmente, em um mundo
justo e de melhores condições de vida.
Assim, na primeira estrofe da música,
é possível construir um ethos do rapper
como sendo alguém focado e
preparado para combater os
preconceitos. Na próxima estrofe,
encontramos seguinte:
cê não sabe o que é acordar
com a responsa
que pros menor daqui eu sou
espelho
cada vez mais objetivo
pra que minhas irmãs deixem
de ser objeto
(Djonga, 2019)
O rapper, aparentemente, faz o
uso novamente da modalidade
enunciativa, mas, dessa vez, em
pessoa para gerar um efeito de
interlocução. Desse modo, ao utilizar
modalidade enunciativa na pessoa, o
artista gera um efeito de interlocução,
tendo em vista que projeta um tu no
verso ao alegar que, possivelmente,
esse alguém não imagina o peso que é
ser destaque do rap nacional, além de
ser um artista negro em um país
explicitamente racista. No verso
seguinte, Djonga utiliza o dêitico daqui
que aponta para um lugar de origem, de
lar. Dando continuidade, no verso
subsequente, o rapper retoma o que foi
dito na primeira estrofe sobre falar
apenas os fatos, de uma maneira
direta. no final da segunda estrofe,
Djonga demostra que toda sua luta é
pelo bem coletivo do seu povo. Nesse
sentido, o músico busca ressignificar a
identidade cultural das mulheres
negras, que costumam ser vítimas de
objetificação sexual. No refrão da
música, encontramos:
abram alas pro rei, ô
me considero assim
pois só ando entre reis e
rainhas
(Djonga, 2019)
Djonga faz uso da modalidade
volitiva, que tem o valor semântico e
modal de designar ordem, a fim de
solicitar que as pessoas abram espaço
para ele. Nesse sentido, ele projeta um
ethos de potência, ao reivindicar seu
lugar na sociedade. Em um primeiro
179
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identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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transformações da cultura")
momento, somos levados a pensar que
o rapper constrói o próprio ethos,
associando-o à figura de um rei,
possivelmente, devido ao sucesso que
alcançou. Na sequência, o músico
busca explicar que o motivo de se sentir
como um rei são as pessoas que estão
ao seu redor, valendo-se, então, da
modalidade autonímica, que possui o
valor semântico e/ou modal de reflexão.
Desse modo, Djonga projeta um ethos
coletivo, uma vez que tenta fazer com
que o sujeito negro se reconheça nesse
ethos de potência construído pelo
cantor.
No decorrer da música, Djonga
continua afirmando seu ethos de uma
pessoa assertiva, forte, além de
militante. Na estrofe seguinte, ele
afirma:
eu sigo falando o que vejo
Tem uns irmão que tá falando
o que essa mídia quer ouvir
alguns portais nem me citam
é que eu já ultrapassei, pô!
(Djonga, 2019)
O rapper, além de reafirmar seu
ethos, possivelmente, faz uma
denúncia contra outros músicos, que se
omitem em relação aos casos de
racismo, de desigualdades sociais e
outros problemas em voga na
sociedade brasileira. Além disso, no
possível perceber o modo como o
músico recorre ao argumento da
superação para exemplificar seu atual
momento social e para validar seu
argumento e sua imagem de si. Nas
palavras de Perelman e Olbrechts-
superação insistem na possibilidade de
ir sempre mais longe num certo sentido,
sem que se entreveja um limite nessa
direção, e isso com um crescimento
Olbrechts-Tyteca, 2020, p. 327).
Djonga também apresenta uma crítica
contra as grandes mídias, que se
mostram omissas e coniventes com o
jornais é praticamente todo composto
de brancos, e isso, é claro, acarreta
sérias consequências na produção de
notícias, no estilo de redação, no
acesso às fontes e no ponto de vista
geral do discu
Dijk, 2008, p. 98).
Esse desinteresse, por parte das
grandes mídias, ao não abordar esses
assuntos, faz com que o racismo
continue presente em nossa sociedade,
uma vez que as pessoas não são
educadas para desconstruírem seus
preconceitos. Isso faz com que sicos
180
MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
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transformações da cultura")
como Djonga não tenham seus
trabalhos divulgados pela imprensa.
Em outras palavras, a branquitude
segue confiando nesse ethos que foi
imposto aos negros desde o início do
período colonial. Os sujeitos negros
carregam um ethos de pessoas
violentas, irresponsáveis, arrogantes,
incivilizados etc.
No final da música, o rapper
recita o seguinte poema autoral:
o dedo
desde pequeno geral te aponta
o dedo
no olhar da madame eu
consigo sentir o medo
cresce achando que é
pior que eles
irmão, quem te roubou te
chama de ladrão desde cedo
ladrão
então peguemos de volta o
que nos foi tirado
mano, ou você faz isso ou
seria em vão o que nossos
ancestrais teriam sangrado
de onde eu vim, quase todos
dependem de mim
todos temendo meu não, todos
esperam meu sim
do alto do morro, rezam pela
minha vida
do alto do prédio, pelo meu fim
ladrão
no olhar de uma mãe eu
consigo entender o que pega
com o irmão
tia,vou resolver seu problema
eu faço isso da forma mais
honesta
6
<https://www.letras.mus.br/djonga/ladrao/.>
Acesso em: 11 jun. 2024.
e ainda assim vão me chamar
de ladrão
ladrão
(Djonga, 2019)
O poema serve como explicação
e/ou justificativa para o título do álbum,
tendo em vista que Djonga busca
ressignificar o conceito de ladrão, de
modo que as ações que são realizadas
pelo artista possam ser pensadas como
uma tentativa de reparação histórica.
Assim, percebemos que, embora o
rapper utilize a modalidade enunciativa
com efeitos de subjetividade, ele
aborda fatos da própria vivência e, ao
mesmo tempo, preza pela coletividade.
Portanto, como forma de legitimar o seu
discurso, Djonga faz o uso do
argumento de autoridade para legitimar
sua fala e encorajar a população negra
a combater a discriminação racial.
Na próxima música a ser
analisada, intitulada Ladrão6, Djonga
afirma, de maneira consistente, sua
posição de ladrão. A canção está na
primeira pessoa do singular e
encontramos nos primeiros versos os
seguintes dizeres:
eu vou roubar o patrimônio do
seu pai
181
MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
dar fuga no Chevette e
distribuir na favela
não vão mais empurrar sujeira
pra debaixo do tapete
e nem pra debaixo da minha
goela, eu sou ladrão!
os cara faz rap pra boy
eu tomo dos boy no ingresso,
o que era do meu povo
todo ouro e toda prata, passa
pra cá.
De onde se tira o pão não se
come a carne
Falar em carne, faço a preta
ser a mais cara do mercado
(Djonga, 2019)
Nesses versos, é possível
observar que o rapper se apropria da
modalidade deôntica para afirmar que
busca roubar os bens dos chefes de
produção e distribuí-los para as classes
sociais baixas. É a partir desta visão de
mundo que o rapper se intitula como
ladrão, pois busca reivindicar direitos e
melhores condições de vida para os
jovens negros e para a população
periférica. Nesse sentido, o artista
busca construir um novo ethos em
Além disso, no final da estrofe,
Djonga busca a valorização da
identidade e da cultura negra, ao
afirmar que faz a carne preta ser a mais
cara do mercado. Ademais, nessa
última estrofe destacada, pensando no
conceito de dialogismo proposto por
Volóchinov (2018), Djonga estabelece
um diálogo com a música A carne
(2002), de Elza Soares, a qual alega
que a carne mais barata do mercado é
a carne negra. Assim, o rapper buscar
fazer uma releitura desta concepção da
música.
No decorrer da canção, o músico
segue seu comprometimento em
devolver para a população negra tudo
aquilo que lhes foi tirado, como vemos
nos versos:
Dei voadora na cultura branca,
corda no pescoço
Eles passam e eu rasgo o
pano
Não sou querido entre a nata
de apropriadores culturais, ó
que onda!
(Djonga, 2019)
Djonga alega que está
questionando e criticando a valorização
em demasia dos valores culturais das
pessoas brancas, vindos do ocidente.
Devido a esses questionamentos, o
artista afirma que não é apreciado por
grande parte das pessoas brancas. O
argumento de autoridade também se
faz presente nessa segunda canção,
pois o eu-lírico expõe seus feitos para
tentar emancipar a população negra do
local social em que foram colocados.
Vejamos os próximos versos:
Eu só não quero ser menor
que eles
Não é pela grana que eu tô me
182
MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.165-184, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
gabando, yeah, hey!
Tiro onda, porque mudo
paradigmas
Meu melhor verso só serve se
mudar vidas
Pois construí um castelo vindo
dos destroços
Resumindo: Eu tiro onda
porque eu posso
(Djonga, 2019)
Nos versos destacados acima,
ao projetar um tu, o rapper demonstra o
desejo de sair desse local de
inferioridade no qual a sociedade
enquadrou a população negra. Nesse
sentido, Djonga faz uso do discurso de
autoridade como forma de validar suas
afirmações e conquistas pessoais.
Além disso, ele expõe um dos objetivos
de suas canções, que é a
transformação social na vida das
pessoas, mas especificamente da
população negra. No final do verso, o
para reafirmar esse discurso de
autoridade proposto pelo cantor.
Sobre a adaptação ao auditório,
podemos, inicialmente, assumir que o
músico tenta atingir um auditório
particular, ou seja, ele busca
estabelecer um diálogo com seus
semelhantes. Porém, ao mesmo
tempo, é possível cogitar a projeção
para um auditório universal, levando
em consideração as reivindicações
feitas na música. Nesse sentido, o
auditório universal, segundo Perelman
e Olbrechts-Tyteca, tende a versar
de todo ser humano,
independentemente do tempo e do
-Tyteca
apud Amossy, 2018, p. 75).
Cabe destacar, ainda,
que nas demais canções do álbum, o
músico busca balancear essas
denúncias sociais em meio a algumas
músicas românticas. Porém, ainda que
o álbum contemple algumas canções
rapper não deixa de
fazer reflexões importantes em relação
à causa de mulheres e de homens
negros. Enfim, acreditamos que com as
duas músicas analisadas nesta seção,
conseguimos perceber a importância
do rap na vida das pessoas que se
enxergam nas letras e nos fatos
narrados pelo músico.
Considerações finais
Com base nas reflexões feitas
ao longo do artigo, além da análise das
músicas, é possível perceber a
importância do rap para a construção
da identidade cultural dos jovens
negros e das pessoas periféricas. Cabe
destacar que as identidades são
183
MOURA, Leandro; CARLOS, Benedicto. (Re)construção do ethos e da
identidade negra em duas canções do álbum Ladrão, de Djonga.
PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
construídas a partir da diferença e/ou
da comparação a alguém, sendo esse
o princípio da alteridade. Pensando no
trabalho de artistas do rap nacional, tais
como Djonga e Mano Brown, é possível
perceber que eles buscam construir a
identidade cultural das pessoas negras
e periféricas a partir da oposição da
identidade cultural e dos valores das
pessoas brancas. Na maioria das
canções feitas por Djonga, existe um
caráter coletivo e de fácil identificação
para a população negra. Nesse sentido,
contemporânea, o rap se tornou um dos
espaços onde o vernáculo negro é
usado de maneira a convidar a cultura
dominante a ouvir a escutar e, em
(hooks, 2017, p. 228).
A partir da análise realizada no
artigo, podemos perceber o modo como
os estudos retóricos e os da
argumentação nos auxiliam na
compreensão dos mais diversos tipos
de textos sociais. Além disso, os
estudos da argumentação, em conjunto
com as provas retóricas, possibilitam a
ruptura de determinados valores
vigentes da sociedade. Nesse sentido,
o presente artigo buscou demonstrar
como o rapper Djonga se fez valer da
argumentação e das provas retóricas
para descontruir o ethos pré-discursivo
em torno da figura do negro.
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185
RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.185-210, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Rimas de resistência: ideias políticas no rap de Preta Lu
Antônio Ailton Penha Ribeiro1
Victor de Oliveira Pinto Coelho2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v15i28.65561
Resumo: O artigo explora o rap como elemento cultural e político do Hip-Hop, destacando-o como
veículo de resistência e expressão das juventudes negras e periféricas. Com foco em São Luís do
Rainhas Rebeladas rapper Preta Lu, cujas letras articulam
críticas ao racismo, machismo e desigualdades socioeconômicas. Compreendemos o rap como
expressão da diáspora africana, influenciado por tradições afro-americanas e caribenhas, situando-o
como uma forma de intelectualidade subalterna. Apresentamos uma possibilidade do uso das letras de
rap
por E. P. Thompson e no par "espaços de experiência" e "horizontes de expectativa", elaborado por
Reinhart Koselleck, além da dialética histórica de Karel Kosik. Da trajetória de Preta Lu, enfatizamos
seu engajamento no Movimento Quilombo Urbano e o Núcleo de Mulheres Preta Anastácia, situando
sua militância como base para suas composições. Neste ponto, reivindicamos as discussões sobre
interseccionalidade de raça, classe e gênero elaboradas por Ângela Davis e Sueli Carneiro. O EP
Rainhas Rebeladas
feminino, crítica ao racismo estrutural, desigualdades sociais e resistência periférica. A obra de Preta
Lu é interpretada como uma práxis de resistência, que integra arte e ativismo, propondo transformações
sociais por meio de narrativas que resgatam experiências históricas e culturais marginalizadas.
Concluímos afirmando a importância de ampliar a história do rap feminino em São Luís, superando
lacunas e reconhecendo as contribuições de mulheres como Preta Lu para a historiografia e a
mobilização política.
Palavras-chave: rap feminino; ideias políticas; resistência.
Rhymes of resistance: political ideas in the rap of Preta Lu
Abstract: This article explores rap as a cultural and political element of Hip-Hop, highlighting it as a
vehicle of resistance and expression for black and peripheral youth. Focusing on o Luís do Maranhão,
Rainhas Rebeladas
1Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Maranhão
(UFMA). Mestre em História pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail:
antonio.ailton@discente.ufma.br. ORCID: https://orcid.org/0009-0006-2959-5708.
2Doutor em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-
Rio). Pós-doutorado pela Universitat de Barcelona. Docente do Departamento de História e do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). É um dos
líderes do grupo de pesquisa CNPq 'Poderes e Instituições, Mundos do Trabalho e Ideias Políticas'
(POLIMT/UFMA). E-mail: coelho.victor@ufma.br. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-3739-7748.
Recebido em 30/11/2024, aceito para publicação em 22/12/2024.
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RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.185-210, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
criticisms of racism, sexism, and socioeconomic inequalities. We understand rap as an expression of
the African diaspora, influenced by African-American and Caribbean traditions, situating it as a form of
subaltern intellectuality. We present a possibility of using rap lyrics as a historical source and, as a
ted by E. P. Thompson and the
the Movimento Quilombo Urbano and the Núcleo de Mulheres Preta Anastácia, placing her activism as
the basis for her compositions. At this point, we call upon the discussions on the intersectionality of race,
class, and gender developed by Ângela Davis and Sueli Carneiro. Th Rainhas Rebeladas
analyzed in its four tracks, highlighting themes such as female empowerment, criticism of structural
resistance, which integrates art and activism, proposing social transformations through narratives that
rescue marginalized historical and cultural experiences. We conclude by affirming the importance of
expanding the history of female rap in São Luís, overcoming gaps and recognizing the contributions of
women like Preta Lu to historiography and political mobilization.
Keywords: feminine rap; political ideas; resistance.
Rimas de resistencia: ideas políticas en el rap de Preta Lu
Resumen: El artículo explora el rap como un elemento cultural y político del Hip-Hop, destacándolo
como un vehículo de resistencia y expresión para la juventud negra y periférica. Centrándose en o
Rainhas Rebeladas
letras articulan críticas al racismo, al sexismo y a las desigualdades socioeconómicas. Entendemos el
rap como una expresión de la diáspora africana, influenciada por las tradiciones afroamericanas y
caribeñas, situándolo como una forma de intelectualidad subalterna. Presentamos una posibilidad de
utilizar las letras del rap como fuente histórica y, como marco conceptual, discutimos el concepto de
trayectoria de Preta Lu, destacamos su participación en el Movimiento Quilombo Urbano y en el Grupo
de Mujeres Preta Anastácia, situando su activismo como base de sus composiciones. En este punto,
reivindicamos las discusiones sobre interseccionalidad de raza, clase y género desarrolladas por
Rainhas Rebeladas
destacando temas como el empoderamiento femenino, la crítica al racismo estructural, las
desigualdades sociales y las resistencias periféricas. El trabajo de Preta Lu se interpreta como una
praxis de resistencia, que integra arte y activismo, proponiendo transformaciones sociales a través de
narrativas que rescatan experiencias históricas y culturales marginadas. Concluimos afirmando la
importancia de ampliar la historia del rap femenino en São Luís, superando brechas y reconociendo las
contribuciones de mujeres como Preta Lu a la historiografía y a la movilización política.
Palabras clave: rap femenino; ideas políticas; resistencia.
Rimas de resistência: ideias políticas no rap de Preta Lu
Introdução
O rap destacou-se no Brasil a
partir da produção fonográfica do final
dos anos 1980, consolidando-se na
década seguinte com a ascensão de
importantes nomes. Seu impacto é
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RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.185-210, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
evidenciado tanto pelos números
alcançados nas plataformas digitais
quanto pelos temas abordados em
suas letras. Originado de heranças
africanas, como o drum e o griot, e
influenciado pela musicalidade afro-
americana e caribenha, o rap é uma
expressão cultural da diáspora
africana, conectando diferentes regiões
do globo (Silva, 2006). Contudo, sua
produção reflete especificidades locais,
como ocorre em São Luís do
Maranhão, sem deixar de dialogar com
elementos globais e experiências
periféricas (Taperman, 2015).
Os M s, ao comporem suas
letras, atuam como pensadores de seu
tempo, expressando suas visões de
mundo e posições políticas. Contudo,
essas letras não revelam por completo
sua formação ou as origens das ideias
que defendem. Historicamente, a
história dos intelectuais tem sido
dominada por homens (Oliveira, 2018),
e no Hip-Hop não é diferente: apesar de
seu papel como ferramenta de
resistência, o movimento também
reproduz silenciamentos das mulheres
que participam de sua história. A
análise das produções femininas do rap
de São Luís permite reconstruir uma
história mais completa, incluindo as
mulheres que foram essenciais em sua
trajetória. Ignorar suas contribuições é
perpetuar uma historiografia
fragmentada e estigmatizada.
Se as mulheres são marcadas
pelas condições históricas de exclusão
e pela complexidade de suas
experiências sociais (Soihet; Pedro,
2017), devemos destacar que, em São
Luís, essas mulheres são
majoritariamente jovens negras. As
M s com esse perfil são pensadoras
que desafiam as normas, imaginando
novas formas de existência e
resistência, para utilizarmos aqui os
termos de Saidiya Hartman (2022).
Partindo dessas reflexões,
nosso objetivo central é destacar os
sentidos das letras das músicas da
rapper Preta Lu. Seu EP Rainhas
Rebeladas evidencia como as
mulheres utilizam o rap para divulgar
ideias políticas e refletir sobre
desigualdades estruturais. Assim como
os Racionais Mc's são intelectuais que
narram as experiências dos jovens
negros periféricos (Rosa, 2023), Preta
Lu, a partir de sua vivência como
mulher negra de São Luís, constrói um
panorama crítico de nossa sociedade.
Antes de destacar as letras de Petra Lu,
faremos uma abordagem sobre a
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RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.185-210, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
história do rap, destacando sua
dimensão diaspórica bem como a
importância de se levar em
consideração suas apropriações locais,
por sua vez devedoras dos fluxos e
conexões globais. Elaboramos também
uma reflexão teórica e conceitual para
destacar conceitos como o de
da relação
deve ser analisada nas letras do rap,
para melhor apreender seu sentido.
Também abordaremos o cenário
específico do Hip-Hop e do rap em São
Luís para, enfim, destacar como tais
experiências são elaboradas nas letras
de Preta Lu. Nelas, estarão imbricadas
as referências do próprio rap, as
experiências individuais e coletivas e a
apropriação engajada da história, na
perspectiva militante e feminista.
Entre a rima e a História: alguns
apontamentos sobre o rap como
documento
Alguns elementos merecem
destaque na construção da empreitada
de como se utilizar as letras de rap
como documento/fonte para a
elaboração de uma análise histórica,
bem como de se apropriar dos sentidos
do que se canta e das práticas dos
indivíduos que fazem o rap na capital
maranhense. Neste caso, Preta Lu
elabora e reelabora ideias políticas que
são defendidas e difundidas em suas
músicas, dando sentido a elas no ato de
rap
Um elemento primordial para
desenvolvermos tal tarefa é o
reconhecimento histórico das heranças
afro-americanas que o rap traz em seu
intercâmbios promovidos pelos
sistemas midiáticos ampliaram
contemporaneamente as
possibilidades de comunicação e fusão
dos experimentos musicais de origem
afro-americana e caribenha que
identificamos no rap
40).
O Hip-Hop e
(consequentemente) o rap são
elementos elaborados a partir da
diáspora africana (Miranda, 2006;
Potter, 1995; Rose, 1997). Na gênese
do que se convencionou chamar de
rap, esses autores identificaram a
influência de elementos estéticos e
práticos que atravessaram o Atlântico
em navios negreiros, sendo que tais
elementos eram utilizados antes de
interagirem com o contexto dos bairros
empobrecidos de Nova York. Nesse
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RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
musicalidade africana no Brasil e a
sensibilidade dos jovens em relação ao
rap podem ser interpretadas não como
algo circunstancial, passageiro, mas
enquanto identificação com
sonoridades afro-americanas que
2019, p. 39). Isso nos conduz a indicar
aqui uma importante conexão entre a
África, o Caribe, os Estados Unidos, o
Brasil e, consequentemente São Luís
do Maranhão. Essas compreensões
acerca da historicidade do rap são
necessárias para situarmos o rap como
elemento de sua própria construção
histórica e que carrega consigo
reminiscências de tempos remotos,
elaborados e reelaborados pelos
africanos e seus descendentes em
diáspora.
Além da compreensão da
história do próprio rap e das heranças
culturais que ele traz consigo, torna-se
necessário reconhecer que a história se
constrói como processo da vida real
dos homens e das relações entre eles
estabelecidas, entre si e a natureza
é o mundo da práxis
tentarmos alcançar as ideias
defendidas e veiculadas no rap feito por
Preta Lu, o que pretendemos alcançar,
nos termos de Kosik (1995, p. 23), é
a compreensão da realidade
humano-social como unidade
de produção e produto, de
sujeito e objeto, de gênese e
estrutura. O mundo real é o
mundo em que as coisas, as
relações e os significados são
considerados como produtos
do homem social, e o próprio
homem se revela como sujeito
real do mundo social.
Para análise do rap como
produto que divulga pensamento e
posições políticas, torna-se necessário
atentar para o itinerário que a história
dos membros dos grupos de rap seguiu
para que possamos compreender os
sentidos e significados de
determinadas posições e pensamentos
políticos. Considerando o princípio do
materialismo histórico e dialético da
totalidade e historicidade de todo
fenômeno social e alinhados aos
ensinamentos de Thompson (1981),
apontamos que entender um processo
histórico é buscar, por meio das
evidências históricas, apreender como
homens e mulheres agem e pensam
dentro de determinadas condições:
Estamos falando de homens e
mulheres, em sua vida
material, em suas relações
determinadas, em sua
experiência dessas relações, e
em sua autoconsciência dessa
190
RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.185-210, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
relações estruturadas em
termos de classe, dentro de
formações sociais particulares
(Thompson, 1981, p. 111).
Ao entendermos a experiência
na vida dos sujeitos reais, neste caso,
rap
do Maranhão, compreenderemos o
diálogo existente entre ser social e
consciência social, ou seja, é pela
experiência que os protagonistas dessa
história deliberam e reconsideram
práticas, pensamentos e (re)elaboram
os sentidos.
As pessoas não experimentam
sua própria experiência apenas
como ideias, no âmbito do
pensamento e de seus
procedimentos. [...] Elas
também experimentam sua
experiência como sentimento e
lidam com esse sentimento na
cultura, como normas,
obrigações familiares e de
parentesco, e reciprocidades,
como valores ou (através de
formas mais elaboradas) na
arte ou nas convicções
religiosas (Thompson, 1981, p.
189).
Esta noção se torna ponto chave
para a compreensão do que nos
propomos aqui, uma vez que o conceito
efeitos, influenciando na vida dos
sujeitos. No momento em que a
consciência social é condicionada pelo
ser social, sendo tarefa desta
investigação responder como essas
de rap em São Luís do Maranhão
e como eles reagem e elaboram os
sentidos dados às suas composições,
defendem e divulgam suas ideias
políticas por via da música rap.
Partindo das premissas
thompsonianas na busca pelo
entendimento das ideias políticas
presentes nas letras de rap produzidas
por Preta Lu, os ensinamentos de
Reinhart Koselleck (2006) são também
muito oportunos, embora partam de um
horizonte teórico distinto. Para este
autor, um conceito ou ideia política não
se liga apenas aos sentidos literais das
palavras, mas neles estão contidos os
sujeito se desenvolveu e através dos
quais esse sujeito também se utiliza de
conceitos e ideias segundo seu
pressuposto é de que todo conceito em
uso (e em disputa), assim como toda
ideia política, envolve relações sociais
na medida em que implica definições
Esses, no caso de nossa autora, são
191
RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
múltiplos. A identificação desses
feita nas próprias letras de rap, na
cultura material produzida pelo rap e
em seu entorno na vida cotidiana
desses sujeitos.
As letras de rap indicam bairros,
locais, movimentos sociais; que esses
sujeitos são negros, trabalhadores,
desempregados, subempregados,
estudantes, homens, mulheres; que
tiveram ou não experiências com o
mundo do crime; enfim, os sujeitos que
fazem rap, ao escrever suas letras,
apontam, descrevem e demarcam suas
experiências em suas composições,
como podemos observar nos seguintes
trechos:
Quem vem da favela é
pretinho sapeca
Levado da breca, não sou
pateta
[...]
Vai ver que tem um monte
igual a mim no Coroado
Na Liberdade, Anjo da Guarda,
na C.O.
(Jardim de Pedra Gíria
Vermelha)
Mais uma mina de atitude
revolucionária
Preta e pobre, Preta Lu, sou
do Q.I., tô na área
(Sociedade Igualitária Q.I.
Engatilhado)3
3
em 2002, ela não está disponível na internet,
mas circula em formato MP3.
As letras por si não
comprovam que aquela letra foi
letra produzida a partir de uma licença
poética. O que importa é pensar que a
força de cada letra advém de sua
expressão de sentido e, diante dela,
pensar a relação desse sentido com a
díade experiências/expectativas e,
também, o que tal expressão pode
revelar em termos dos condicionantes
sociais, ou relações estruturadas.
Deste modo, muito além das
letras, que são o principal veículo de
comunicação das ideias políticas do
rap, é necessário localizar socialmente
e historicamente esses sujeitos. Para
elaborar uma história das ideias
políticas do rap de São Luís do
Maranhão, faz-se necessário relacioná-
las a uma história social, isto é, tomar
tais ideias como construções sociais,
elaboradas a partir de experiências
individuais e coletivas.
Além da compreensão da
história do próprio rap e das heranças
culturais que este traz consigo em sua
historicidade, torna-se necessário
192
RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.185-210, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
reconhecer o contexto social dos
sujeitos que rimam e fazem scratch4,
tomando o rap como instrumento que
possibilita uma análise histórica das
ideias políticas presentes nas letras
desse gênero musical. Como já dito, as
letras de rap expressam posições e
pensamento políticos dos seus autores,
mas, somente a atenção às letras não
ilumina
pensamento político de um autor
adquire inteligibilidade na medida em
que procuramos relacioná-lo à sua
própria história, tentando perceber
como alguns aspectos dos eventos da
história que vivenciou aparecem em
Oliveira, 2003, p. 61).
Assim, para analisar o rap como
produto que divulga pensamento e
posições políticas, torna-se necessário
percorrer a história dos membros
dos/das , identificar e analisar os
espaços de experiências que esses
sujeitos estavam inseridos e/ou tiveram
contatos. Suas trajetórias e caminhos
ajudaram a forjar suas ideias e
motivaram suas letras, que trazem suas
indignações, preocupações com a
situação atual da periferia ou do lugar
4Scratch: ação de produzir sons ao "arranhar"
o disco de vinil para frente e para trás repetidas
vezes em um toca-discos.
onde vivem. Das ruas de terra para os
palcos improvisados nas mesmas
periferias, da escola pública onde
estudaram ao (des)emprego atual, as
não se resumem à sua textualidade,
sujeitos que ganham expressão em
suas letras.
O rap não é produzido apenas
para refletir o seu tempo, mas para
poder atuar, para ser uma forma de
texto não é reflexo, porém arma. Um
pensador político não procura refletir o
seu tempo e sociedade; quer produzir
efeitos. E estes ele visa através de sua
2000, p. 47). No rap
que não são utilizadas somente para o
entretenimento, mas também são
ações/intervenções politizadas no
mundo.
Cabe também lembrar que todo
texto político tem um público-alvo e, no
caso específico do rap, esse público é
a juventude das periferias. A forma do
texto, com suas gírias, pretende
193
RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
dialogar de igual para igual com essa
juventude que, na maioria dos casos,
não passou pelas mesmas relações
que os . Colocar o pensamento
político de uma forma clara e
compreensível para jovens que vivem
ou viveram o mesmo cotidiano
periférico dos/das se torna um
objetivo para os que cantam rap.
é necessário estarmos cientes
de que o significado de um
texto não existe antes dele. O
sentido passa a existir com
base nas operações mentais
inerentes ao processo de sua
produção. A linguagem
utilizada pelo autor, além de ter
significado, tem o efeito de
ações positivas: o texto traz
consigo a intenção do autor
intervir, em advertir sobre algo
que está acontecendo ou que,
em seu entender, está prestes
a acontecer (Oliveira, 2003, p.
61).
Cada letra de rap deve ser
entendida dentro de seu contexto de
produção, buscando analisar as
trajetórias e os contextos que seus
estão/estavam inseridos, pois,
assim, estas letras ganham sentido, ou
seja, somente dessa forma
compreenderemos as motivações que
levaram os pensadores políticos
hiphopianos a escreverem tais textos.
Retomando o diálogo com Koselleck
(2016), cada conceito, cada ideia
política mobilizada pelos aponta
para algo, revelam desejos, anseios,
motivações etc., isto é, nas ideias
políticas e conceitos veiculados nas
letras de rap pelos , estão contidos
ou seja, cada letra de rap, ao acionar
conceitos e ideias políticas
determinadas, engatilha possibilidades
de ações concretas (ou mesmo
apontam tais ações) que podem ser
materializadas na vida cotidiana.
Acreditamos que, por exemplo,
os spodem indicar a possibilidade
de (re)construção das identidades afro-
diaspóricas no Brasil e no Maranhão,
visando ao combate ao racismo e uma
equidade étnico-racial. Letras como as
do ClãNordestino, Motim, Gíria
Vermelha, Q.I. Engatilhado, P.R.C e
Preta Lu
Força Subversiva que defendem o
anarquismo como princípio teórico-
orientador de sua escrita e ações
políticas, têm como horizonte de
expectativa a construção de uma
revolução, seja socialista, como na
visão defendida pelos grupos
vinculados ao Quilombo Urbano, ou
anarquista, como a defendida pelos
194
RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
membros do grupo Força Subversiva,
como indicam os trechos abaixo:
Quilombo na batalha, guerreiro
e ativista
Aqui nosso Motim é cem por
cento comunista
Quilombo das rosas, quilombo
dos loucos
Resistência e militância para
segurar os pipocos
(Resistência de Favela
Motim)
Levantamos a bandeira de um
país político
Politicamente o Brasil é um
país maldito
Bandeira nunca levantei,
nunca vou levantar
Quero continuar a lutar, pra
poder derrubar
E acabar com as fronteiras,
acabar com o separatismo
Unir todos os povos
Anarco-socialismo
(Coquetéis Molotov Força
Subversiva)
Mesmo apresentando
identificação direta com as ideias
políticas marxistas e/ou proudhonianas,
a compreensão desses conceitos não
são as mesmas das veiculadas, por
exemplo, em um espaço de experiência
ligado à academia ou a setores
ortodoxos da esquerda nacional, pois
devido aos seus espaços de
experiências próprios, a (re)elaboração
desses conceitos pelos implica
alterações, decréscimos e acréscimos,
promovendo uma espécie de releitura
desses conceitos e imprimindo neles
marcas elaboradas a partir das suas
experiências em cada espaço e no
trânsito entre esses espaços onde se
construíram tais elaborações.
Todo conceito, assim como toda
ideia política, como a própria expressão
podemos apreender da leitura de
Koselleck (idem), os próprios conceitos
são em si mesmos carregados de
tensão polissêmica, estando sujeitos a
diferentes apreensões a partir de um
núcleo comum. Isso porque significam
muito mais que uma simples palavra
que supõe uma relação direta com a
, isto é, na medida
totalidade das circunstâncias político-
que que a palavra é usada (idem, p.
109), demandando inclusive conceitos
correlatos. São exemplos o conceito de
c
possuir, como conceito correlato mais
195
RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Podemos assim fazer referência ao
conceito de democracia: a partir de um
núcleo invariável, qual seja, a noção de
soberania popular, ele se abre para
designar tanto uma entidade
homogênea como uma sociedade
plural. Daí o grau de universalidade que
podendo ser
restringido a partir de concepções
ultraconservadoras ou de extrema-
direita; ou, no caso do Brasil, antes de
tudo pela nossa realidade estruturada
desde a época da escravidão, como é
tematizado pelo rap e também pelas
letras de Preta Lu, como veremos.
Gustavo Blázquez alerta para os
riscos de confiar exclusivamente nos
significados fixos apresentados pelos
dicionários, pois
O dicionário baseia-se na
suposta existência de um
sistema estável, no qual
uma correspondência entre
palavras e as coisas,
correspondência esta que, na
qualidade de sistema, não
depende das arbitrariedades
externas para o
estabelecimento da
significação: dicionário
promete trazer todas as
palavras e seus significados
e, assim tirar todas as dúvidas
(Blazquez, 2000, p.169).
Tomar as letras de rap e tentar
analisá-las e compreendê-las tendo por
base somente os dicionários não será
possível alcançar os sentidos e os
significados que os atribuem a
determinados conceitos e ideias. Tal
fato não é exclusivo do rap, tomemos
por exemplo a palavra
palavra, segundo o Dicionário Online
de Português, apresenta como sentido
comum aos mamíferos primatas,
pertencentes à subordem dos símios,
que se alimentam de frutas e de
:
palavra, em contextos específicos, é
uma expressão racista que, inclusive,
não é dicionarizada. Uma ideia política
e seus conceitos, em uma situação
concreta da vida real, vai fazer
sentido se considerarmos a palavra, o
contexto em que foi falado ou escrito e
significados abstratos e concretos
estejam associados a seus
significantes (as palavras) eles se
nutrem também do conteúdo suposto,
do contexto falado ou escrito e da
109).
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RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Apontar para as ideias políticas
contidas no rap ludovicense implica
lidar com as representações sociais,
em seu contexto vivo e concreto, uma
vez que em tais representações estão
imbricadas as dimensões sociais e
representações deriva não do que
representam, mas da própria
172), e toda representação social, não
sendo estática, também está em
disputa. A tradicional dicotomia
realidade x representação, nesta
tentativa de atingir o objetivo aqui
proposto, soará como falsa e
infundada. O que queremos afirmar é
que as representações, assim como os
conceitos e as ideias políticas, são
de
sujeitos vivem e, como formas de
representar dar sentido ao mundo,
O rap, quando veicula ou
combate determinadas ideias políticas,
expõe uma faceta individual como
determinado Mc interage com um
conceito ou ideia política específica e
coletiva quando encontramos
conceitos, ideias políticas e/ou
representações que contém sentidos e
significados para determinado grupo
dos jovens das periferias, produzindo
representações na forma de versos que
compõem as letras de rap.
A fim de alcançarmos os
sentidos e significados das ideias
políticas e os conceitos que orientam
tais ideias, é necessário, por tudo que
expusemos, analisar as
representações que compõem,
apreendendo os espaços de
experiências vivenciados pelos do
rap de São Luís e os possíveis
horizontes de expectativas latentes ou
manifestos nas letras. Levando em
conta tudo o que foi exposto, nosso
intuito agora é tratar da obra de Preta
Rainhas Rebeladas
Preta Lu(ta): intelectualidade negra
e ideias políticas de resistências no
Rainhas Rebeladas
Luciana Correa, conhecida
como Preta Lu, é uma mulher negra
que iniciou no Hip-Hop aos 14 anos,
com formação política no Quilombo
Urbano, movimento negro, periférico e
socialista de São Luís. Graduada em
História, mãe, artesã e MC desde 1999,
integrou grupos como Raio X do
Nordeste, Q.I. Engatilhado, Bando
197
RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Negro Cosme e, atualmente, Gíria
Vermelha. Referência no rap
maranhense, é membro do Núcleo de
Mulheres Preta Anastácia, criado em
1997 para combater práticas machistas
no movimento (Durans, 2014). Sua
trajetória reafirma o protagonismo
feminino e negro no Hip-Hop.
O Núcleo de Mulheres Preta
Anastácia faz parte do
Movimento Hip-Hop
Organizado do Maranhão
Quilombo Urbano e surge para
discutir e lutar pela igualdade
de condições entre homens e
mulheres, recarregando a
mente daquelas que a séculos
se sentiram subjugadas,
alienadas e usadas pelo
sistema capitalista machista
dominante em nossa
sociedade (Informativo
Anastácia, 2010).
O Núcleo Preta Anastácia foi
essencial para fortalecer as mulheres
do Quilombo Urbano, promovendo
reflexões sobre a condição feminina na
série de atividades fundamentais como
forma de reflexão da condição da
81).
Em 2016, Preta Lu lançou o EP
Rainhas Rebeladas, com quatro faixas
que abordam resistência feminina,
críticas ao racismo estrutural, ao
sistema colonial, desigualdades de
classe, machismo e padrões de gênero,
além de mobilização coletiva e
condições de vida na periferia de São
Luís. Com produção musical de Mano
Moreles e produção gráfica do Dj Naif,
as letras revelam sua posição política.
Entretanto, seu significado se
intensifica ao serem conectadas às
vivências cotidianas da rapper.
Preta Lu é militante da
organização política e cultural chamada
Movimento Hip-Hop Organizado do
organização suprapartidária,
plurirreligiosa, afro-brasileira, socialista
e revolucionária, que utiliza o Hip-Hop
através de seus elementos (rap, break,
grafitti) como instrumento de
mobilização do povo preto e pobre e
propagação de seu ideal
As letras de Preta Lu ganham
sentido ao serem conectadas ao
Quilombo Urbano, que entende o rap
como ferramenta de mobilização
política da juventude. Esse movimento
é um espaço de experiências que
influencia as composições da rapper,
refletindo suas orientações políticas.
198
RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
A Praça Deodoro, entre as
décadas de 1980 e 2000, foi um
importante palco político em São Luís,
onde o Hip-Hop local se aproximou de
movimentos sociais, partidos de
esquerda, o movimento negro e o
estudantil. Esses encontros foram
decisivos para consolidar o rap como
expressão de resistência e articulação
política na cidade. Esse contato
estabeleceu-se porque era nessa praça
que ocorriam os encontros dos
dançarinos de Break Dance (Dias,
2002; Ribeiro 2010; 2015).
Ora, se a Praça Deodoro, na
época, era o principal foco das
manifestações dos
movimentos sociais e das
esquerdas maranhenses e
sendo justamente naquele
mesmo espaço que os
reuniam-se para
possível afirmar que muitos
destes que ali se encontravam
não para o ato em si, mas para
demonstrar suas habilidades
na dança, acabaram, pois,
sendo envolvidos por aquele
clima político da época e
adquirindo certo interesse [...]
pelas causas sociais (Dias,
2002, p. 26).
Essa aproximação fez com que
os sujeitos do Hip-Hop participassem
de outras atividades realizadas por
esses movimentos, ampliando seus
espaços de experiências, possibilitando
acessos que, sem esse trânsito, não
seriam possíveis.
As relações do Quilombo
Urbano com movimentos sociais,
partidos da esquerda maranhenses,
meio acadêmico e movimento negro
inseriam seus membros em outros
espaços de experiências que
contribuíram para a formação política
de seus militantes e,
consequentemente, influenciaram no
que viria a ser escrito nas letras dos
que se organizavam no Quilombo
ora ou outra, avançaram para além das
apresentações culturais nos atos para
adentrar aos grupos de estudos dentro
das organizações do meio acadêmico e
principalmente nos movimentos
36).
O que vem à tona nas letras de
Preta Lu é fruto das experiências
nesses espaços, vinculando
diretamente as vivências da rapper com
o que é cantado nas letras de seu rap,
ou seja, o que emerge nas letras dessa
rapper é fruto das teias ou rizomas de
experiências que essa mulher
sintetizou e incorporou ao longo de sua
vida. Não sendo algo deslocado de sua
realidade, o que é cantado por Preta Lu
199
RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
é orientado pelo que vislumbra através
da organização que ela compõe,
ligando diretamente a sua escrita aos
objetivos do Quilombo Urbano. Por
outro lado, as suas letras expressam
sua condição de mulher preta e
periférica, que em seu rap, ecoa
explosivamente.
As letras de Preta Lu refletem
suas vivências pessoais e experiências
em diferentes espaços, principalmente
no Quilombo Urbano. Sua produção
musical está intimamente conectada
aos objetivos dessa organização e à
sua condição como mulher negra e
periférica, o que confere autenticidade
e força às suas composições. O rap que
ela cria ecoa suas experiências
cotidianas e coletivas, sintetizando uma
trajetória de engajamento político e
social.
Os Mc s de São Luís tiveram
contato com a Universidade,
especialmente a UFMA, antes mesmo
de alguns ingressarem como
estudantes. Participaram de eventos
promovidos por estudantes negros e
debates do movimento estudantil e
sindical (Dias, 2002; Ribeiro, 2010,
Santos, 2007). Essas experiências,
compartilhadas de forma coletiva,
influenciam tanto aqueles que
vivenciaram esses espaços
diretamente quanto os que os
acessaram por meio de trocas
informais, ampliando o repertório
político e cultural dos rappers. Assim,
as letras de rap tornam-se meios
importantes de mediação dessas
vivências e saberes.
A capa do EP Rainhas
Rebeladas reforça o engajamento
político de Preta Lu, apresentando
referências a dez mulheres que
simbolizam resistência, como Angela
Davis, Rosa Parks, Dandara dos
Palmares e Maria Aragão, além de
denunciar o feminicídio. Essa imagem
dialoga com o conteúdo das músicas e
reafirma a conexão entre sua arte e sua
vida como mulher negra periférica.
O ativismo político de Preta Lu
vai além das letras; ele está enraizado
em sua experiência cotidiana,
alinhando-se ao conceito de
que entende a escrita como expressão
da existência e das histórias
não está para a abstração do mundo, e
sim para a existência, para o mundo-
canta e vive as lutas de sua
comunidade, transformando sua
200
RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.185-210, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
trajetória em um poderoso instrumento
de resistência.
A primeira música do EP é a
Rainhas Rebeladas
Acotirene e Anastácia só pra
começar a lista
Desde o tempo das antigas
eram ativistas
Uma liderou a outra não
scalou
Mesmo com a mordaça dobrou
seu senhor
[...]
Rainha de Nzinga no combate
banto-angolano não aceitou a
vassalagem imposta a seu
povo
De igual pra igual devia ser o
tratamento
Diplomata, estrategista,
guerrilheira cem por cento.
Igual Teresa de Benguela no
Quariterê
Forjava resistência quilombola
pra se defender
Porque não aceitava ser
desumanizada
Era a linha de frente, as
revoltas organizava
Provando que lugar de mulher
é na luta
Exemplo de mulher, de
emancipada conduta
Lutaram, sonharam, ousaram
Onde tudo era de todos, se
aquilombaram
Não foram pro altar como
santa, virgem pura
Nem vista como frágil, pois
tinha a vida dura
Maria Firmina, Maria Aragão
não se espelhou nas marias
do altar da ilusão
Tem que ser mulher, pra se
manter em pé, pra encarar a
multidão é uma missão.
Ao destacar as figuras históricas
de Acotirene, Anastácia, Rainha
Nzinga, Teresa de Benguela, Maria
Firmina dos Reis e Maria Aragão, Preta
Lu exalta as mulheres que, cada uma
em seu tempo e dentro das suas
possibilidades, resistiram ao que lhes
foram impostas, demonstrando a
capacidade de liderança e
protagonismo que essas mulheres
tiveram na história.
Angela Davis (2016, p. 33)
desafiavam a escravidão o tempo
evocar referências femininas da luta e
resistência negra, tal como faz a
filósofa afro-estadunidense, aponta
para uma continuidade desse legado
que anseia a emancipação das
mulheres negras, buscando por meio
da utilização dessas referências o
fortalecimento do sentimento identitário
das/nas mulheres negras da periferia
que ouvem seu rap
envolvia ações mais sutis do que
revoltas, fugas e sabotagens. Incluía,
por exemplo, aprender a ler e a
escrever de forma clandestina, bem
como a transmissão desse
2016, p. 37). Maria Firmina dos Reis e
201
RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Maria Aragão não lideraram revoltas,
fugas ou sabotagens, mas, dentro de
suas experiências, enfrentaram o que
estava posto, cada uma à sua maneira.
O rap feito por Preta Lu se insere no
conjunto de ações de resistência que
as mulheres negras
elaboraram/elaboram ao longo de suas
histórias.
Na mesma faixa, a rapper canta
Tua opressão não me calou,
nem minhas heroínas
[...]
Tem a visão do colonizador e
a do colonizada do opressor
explorador
[...]
Quiseram esconder que no
Egito antigo tinha preto
É só se ligar na novela do
Bispo Macedo
Mas o rap dissemina contra a
tua alienação
Traz consciência, resgata
história, aponta a direção,
fazendo uma crítica ao
apagamento e silenciamento das
mulheres na história, bem como à
estereotipação das mulheres negras na
grande dia. Celebra então a
resistência feminina, atribuindo assim
uma função ao seu rap: trazer/levar
consciência, resgatar história e apontar
uma direção para a superação do
status quo vigente. Podemos dizer que
Preta Lu traz aqui a fusão do campo da
experiência com o horizonte de
expectativa, condensando em sua letra
as ideias políticas que defende e que
compartilha com o movimento de que
faz parte.
Consciência
Indomesticável
uma crítica contundente às
desigualdades sociais construídas e
consolidadas a partir da colonização; é
enfática ao denunciar o racismo, a
opressão e exclusão social sofridas
pelas mulheres negras em nossa
sociedade, como aponta os versos
dessa música:
Disposta a reagir, disposta a
atacar
Só sei que do jeito que tá não
dá pra continuar
Se você não me entende, pelo
menos respeita
A luta dos que não se entrega
e não aceita
A favela é o resultado do teu
cálculo errado
[...]
Obrigados a manter-se
adaptado
Completamente fora do padrão
exigido
Sujeito na real a confrontar o
racismo
Ver jogado a banana que eu
devolvo em rajada
Pra quem tem milhões no
bolso, racismo é piada
A tua brincadeira vira coisa
séria
Acaba em extermínio pra
quem vive na favela
Disposta a reagir, não vamos
se calar
Na luta por direitos não vamos
recuar
202
RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
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transformações da cultura")
A nossa reação exalta os
malês
Aquilombados insurgentes,
Dom Cosme também
Acreditei que não nasci pra
limpar teu chão
Você que nos roubou o direito
de sonhar
[...]
Eu poderia até ser delicada
Mas quem nasce da minha cor
a coisa é complicada
As madame de hoje era sinhá
da casa grande
O ciclo se repete no Calhau
tem os monte
É por isso que os mano tem
que entrar na ativa
Com as preta atrevida de
cabeça erguida
Conspira a favela pra não ser
açoitada
Autoestima na cor pra não ser
tirada
Se sou um lado injustiçado tua
paz eu vou tirar
Consciência indomesticável
nunca vai parar,
Nunca vai parar, nunca vai
parar, nunca vai parar...
Só tamo devolvendo as
chibatada lá no tronco
As humilhações passadas nas
casa de branco
Minha herança é a revolta
contra quem tem escolta
Contra quem quer ir pro céu
oferecendo esmola
Nós que vive sob a ditadura da
exclusão
Que é mantida pelos que são
chamados de barão
Que vive de troca de favores
com banqueiro
E com a empresa de
transporte têm o rabo preso
Pro sistema a massa
subalterna é só lixo
Que serve pra manter o seu
jardim limpo
Tudo pela ordem, cozinha
impecável
Mesmo que em sua casa não
tenha nada no armário
O busão da Vila Sarney foi
incendiado
Apesar do nome o alvo foi
errado
É nos Leões, no Renascença
onde moram os culpados
É pra lá que nosso ódio tem
que ser direcionado
[...]
Vocês que fecha os olhos pra
abandono do guri
Joga pão, joga circo, não ta
nem aí
Depois a reação pode não ser
a desejada
O que tiver de ser vai espirrar
na tua cara
Quem come lagosta de garfo e
faca
Têm costa quente, é
latifundiária
Herdou o cafezal, herdou o
engenho açucareiro
Onde meu tataravô vivia no
cativeiro
Constitui fazenda expulsando
indígenas
Sei quem vocês são, tua
gangue é conhecida
Pra vocês não tem Pedrinhas,
sequer delegacia
Teu chefe tem nome de fórum,
bota no bolso a justiça
[...]
Conspira a favela pra não ser
açoitada
Autoestima na cor pra não ser
tirada
Se sou um lado injustiçado tua
paz eu vou tirar
Consciência indomesticável
nunca vai parar,
Nunca vai parar, nunca vai
parar, nunca vai parar...
203
RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.185-210, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Com essas linhas, Preta Lu
enfatiza a necessidade de
autoafirmação e resistência das
mulheres negras no enfrentamento da
imposição de papéis sociais atribuídos
a essas mulheres em nossa sociedade.
nelas uma rejeição aos padrões
femininos eurocentrados,
demonstrando que as mulheres negras,
em nossa sociedade, diante do que
lhes são impostas, possuem autonomia
ao recusarem esses padrões e devem
atuar de modo coletivo no
enfrentamento a tais problemas.
O fato de Preta Lu ser
historiadora pode explicar como ela
relacionados ao presente, buscando
apontar uma continuidade histórica que
se manifesta na configuração de
nossas classes sociais, em que a atual
elite econômica de nosso país mantém
vínculos com o nosso passado colonial
enquanto a classe social a qual a nossa
autora pertence está diretamente ligada
aos povos que foram escravizados ao
longo do processo histórico de nosso
Consciência Indomesticável
5Ver, a propósito, o livro de Lucas Pedretti
(2024) sobre a nossa transição inacabada e o
destaque que a esse ativismo do MNU, em
que o contexto imediato da repressão e
injustiça sociais, marcado pelo racismo, era
uma exaltação à resistência e
empoderamento feminino negro, onde
se destaca a relevância de uma
consciência crítica diante da realidade
que a autora experiencia; uma
denúncia perante às desigualdades
que se estruturaram ao longo da
história do nosso país. Tal realidade,
assim estruturada, marginaliza e
estigmatiza as populações e
comunidades negras e periféricas, e
podemos lembrar que a relação entre
presente e passado escravocrata era
feita, durante a ditadura, por exemplo,
pelo Movimento Negro Unificado5. O
posicionamento ativo e uma
consciência não-domesticada para o
enfrentamento da realidade é versada
na letra: valorização da identidade, da
cultura e da história afro-brasileira
como elementos para a construção de
uma sociedade justa e socialmente
igualitária.
indomes
entendimento que é necessário a
construção de uma consciência que
não se adeque às imposições que a
articulado a uma dimensão de mais longa
duração.
204
RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.185-210, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
sociedade impõe para as mulheres
negras da periferia. Essa consciência
rimada por Preta Lu é parte da ação de
enfrentamento ao racismo estrutural,
ao machismo, ao capitalismo e à
violência estatal.
Preta Lu parece dialogar com as
proposições de Angela Davis (2016, p.
192) quando esta afirma que
o padrão estabelecido pelo
racismo, o ataque contra as
mulheres espelha a situação de
deterioração da mão de obra
de minorias étnicas e a
crescente influência do racismo
no sistema judicial, nas
instituições de ensino e na
postura de negligência
calculada do governo em
relação à população negra e a
outras minorias étnicas.
Preta Lu articula a luta de modo
interseccional, atacando racismo,
machismo e capitalismo nesta e nas
outras letras que compõem o EP
Rainhas Rebeladas
Consciência Indomesticável
coloca a favela como um fruto direto
dos movimentos das engrenagens que
movem o capitalismo; as ações que
enfrentam e combatem o status quo
vigente como por exemplo o racismo
estrutural dialogam com Angela Davis
e seu ativismo político contra o sistema
que gera e reproduz a criminalização e
marginalização dos corpos negros.
Na letra citada logo acima,
encontram-se mobilizados significados
que a autora relaciona diretamente com
a experiência dos povos africanos
escravizados, destacando as mulheres
negras, seja na casa-grande, na
condição de mulher negra escravizada,
seja nas
empregada doméstica. Nas
perspectivas apontadas por Lélia
González (1984), diante do histórico
que desta vez não vai ser numa boa,
ocorre em um sentido de revide,
Assim como o romance enquanto
gênero literário, o rap
capacidade de (re)elaborar processos
subjetivos, sociais, políticos filosóficos
vez que o rap, da mesma forma que os
romances de
um conhecimento localizado na
69). Nesse sentido, Preta Lu celebra a
negritude e a força feminina negra ao
mesmo tempo que convoca mulheres e
homens negros para a ação coletiva,
para a luta por direitos e transformação
social, apresentando uma visão de
205
RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.185-210, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
mundo forjada para a resistência e
mudanças radicais na sociedade.
Nas grades da
mente
racismo na opressão das mulheres
negras.
Capitalismo tenta nos fazer de
idiota
[...]
Resultado é revolta
[...]
Sou injuriada com essas
relações machistas,
individualistas
Nunca vou me curvar
Frágil, romântica, sensível
(não, não, não)
Isso tudo é pra fazer a gente
se calar
Diante da desigualdade que
nos explora
Domingo de descanso aqui
não cola
Mulher trabalhadora, domingo
ficção
Descanso não existe na
doméstica função.
Meu feminismo que busca por
Igualdade
Não tem nada a ver com sua
vulgaridade
Ser feliz é ter acesso à
dignidade
Pra não ser esmagada pelo
mundo selvagem
[...]
De pé sigo firme na jornada
Igual àquela lutadora
assalariada
Que no padrão da elite não se
enquadra
Nada se sustenta na
contradição
Ninguém consegue ser feliz na
submissão
Por fazer parte de um coletivo
que se reivindica socialista, a luta de
classes emerge em suas letras: Preta
Lu faz críticas à exploração do trabalho
e opressão sofrida pelas mulheres da
periferia, onde impera a exaustão das
mulheres trabalhadoras periféricas
iguais a ela, ao enfrentarem suas
jornadas de trabalho, junto com a falta
de reconhecimento social, onde
capitalismo e machismo, de mãos
dadas, colocam as mulheres nessas
condições. Nessa letra, portanto, Preta
Lu afirma que uma interseção entre
capitalismo, racismo e machismo,
estruturas que norteiam nossa
sociedade que atuam integrados para a
opressão das mulheres negras.
Preta Lu parece dialogar
diretamente com Sueli Carneiro (2011,
p. 118):
a conjugação do racismo com o
sexismo produz sobre as
mulheres negras uma espécie
de asfixia social com
desdobramentos negativos
sobre todas as dimensões da
vida, que se manifestam em
sequelas emocionais com
danos à saúde mental e
rebaixamento da autoestima.
As consequências dessas
opressões operam tanto no plano
material da vida das mulheres negras
quanto em suas nuances psicológicas,
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RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.185-210, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
impondo, assim, uma espécie de
aqui também uma crítica
dura e direta aos padrões impostos às
mulheres, pois a letra ataca os
estereótipos de feminilidade defendidos
em nossa sociedade. Preta Lu vai na
contramão da mulher delicada e
submissa, pois segundo ela, as
mulheres da periferia não se
enquadram neles. As grades da mente
a que Preta Lu se refere são um
conjunto de limitações sociais e
ideológicas, relações determinadas que
limitam ações e pensamentos dos
subalternizados, especialmente das
mulheres negras da periferia,
mantendo esses sujeitos em condições
de submissão. Machismo, racismo e
capitalismo são apresentados na letra
como instrumentos articulados de
dominação que objetivam controlar os
sujeitos que moram na periferia. A
autora propõe a ruptura com essas
estruturas incentivando a reflexão e
ação coletivas para a transformação
social.
Aborto social
Esta é uma crítica à precarização das
políticas públicas do Estado nos bairros
periféricos de São Luís, à exclusão
social, à solidão da mulher negra. É
também um questionamento dos
padrões familiares tradicionais e da
hipocrisia moral conservadora, como
apontam os trechos abaixo:
Família desmantelada
Insegurança alimentar
No outro dia não tem nada pra
comer
Sem esperança no que há de
ser
Não foi acostumada a projetar
seu proceder
O olhar de quem condena
bem-dita a sentença
Jamais vai entender teu ciclo
de decadência
A família é o apoio: pai, mãe,
primo, tia
Mas quantas não
perambularam sem saber
aonde ia
Nessa situação a quem insiste
em dizer
Que você teve na mão a
opção de escolher
Hipocrisia, arrogância de quem
se diz defender
A família como pilar social não
sabe responder
Cê já viu família sem precisar
de teto
Três refeições, escola, creche,
sequer posto médico
É crescei, multiplicai, pra
polícia abater
Meu motivo de alegria você
devia ser
[...]
Cadê o paraíso que eu quero
padecer
Cadê aquele lar pra rainha eu
poder ser
O sonho de família pra quem
tem a pele preta a fila é bem
maior
A solidão lhe espreita, aquele
porta-voz da moral patriarcal
Neopentecostal, anacronismo
feudal
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RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.185-210, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Tem filha patricinha que aborta
em clínica clandestina
De herança determinada nos
acordo entre família
Assim é mole, é fácil, mas nós
aqui não tem
Enquanto eu vou fazer os
corre, cê fica com ninguém
No mundo aonde cada um
vale o que tem
Torturado pelo Estado vai
parar na Febem
Sem babá, parquinho, maçã
ou Danone
Nos campinho de terra vai
esquecer a fome
Ei Super Nani, desce aqui na
minha quebra
E nos ensina a administrar a
miséria
Preta Lu utiliza o rap como
ferramenta para mobilizar e reivindicar
a emancipação das mulheres negras
periféricas, desafiando estruturas
sociais opressoras. Em sua letra,
evidencia a continuidade histórica da
exclusão social feminina, apontando o
racismo estrutural e a colonização
como pilares que ainda hoje
marginalizam os empobrecidos. Ela
retrata as precárias condições de vida
das mulheres negras da periferia de
São Luís, denunciando os impactos da
pobreza e do descaso estatal no
acesso a políticas públicas
fundamentais.
Segundo Sueli Carneiro (2011,
tiveram sua experiência histórica
marcada pela exclusão, discriminação
o
silenciamento impostos a essas
mulheres. A rapper critica a hipocrisia
da elite conservadora, que condena
publicamente o aborto, mas o pratica
clandestinamente em seus rculos.
Sua análise revela que as normas
sociais o aplicadas de forma
desigual, controlando os corpos das
mulheres negras enquanto preservam
privilégios das elites.
portanto, simboliza a exclusão e a
negação de direitos básicos às
populações periféricas. A negligência
estatal perpetua a marginalização,
condenando os mais pobres a uma vida
de privações e vulnerabilidades sicas
e emocionais.
Considerações Finais
Preta Lu, uma mulher negra e
periférica, rima os desafios enfrentados
cotidianamente por mulheres racial e
socialmente iguais a ela. Suas
composições, para além de simples
músicas, funcionam como instrumento
de mobilização e denúncia e resgata a
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RIBEIRO, Antônio; COELHO, Victor. Rimas de resistência: ideias políticas
no rap de Preta Lu. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos
em Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.185-210, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
história do povo negro como forma de
reivindicar e configurar identidades.
Rainhas Rebeladas
revela experiências da vida real da
autora, veiculando conceitos, ideias e
posicionamentos políticos
(re)construídos, (re)elaborados e
(re)significados a partir dos espaços de
experiências que ela estava inserida,
direta ou indiretamente. A periferia, o
Movimento Hip-Hop Organizado do
a universidade possibilitaram a ela
vivenciar espaços diferentes,
orientados/organizados cada um
segundo suas especificidades,
promovendo diálogos e tensões que se
revelam, uns de modo explícito e outros
timidamente nessa obra.
Ao relacionar política, história e
arte, Preta Lu, de modo consciente, isto
é, partindo das experiências oriundas
dos espaços vivenciados por ela e
posicionando-se em relação a eles,
atribui um sentido aos seus textos, ou
seja, essa teia de experiências forja e
consolida sua posição de ativista e
intelectual da periferia, fazendo do seu
rap uma arma da resistência da mulher
negra da periferia de São Luís. Preta Lu
transcende o rap como arte e o coloca
no rol de uma práxis de resistência que,
ao se opor às estruturas de poder da
nossa sociedade, veicula e defende
novas possibilidades e caminhos para a
(re)existência para as mulheres negras
da periferia. As composições de Preta
Lu, enfim, demonstram a a importância
de ampliar a história do rap feminino em
São Luís, superando lacunas e
reconhecendo as contribuições de
mulheres como Preta Lu para a
historiografia e a mobilização política
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211
COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
"O Nordeste que você não viu": notas sobre Hip-Hop, axé-music e identidades
juvenis em meio a antinegritude da Capital Afro
Gabriela Costa1
Gustavo Rossi2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v15i28.65546
Resumo: Este artigo tem como objetivo refletir sobre as implicações da consolidação do axé-music
enquanto cultura juvenil e música baiana hegemônica em relação ao Hip-Hop, bem como suas
implicações para a formação de identidades juvenis dos anos 1990. Tendo em vista que o axé e o Hip-
Hop emergem na cidade de Salvador no mesmo período, investigamos, por meio de revisão
bibliográfica, trabalho de campo com observação participante e entrevistas a grupos como OPANIJÉ,
o rapper Aspri, do grupo RBF, o Uh!Neto e João Merín. Inicialmente, a primeira geração Hip Hopper
buscou se afastar de referências locais que marcam a estética da baianidade, como religião de matriz
africana, indumentárias e música percussiva, inspirando-se de forma mais assídua na estética
estadunidense e sudestina, uma vez que a baianidade caracteriza também o movimento axé. Em um
segundo momento, após a primeira década dos anos 2000, os rappers adotaram outro posicionamento,
trazendo para o centro de seus trabalhos o cotidiano e a estética soteropolitanos.
Palavras-chave: Hip-Hop; axé-music; antinegritude; identidade; baianidade.
"O Nordeste que você não viu": notes on Hip-Hop and Identities amidst anti-blackness in the
Afro Capital
Abstract: This article aims to reflect on the implications of the consolidation of axé music as a youth
culture and hegemonic Bahian music in relation to Hip-Hop, as well as its implications for the formation
of youth identities in the 1990s. Considering that axé and Hip-Hop emerged in the city of Salvador in the
same period, we investigated, through bibliographical review, fieldwork with participant observation and
interviews with groups such as OPANIJÉ, the rapper Aspri, from the group RBF, Uh! Neto and João
Merín. Initially, the first generation of Hip-Hoppers sought to distance themselves from local references
that mark the aesthetics of Bahianness, such as religion of African origin, clothing and percussive music,
drawing more inspiration from American and Southeastern aesthetics, since Bahianness also
1Mestranda nos Programas de Pós-Graduação em Antropologia Social e Demografia da Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: costagabrielaconsultoria@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0009-0001-1983-5927.
2Doutor em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Docente do
Departamento de Antropologia da UNICAMP. Foi Professor Visitante no Departamento de Spanish and
Portuguese Languages and Cultures da Universidade de Princeton. Coordenador do Bitita (Núcleo de
Estudos Carolina Maria de Jesus - IFCH/Unicamp. E-mail: lrossi@unicamp.br. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-7096-9966.
Recebido em 29/11/2024, aceito para publicação em 22/12/2024.
212
COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
characterizes the axé movement. In a second moment, after the first decade of the 2000s, rappers
adopted another position, bringing the daily life and aesthetics of Salvador to the center of their work.
Keywords: Hip-Hop; axé music; anti-blackness; identity; bahian identity.
"O Nordeste que você não viu": notas sobre Hip Hop y identidades en medio de la anti-negritud
de la Capital Afro
Resumen: Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre las implicaciones de la consolidación de
la música axé como cultura juvenil y música bahiana hegemónica en relación al Hip-Hop, así como sus
implicaciones para la formación de identidades juveniles en la década de 1990. Considerando que el
axé y el Hip-Hop surgieron en la ciudad de Salvador en el mismo período, investigamos, a través de
revisión bibliográfica, trabajo de campo con observación participante y entrevistas a grupos como
OPANIJÉ, el rapero Aspri, del grupo RBF, Uh!Neto y João Merín. . Inicialmente, la primera generación
del Hip Hopper buscó distanciarse de las referencias locales que marcan la estética de la bahianidad,
como la religión, la vestimenta y la música de percusión de base africana, inspirándose más en la
estética estadounidense y del sudeste, ya que la bahianidad también caracteriza al movimiento axé. En
un segundo momento, después de la primera década del 2000, los raperos adoptaron otra posición,
llevando la vida cotidiana y la estética de Salvador al centro de su trabajo.
Palabras clave: Hip-Hop; axé-music; anti-negritud; identidad; baianidad.
"O Nordeste que você não viu": notas sobre Hip-Hop, axé-music e identidades
juvenis em meio a antinegritude da Capital Afro
Salvador, onde a pele habita a
alma
a cada grito um novo karma,
na minhoca de metal
propaganda enganosa sobre o
carnaval
maior tecnologia é o homem e
o tambor
Salvador, onde o ouro habita a
pele
e as coisas vestem os
caboclos
onde o mal tem nome de
jogador e joga bem
com as armas que tem. Divide
espaço com o coronel
que herdou a maldade como
troféu.
A SEMOP rouba dos
trabalhadores ambulantes
que são artistas. Conhecem
cada esquina, sustentando
suas famílias.
"Semop II"
de João Merín (2022)
Introdução
Cartazes sobre o carnaval
permeavam toda a cidade de Salvador
desde janeiro, neles, estampado o título
"Capital Afro". Ao longo de sua história,
a capital baiana recebeu muitos nomes:
Cidade do Salvador, segundo o
professor Milton Santos; Cidade da
Música, nos trabalhos sobre arquivos,
memória e museus. Propomos, aqui,
que apesar de todos esses nomes, nos
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COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
atentemos às memórias subterrâneas
(Pollak, 1989) que nos ajuda a
compreender as dissimulações, os
maus gostos e as contradições que
compõem a história de Salvador, cuja
produção musical e estética funciona
como um eixo para pensar as formas
essas memórias incidiram sobre a
construção de identidade da juventude
Hip Hopper soteropolitana dos anos
1990.
O objetivo deste artigo é refletir
como a antinegritude, que se manifesta
na estética da baianidade e do axé-
music, incidiu sobre as identidades dos
jovens que construíram e vivenciaram o
Hip-Hop de Salvador ao longo dos anos
1990, mas também a forma como se
deu a virada de posicionamento desses
jovens a partir da primeira década de
2010.
Tem-se em vista responder à
pergunta: quais foram as implicações
da consolidação do axé-music
enquanto cultura juvenil e música
baiana hegemônica em relação ao Hip-
Hop em Salvador? Esta pergunta e os
3Essas reflexões em torno da baianidade, da
música baiana e do axé foram fomentadas a
partir das entrevistas feitas durante o trabalho
de campo, mas o serão centrais na
dissertação. O que é justificado pelo fato de que
o mestrado de Gabriela Costa é voltado para a
objetivos deste texto nascem a partir de
inquietações que foram fomentadas
pelas rebarbas do material de campo3
da pesquisa de mestrado de Gabriela
Costa e de seu trabalho de campo, em
Salvador, onde vem realizando
entrevistas com os rappers Aspri, do
grupo Rapaziada da Baixa Fria (RBF),
Uh!Neto e João Merín, e com membros
dos grupos como OPANIJÉ4e Simple
gem, em diálogo articulado
com a imersão nos discos desses
rappers interlocutores e de artistas
chaves da música baiana. De antemão,
vale sinalizar que existe uma relação
estabelecida entre axé-music e o que é
chamado de música baiana.
Sabe-se que o campo de
estudos em Hip-Hop é relativamente
jovem no Brasil e ainda caminha para
sua consolidação. A forma como a
cultura Hip-Hop chega e nasce em
Salvador é muito parecida com outros
lugares do país que contam com
vasta bibliografia (Hilton, 2021). Ou
seja, bailes blacks e soul music eram o
rolê dos jovens, e filmes como Beat
trajetória do rapper João Merín, que não é da
primeira geração do Hip Hop de Salvador.
4Organização Popular Africana Negros
Invertendo o Jogo Excludente.
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COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Street (1984) e Wild style (1983) foram
os primeiros vetores de disseminação
de informações sobre o Hip-Hop
(idem), bem como cumpriram o papel
de serem as primeiras referências para
jovens que viriam a se forjarem como
Hip-Hoppers. Contudo, o que diferencia
Salvador de outros territórios do Sul e
Sudeste do país são fatores como: 1) o
perfil demográfico da cidade; 2) o modo
como assimilação e miscigenação
cultural foram mobilizadas e
implementadas no projeto de cidade
antinegra5; e 3) o axé-music nascido na
no mesmo período que o Hip-Hop e que
se consolida enquanto cultura juvenil
hegemônica. Portanto, a cidade de
Salvador e sua cultura Hip-Hop
carregam diversas particularidades que
ainda não foram devidamente
estudadas. O que propomos, portanto,
é investigar quais foram as implicações
epistemológicas e culturais destas
particularidades de Salvador ao longo
da história do movimento Hip-Hop, e
produzir contribuições para esse
5Destaque para o papel da Faculdade de
Medicina nos debates em torno de raça, negros
brasileiros e identidade nacional no final do
século XIX e começo do século XX. Nina
Rodrigues, por exemplo, trabalhou na
Faculdade de Medicina, conquistou seguidores
e esteve profundamente interessado na
campo de estudos olhando para além
do eixo hegemônico Centro-Sul.
Tais questões nos remetem a
uma antiga discussão da Antropologia,
mas que tem recebido pouca atenção
nos estudos de Hip-Hop brasileiros: ao
reconhecer São Paulo e Rio de Janeiro6
como cenas hegemônicas ou mesmo
rap nacionalmente), artistas de outros
territórios e que experimentam
diferentes grooves e referências
cotidianas acabam sendo interpretados
como particulares ou regionais.
Algo que tem sido discutido
sob a ótica de gênero quando
tensionamos o que estamos chamando
de "rap" e por que o uso da
classificação "rap feminino" - que a
entender que o universal do rap são os
homens e as mulheres que cantam rap
são o particular. existem pesquisas
também que buscam defender que raps
produzidos a partir de referências de
religiões de matriz africana são "Afro
raps" e não apenas "rap" (Cruz, 2022).
Contudo, como argumenta Rose
construção do imaginário racial da Bahia e de
Salvador. Rodrigues foi um dos agentes
fundadores da concepção de Antropologia
Brasileira.
6Em alguns casos e aspectos poderíamos
incluir RS e Brasília também.
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COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
(2022), compreender que o rap e,
consequentemente, o Hip-Hop, nascem
a partir de matrizes culturais afro-
diaspóricas faz com que não tenha
relevância essa diferenciação
conceitual (afro rap ou rap).
Entendemos, portanto, que é
preciso descentralizar do Sudeste o
que pode ser compreendido como Rap
Nacional. Afinal, sendo o Brasil um país
com dimensão continental, seria
inconcebível afirmar que apenas dois,
dos seus vinte e seis estados, fossem
capazes de representar uma estética
nacional sobre o que é o Hip-Hop ou
sua história no país. Uma abordagem
que se faz, portanto, a contrapelo de
categorias de nomeação veiculadas e
implicadas pelo poder da indústria
cultural e musical, e que por isso
mesmo chama a atenção para a
importância de pesquisadores e
a(r)tivistas não corroborarem de forma
acrítica com os critérios normativos
utilizados para legitimar o que chamam
7A 34a Reunião Brasileira de Antropologia, que
aconteceu em 2024 na Universidade Federal
de Minas Gerais, contou com o GT 93: Ritmos
negros e periféricos: Hip-Hop, Música e
Identidades, e nele uma pessoa apresentou
sua pesquisa dizendo que escolheu Emicida
como uma representação do Rap nacional
devido a sua expressividade. Neste contexto,
foi colocado questões como: que
expressividade é essa do Emicida? Quais
(ou o que pode ou não ser chamado) de
rap e Hip-Hop. A bibliografia dos
estudos de Hip-Hop no Brasil ainda se
concentra de forma persistente em São
Paulo e olha para o Hip-Hop de outros
territórios como regionalistas7. Se o
Hip-Hop diz respeito às miudezas das
vivências cotidianas, é necessário
reconhecer que o cotidiano não é
universal, e sim, particularizado pelas
dinâmicas próprias do território. Com
esta contextualização, convido as
leitoras e leitores a olharem, neste
momento, para Salvador (BA).
Sugiro pensarmos identidades
negras a partir do emaranhado
complexo do contexto histórico que
ambienta as existências negras em
Salvador, bem como as culturas juvenis
que estão sendo privilegiadas neste
artigo, sob a inspiração teórica do
afropessimismo: abordagem que
compreende a fratura colonial
territorializada nas plantations
enquanto um marco epistemológico
indicadores foram utilizados para chegar a essa
conclusão? Ou seja, se não é exposto o que
respalda a escolha, o que dá a entender é que
a representação, ou a cara, do rap nacional é
um homem cis do Sudeste porque sim. Em
outras palavras: o Sudeste seria, neste caso, o
universal do Hip-Hop brasileiro.
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COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
que despossui o negro e o define
enquanto nada. Para tal perspectiva,
marcar as plantations enquanto tempo-
espaço de despossessão negra
significa também pensar a dimensão do
capitalismo moderno enquanto um
marco de exploração da terra, da vida,
de pessoas e o experimento de
monocultura em larga escala mais letal
da história do planeta (Ferdinand, 2022;
Wynter, 1971a).
Dizer que o negro é despossuído
de si significa dizer que o processo
colonial e a escravização tiveram
implicações subjetivas, psicológicas,
ontológicas e epistemológicas, bem
como culturais e Antropo-lógicas
(lógicas humanas) nas pessoas negras.
A despossessão diz respeito ao
processo de transformar o negro em
commodity, bem como suprimir sua
agência, seu direito as miudezas
sensíveis existenciais e introduzir em
seu inconsciente uma autovisão de
inferioridade em relação ao Sujeito
Branco (Fanon, 2007).
A despossessão, portanto,
significa não possuir a si mesmo e, por
isso mesmo, virar coisa, porque o negro
na plantation é commodity do homem
branco, o qual reivindica seu direito
exclusivo à sujeitude, de possuir a si
mesmo e ao Outro, bem como para
nomear e representar o mundo e a
humanidade (Homem). A antinegritude,
por sua vez, é a produção subjetiva e
antinegritude extrapole o próprio
racismo (Vargas, 2020) e seja relevante
também na abordagem afropessimista.
É neste sentido que o conceito
de groove faz-se central neste artigo
pois à mesma medida que falamos
sobre despossessão, falamos também
sobre reinvenção de sentidos de
humanidade, para os quais a cultura é
uma dimensão privilegiada para refletir
sobre as possibilidades inventivas da
negritude de refazer-se enquanto
gente, como sugerem Sylvia Wynter
(1971a, 1971b) e Osmundo Pinho
(2021). Para Wynter, em Black
Metamorphosis (1971a), reinventar a
humanidade negra requer (re) invenção
cultural e rebelião, pois a humanidade
é reinventada a partir da cultura, fato
que diz respeito à reivindicação das
sensibilidades. O groove é uma forma
de se rebelar contra o
desmantelamento cognitivo
monológico dessas plantations que
despossuem o negro de si, lançando-o
na ordem da natureza e, portanto,
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COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
destituindo-o de cultura e do direito às
dimensões sensíveis que apenas a
cultura tem poder de produzir. Groove,
portanto, no entender de Wynter, seria
o ritmo, as formas das ondas sonoras,
a sonoridade que mexe com o
sentimento das pessoas, que nos toca
na dimensão mais íntima da nossa
existência fomentando sentimentos
diversos, como raiva, felicidade,
esperança, coragem e rebelião.
a música, portanto, não é
apenas uma invenção que
subverte e desfaz o senso
comum de trabalhos sobre
racismo; música, produção
musical e a relação entre
música e groovar sica,
juntos, demonstram políticas
subversivas de histórias
compartilhadas, atividades
comunitárias e possibilidades
colaborativas nas quais é
preciso que todos participem
do conhecimento (McKittrick
apud Wynter, 2021, p. 163)8.
Tais considerações sobre a
fratura colonial das plantations e o
processo de despossessão negra, são
convites de inspiração para uma
reflexão a respeito do lugar do negro
(Gonzalez, 1982; Carneiro, 2023;
Nascimento, 1978:2016) e sobre as
identidades negras no contexto
8Tradução livre. Opto por utilizar "groovar" no
português, em vez de ouvir ou escutar
(música), pois entendo que, para Wynter, existe
brasileiro e, em particular, o baiano dos
anos 1990 a partir do axé music e do
Hip-Hop. Desde a pré-abolição,
intelectuais e políticos se engajaram
em reflexões em torno da identidade
brasileira. Com o trabalho de Gilberto
Freyre, a identidade brasileira e a arte
nacional tomaram outras dimensões
que se pretendiam apaziguadoras das
desigualdades raciais. Tem-se como
hipótese que Salvador é um micro-
retrato do Brasil, tendo em vista que foi
a primeira capital e o principal porto do
país por mais de 200 anos, é o território
que acomodou de forma mais profunda
a cultura negra e afro-brasileira. A
consolidação da baianidade por meio
da literatura com Jorge Amado, da
música com Dorival Caymmi e das
artes plásticas com Carybé, nos dão
também pistas para compreender os
processos de introdução de
epistemologias negras positivadas
(apesar de, em alguns casos,
idealizadas ou estereotipadas), bem
como de suas práticas culturais
(Queiroz, 2019).
uma dimensão mais íntima e sensível em to
groove que escutar ou ouvir não dão conta.
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COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
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Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Inventividade negra e
sobrerrepresentação branca
Até final dos anos 1980 os
blocos afro trabalhavam de forma
voluntária e tocavam o ano todo sem
receber cacs (Guerreiro, 2000). Os
modos de habitar a cidade de Salvador
mantinha um diálogo muito íntimo com
os modos autorizados de festejar e ser
feliz na cidade, especialmente porque
corpos negros historicamente foram
despossuídos pela escravização, e no
pós-abolição mantiveram-se
despossuídos de cidadania pois os
festejos da abolição eram entendidos
como imoralidade, paixões e
incapacidade de partilhar dos valores
civis. Portanto, até o boom do axé-
music haviam carnavais negros e
carnavais brancos e pós axé, pode-se
dizer, em alguma medida, que esta
segregação racial pretendeu ser
dissolvida a partir de antigas
estratégias de "miscigenação"
(Albuquerque, 2009).
Sobre os carnavais brancos dos
anos 1980, Jonga Cunha (2008) no
livro "Por trás dos tambores" descreve
o nascimento do axé a partir do que foi
sua experiência enquanto jovem e
músico desta época. O autor narra que
é como se a inventividade da música
baiana tivesse tido um hiato durante a
ditadura militar, mas que os rumores da
cidade indicavam que algo grande
estava no forno (p.32). Através do
curso de percussão que a UFBA
organizou com mestres de diversos
países da América Central, músicos da
cidade com diferentes perfis foram
introduzidos à música percussiva e a
instrumentos que, no Brasil, foram
introduzidos como particulares dos
blocos afro e axé music, como timbau e
bongôs.
É interessante como Cunha
deixa claro que até metade desta
década, o carnaval de Salvador não era
veiculado e tampouco fazia parte do
circuito turístico Rio-São Paulo, bem
como o autor ressente uma suposta
ressaca criativa durante a ditadura, o
que nos leva a crer que ele não
reconhece a inventividade dos blocos
afro, que começam a ser fundados nos
anos 1970.
em 1982, blocos passaram a
ser formados por herdeiros de uma
certa elite e classe média consolidada,
com músicos cujo perfil incluía
experiências na Europa e concursos de
bandas desde o ensino médio em
escolas particulares. Neste sentido,
Traz-os-montes, bloco e banda que
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COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Jonga Cunha foi integrante e fundador,
formou-se no começo desta década
com agenda garantida para fora da
Bahia. Com tais informações, nos
interessa compreender o que no
mercado da música que para algumas
bandas foi tão fácil se lançar, enquanto
para outras bandas e blocos afro não foi
e não é, até hoje. A Guerreiro afirma:
Antes de a produção musical
dos blocos afro penetrar na
indústria fonográfica, o
mercado baiano estava
dominado pela música
carnavalesca produzida pelas
bandas de blocos de trio
elétrico, que podem ser vistas
como contraponto à produção
musical dos grupos negros. E
embora houvesse uma
inevitável troca de
informações, o meio musical de
Salvador, até 87, estava
segmentado em espaços
musicais negros e brancos, e
enquanto os grupos brancos
estavam no show biz, gravando
discos, fazendo shows,
compondo a programação das
rádios, os grupos negros
estavam midiaticamente
invisíveis, na periferia do
mundo da música (p.119).
A segregação racial do carnaval
tornava-se mais evidente nas avenidas
9Brancopia segundo Paterniani (2022) e Alves
(2020) diz respeito ao sonho branco de
seguridade em meio a uma cidade em que
existem pessoas negras. Neste sentido, a
brancopia é o tempo todo forjada, construída
por meio de muros altos e com arames
farpados, ou sistemas de segurança high-tech,
com os blocos de trio elétrico privados,
sobretudo porque diz respeito à
privatização de uma festa popular, mas
também e principalmente por se tratar
da privatização do principal espaço
público que todos acessam, cidadãos
ou não: a própria rua. Este formato de
bloco de trio consiste, basicamente, em
um trio elétrico no centro com a banda
deste bloco, foliões caracterizados com
abadás acompanhando o trio e, ao
redor dos foliões do bloco, encontram-
se os cordeiros, profissionais mais mal
pagos do carnaval, segurando as
cordas que delimitam o espaço dos
foliões do
público não pagante que vai curtir o
carnaval do lado de fora das cordas do
bloco, acompanhando o trio estando
mais distante. Ou seja, mimetizam nas
formas de habitar o espaço urbano e o
carnaval uma brancopia9. Guerreiro
indica os conflitos que giram em torno
destes blocos de trios privados, pois
mesmo que não de forma explícita,
existiam critérios raciais para aceitar
seus afiliados.
ou por meio de outras estratégias de vigilância,
policiamento e segregação, que delimitam onde
e quem pode circular por determinados
espaços urbanos.
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COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Os blocos afro e blocos de trio
elétrico se diferenciam entre si, além
dos critérios raciais, a partir dos modos
de ocupar a cidade. Ademais, a
indústria fonográfica tinha muitas
limitações relacionadas à capacidade
de captar a sonoridade dos tambores
com qualidade, até porque neste
momento tinha-se menos tecnologia do
que atualmente. Os instrumentos
percussivos ainda não tinham passado
por modificações, importantíssimas na
otimização das apresentações dos
blocos, na forma de captar som, e
também na facilitação do transporte.
Em Salvador, Wesley Rangel (WR) foi
o primeiro a gravar samba-reggae em
estúdio, em 1987, com o disco "Egito,
Madagascar", do Olodum, e este
lançamento foi um importante marco
para a música baiana.
Evidentemente muitas trocas e
circulações já existiam, mas a inserção
do samba-reggae na indústria
fonográfica foi crucial para o que viria a
ser o axé-music. A burguesia e as
classes média e alta brancas
soteropolitanas, que até então não
consumiam e não eram atraídas pelo
carnaval negro, voltaram seus olhos
para a inovação harmônica casada com
o samba-reggae para forjar, então, uma
nova forma de fazer música. Razão
pela qual Goli Guerreiro (2010) irá dizer
que o axé é um ritmo mestiço, que
emerge no encontro de dois carnavais,
o negro e o branco.
Contudo, temos de fazer
ressalvas acerca deste encontro:
primeiro, porque ao longo de sua
pesquisa, Guerreiro evidencia que
havia circulação de artistas brancos
socialmente abastados interessados no
que os blocos afro estavam produzindo,
mas que não estavam monetizando.
Segundo, porque para falarmos sobre
encontros, é necessário pensar sobre
suas assimetrias de poder. Se as
bandas de trio elétrico tinham agenda
de shows e recebiam cachês enquanto
os blocos afro eram marginais até
mesmo no contexto de Salvador, não
podemos afirmar que não existiam
desproporcionalidades de poder em
relação a raça e classe. O axé-music,
de fato, parece ter se prestado a um
discurso racializado conciliador de
carnavais, ao mesmo tempo em que
inaugurou novas formas de racismo,
despossessão e marginalização
intelectual e inventiva de artistas
negros.
O a alcançou prestígio
nacional e se consagrou como música
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COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
popular brasileira nos anos 1990, se
levarmos em consideração cópias de
discos vendidos, mobilidade dos
artistas e rentabilidade na indústria
fonográfica, alcançando inclusive
canais fechados. Evidentemente este
processo de consolidação do axé foi
permeado também de duras críticas de
artistas da MPB, como Dorival Caymmi
e Carlos Lyra (Guerreiro, 2010). A
consolidação do axé no mercado da
música também situou Salvador
enquanto roteiro turístico durante o
carnaval. Conflitos de raça e classe se
atualizaram e o carnaval ficou cada vez
mais policiado: em 29 de junho de
1990, por meio da Lei 4.103, funda-
se a Secretaria Municipal de Ordem
Pública (SEMOP). Dentre as
atribuições óbvias da SEMOP, o rapper
João Merín10 salienta também a
vigilância dos vendedores ambulantes,
o que renova as formas de vigilância da
população negra na cidade antinegra.
Festa de largo, vendendo
produto
Chamado ambulante, eu sou
sub-humano
Semop tomou meus bagulhos,
10 João Merín é um rapper de Salvador, mas
não é da primeira geração do Hip Hop. Ele
começou a se aproximar do movimento na
primeira década dos anos 2000, mas os
trabalhos solos mais emblemáticos datam em
2018.
bebê
eu só queria te dar um pisante.
Eu achando que ia sair com a
gata,
fui saqueado, isso é tão
frustrante
"Semop"
de João Merín (2019)
Pós-axé, pode-se dizer, em
alguma medida, que a segregação
racial do carnaval pretendeu ser
dissolvida ou, no mínimo, amenizada a
partir de elaborações generalizantes
acerca da música baiana,
desdobrando-se posteriormente em
certas noções sobre a singularidade da
baianidade; isto é: uma suposta
singularidade baiana por meio da
centralidade da cultura afro-brasileira e
artes inspiradas nas religiões de matriz
africana, expressadas pela literatura,
culinária, indumentária essencializada
na figura das baianas de acarajé,
capoeira, e, mais pra frente, por meio
do axé. As experimentações sonoras
do axé-music eram profundamente
inspiradas pela música afro-
percussiva11 e adicionavam
instrumentos harmônicos com a
percussão. O argumento de Guerreiro é
11 Vários artistas como Sarajane afirmam que
gostavam de circular pelos ensaios dos blocos
2010).
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COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
que o axé uniu os carnavais branco e
negro, desde a composição sonora até
as formas de habitar a cidade, e por
isso nasceu como um ritmo mestiço,
miscigenado.
Neste mesmo contexto em que o
axé se consolidou nacionalmente, para
os artistas negros, o mercado
internacional foi mais receptivo por
meio da world e ethnic music.
Margareth Menezes, por exemplo, foi a
primeira artista a gravar "Faraó
Divindade do Egito" (1987), música que
trouxe para o Olodum a prestigiosa
marca de inventores do samba-reggae
e que colocou o bloco em um lugar de
relevância - o que, em tese, colocaria a
cantora em condições para ser um
sucesso nacional da música baiana,
como Ivete Sangalo e Daniela Mercury.
Contudo, no cenário nacional, os
discos de Margareth Menezes não
tiveram grandes números de vendas,
com poucos shows, diferentemente de
suas conterrâneas brancas, como
12 Dados retirados do Spotify em maio de 2024.
13 Mestre Jackson foi percussionista do Olodum
bem no comecinho do bloco e narra que esteve
ao lado de Neguinho do Samba, seu cunhado,
durante o processo criativo do que viria a ser o
samba-reggae. É um mestre de percussão
muito expressivo na música baiana.
14 Mestre Jorjão Bafafé é um dos maiores
mestres da percussão soteropolitana vivo. Foi
Daniela Mercury, que chegou a vender,
no mesmo período, 1 Milhão de cópias
do disco O Canto da Cidade (1992). Em
uma linguagem mais recente para
medir a adesão do público, no Spotify
Ivete Sangalo tem 4.8Mi de ouvintes
mensais; Daniela Mercury, 490,8 mil; e
Margareth Menezes apenas 162,3 mil
ouvintes mensais12. No cenário
internacional, com a world music, em
contrapartida, Margareth Menezes
ganhou grande destaque e
reconhecimento (Guerreiro, 2010).
Ademais, mestres da música
percussiva como Jackson13 e Jorjão
Bafafé14 tiveram um ganho de
reconhecimento expressivo e tiveram
grandes contribuições para a
consolidação do axé, mas existem
outras questões complexas em torno
da contribuição de artistas negros15.
Axé, Hip-Hop e a Bahia que não era
para sua gente
fundador do Afoxé Badauê, do bloco Ókánbì, e
teve expressiva contribuição na banda do Ara
Ketu, inclusive circulando internacionalmente
por meio dos arranjos de Jimmy Cliff.
15 Parte desta discussão Gabriela Costa está
tentando desenvolver em sua pesquisa de
mestrado que deve ser defendida em 2025.
223
COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Apesar do axé ter nascido
enquanto um gênero musical
underground, consolidou-se em pouco
tempo como mainstream da cultura
juvenil soteropolitana, contribuindo
para obliterar culturas juvenis que não
se organizavam pela chamada "música
baiana": a galera do rock16 e das
músicas urbanas, que tinham como
referência a cena musical
estadunidense como o movimento dos
bailes black inspirados no miami bass,
original funk, funk carioca, rap, entre
outros17. Com este repertório, o
movimento Hip-Hop da capital afro
nasce no final dos anos 1990,
buscando ao máximo diferenciar-se do
axé, no qual identificavam uma música
baiana performada e materializada por
corpos brancos. A juventude desta
primeira geração do Hip-Hop, como
OPANIJÉ e Rapaziada da Baixa Fria
(RBF) dialogavam, inicialmente, com
referências estadunidenses,
influenciados por filmes como Beat
street (1984) que ganhava grande
circulação na época. Mas também a
partir de referências dos próprios bailes
e rap sudestinos, especialmente do Rio
16 Galera do rock é um conceito utilizado pelos
interlocutores e contempla tanto artistas como
apreciadores do gênero musical.
de Janeiro e São Paulo. O mais
próximo de influências locais das quais
os grupos se aproximavam era o
reggae.
Outros aspectos da dinâmica de
desenvolvimento do rap e da economia
nacional ditavam também as
possibilidades (ou impossibilidades) de
consumo de Hip-Hop em Salvador,
como, por exemplo, o fato de que
grande parte dos estúdios que
estavam gravando e circulando discos,
fitas e CDs de rap se concentravam no
Rio de Janeiro ou em São Paulo, assim
como as principais lojas de discos que
conseguiam importar os lançamentos
da cena estadunidense. No mais,
grande parte dos grupos e rappers de
Salvador entrevistados mencionam
Racionais MC's, Facção Central,
Thaíde e DJ Hum, MV Bill, Gabriel o
pensador e Marcelo D2 como artistas
que marcaram suas trajetórias.
Desde 1979 os bailes black
tocavam muito original funk e miami
bass (Sansone, apud. Hilton, 2021), até
que em meados dos anos 1990 o funk
carioca passou a ser uma das
referências no repertório dos DJs,
17 Informações coletadas por meio de entrevista
com o grupo de rap OPANIJÉ.
224
COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
assim como as músicas românticas
(Hilton, 2021), que preparavam o
terreno (e as pistas) para os casais
apaixonados. O rap, segundo um dos
membros do grupo OPANIJÉ, era
absolutamente underground, assim
como o rock, sendo que ambos ficavam
sob o guarda-chuva da música
alternativa, entendendo "alternativo"
enquanto tudo aquilo que não fosse
vista a movimentação de artistas e
produtores do axé-music em torno da
construção do que é música baiana e a
disputa pela baianidade enquanto
marcador de identidade territorial (e
regional), OPANIJÉ nos indica que
estava sendo elaborado um imaginário
de "uma Bahia que não era pra gente" -
para as pessoas negras.
Ademais, o advento da
soberania do axé fez com que a
primeira geração de Hip-Hoppers
buscasse ao máximo se diferenciar
deste gênero, que, para além da
música, estava consolidando a
percepção nacional sobre o que é a
música baiana e baianidade. A fim de
recusar uma essencialização da
música baiana em torno do axé e falar
a mesma linguagem do Hip-Hop que
estava sendo realizado em São Paulo e
Rio de Janeiro, o rap produzido na
Bahia muito se inspirava na forma de
fazer rap de artistas e grupos como MV
Bill, Gabriel O Pensador, Facção
Central e Racionais MC's. No entanto,
o contexto musical de Salvador fazia
com que o rap tivesse que disputar
lugar de música eletrônica, uma vez
que grande parte dos grupos e artistas
se apresentavam com samples ou com
o instrumental gravado. A correlação
criada em torno do axé enquanto
sinônimo de música baiana, e do rock,
rap e outros gêneros musicais como
-se dizer,
para o Hip-Hop de Salvador e do
Recôncavo um problema de forma e
não de conteúdo. E para disputar
narrativas políticas em torno de
identidades negras e juvenis, o pan-
africanismo emergiu, neste cenário,
enquanto contracultura da juventude
Hip-Hopper.
De 2010 para cá, grupos da
primeira geração do Hip-Hop baiano
começaram a repensar suas
referências, como por exemplo o RBF
(Rapaziada da Baixa Fria), Fúria
Consciente e OPANIJÉ que, em 2020,
começaram o projeto "Ancestralidade
Musicalizada", lançando músicas que
se baseiam em religiões de matriz
225
COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
africana: na composição das letras, na
indumentária dos rappers, na capa dos
EPs e na composição melódica que
mescla atabaques e sons eletrônicos.
Uh! Neto, filósofo, doutor em educação
e rapper de Cruz das Almas (BA),
relatou em entrevista que, quando era
mais jovem, sua música tinha uma
abordagem mais parecida com o
Facção Central, mas ele se sentia
esgotado quando acabava de se
apresentar; após algumas orientações
ancestrais, se reencontrou a partir de
uma outra forma de fazer rap, trazendo
para o centro de suas referências a
vivência do interior baiano e a sua
relação com a ancestralidade e as
religiões de matriz africana. Simples
Rap'ortagem brinca com temáticas e
diferentes levadas, se apresentam em
banda e transitam por vários assuntos
e formas de rimar, e João Merín é
assertivo a respeito das suas
influências sonoras do pagodão, dos
blocos afro e da música eletrônica.
No final das contas, no mesmo
território e/ou região (levando em
consideração o recôncavo baiano
também), encontra-se diferentes
formas de fazer e viver o rap, ora
dialogando e buscando brechas no
mercado, ora recusando-o; diferentes
referências, pontos de partidas, flows,
vivências e elaborações sobre o que é
(e o que pode ser) música(s) baiana(s).
Todos os grupos e rappers aqui
mencionados, pode-se afirmar, não
estão interessados em apenas disputar
os sentidos de música baiana, mas
também disputam as questões raciais e
as referências afro-brasileiras que
rodeiam o debate sobre música baiana
enredado, atualizado e reinventado em
uma nova roupagem pelo axé.
Identidades, cultura popular e
músicas negras
Tendo em vista culturas
nacionais e o debate em torno da
identidade, Hall (2019) traz para o
centro do argumento o discurso
enquanto um dispositivo de poder que
costura as diferenças, transformando-
as em unidades. Em Cultura Brasileira
e Identidade Nacional, Renato Ortiz
(1999: 2006) nos dá pistas para
compreender tanto o processo de
constituição da cultura brasileira e
identidade nacional quanto a
importância do debate acerca de
identidades negras. Uma vez que falar
em cultura brasileira é falar sobre
poder, Ortiz defenderá que "a
identidade nacional está
226
COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
profundamente ligada a uma
reinterpretação do popular pelos
grupos sociais e à própria construção
do Estado brasileiro" (p.8).
Em outras palavras, o Estado se
constitui à luz de relações assimétricas
de poder, articulando-se em torno da
pretensão de suprimir diferenças
intrarregionais e demarcando suas
diferenças em relação às identidades
de outros países. Processo que foi
levado à máxima no final do século XIX
e início do século XX com intelectuais
brasileiros preocupados com a
transformação da colônia em nação.
Mariza Corrêa nos algumas pistas
sobre este contexto pós-abolição, tão
central para compreender as
articulações entre identidade nacional e
produção de conhecimento sobre as
relações raciais brasileiras:
Em termos teóricos, a ciência
da época tinha preparado
terreno onde o racismo se
acomodava muito bem. Nina
Rodrigues parece apenas ter
levado às últimas
consequências os supostos
científicos de seu tempo. Quem
sabe por ter tentado comprovar
empiricamente as crenças de
sua geração é que recebeu
críticas dos que preferiam
18 Importante mencionar que Nina Rodrigues
atuou na cidade de Salvador e seu trabalho
mais emblemático (O fetichismo do Negro
brasileiro) foi feito em terreiros de candomblé.
deixar ao futuro a solução dos
problemas que enunciaram, ou
que tratavam eles num nível
menos científico (Correa, p. 67,
1998)18.
No contexto de pós-abolição, o
negro aparece como fator dinâmico na
vida social e econômica brasileira, e
marca a reavaliação de sua posição
pelos intelectuais e produtores de
cultura que, até então, no Romancismo,
vinham "privilegiandos" narrativas tão
(românticas quanto racistas) em torno
dos indígenas. A questão racial,
portanto, passa a ser associada ao
progresso da humanidade, e o negro e
o indígena são compreendidos como
entraves civilizatórios. Ortiz prossegue:
"a temática da mestiçagem é neste
sentido real e simbólica; concretamente
se refere às condições sociais e
históricas da amálgama étnica que
transcorre o Brasil, simbolicamente
conota as aspirações nacionalistas que
se ligam à construção de uma nação
brasileira".
Em meio a este contexto do final
do século XIX, estudos em torno de
raça antropológica19 estavam em alta
19 Ortiz apoia-se em Silvio Romero para afirmar
que esta noção de raça antropológica diz
respeito a parâmetros biológicos e qualidades
psicossociais das nacionalidades.
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COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
em meio aos recentes Estados-Nação
que buscavam consolidar suas
identidades pelas Américas e Caribe.
As ideias sobre mestiçagem emergem
enquanto salvação para a degeneração
das características do povo
afrodescendente e aqui que chamo a
atenção para o trabalho de Gilberto
Freyre. Ortiz irá afirmar:
A ideologia da mestiçagem,
que estava aprisionada nas
ambiguidades das teorias
racistas, ao ser reelaborada
pode difundir-se socialmente e
se tornar senso comum,
ritualmente celebrado nas
relações do cotidiano, ou nos
grandes eventos como o
carnaval e o futebol. O que era
mestiço, torna-se nacional. [...]
Ao retrabalhar a problemática
da cultura brasileira, Gilberto
Freyre oferece ao brasileiro
uma carteira de identidade
(2006, p. 41 e 42).
Freyre, portanto, não pensou o
Brasil a partir da raça antropológica,
mas sim, a partir da cultura, como Franz
romantizada e equivocada) as
qualidades do mestiço, produzindo um
distanciamento entre biológico e social.
Neste sentido, torna-se nebuloso as
fronteiras do pertencimento racial e
inaugura-se uma identidade nacional
mestiça que, em outras palavras, passa
a estimar práticas culturais da
população negra e indígena, sem
deixar de marginalizar e produzir
vulnerabilidades para essas
populações. Utilizando palavras de
Ortiz, poderíamos dizer que o desafio
para o movimento negro é pensar como
retomar manifestações negras que
estão "marcadas com o signo da
brasilidade" (p.44, 2006).
Retomo a ideia de que Salvador
pode ser um micro-retrato do Brasil
para pensarmos conflitos raciais,
identidades e mestiçagem. Podemos
afirmar que a construção da baianidade
tem como pano de fundo o mesmo
emaranhado de ideias e pretensões
que a própria brasilidade, uma vez que
"o mito das três raças é neste sentido
exemplar, ele não somente encobre os
conflitos raciais como possibilita a
todos se reconhecerem como
nacionais" (idem). Um exemplo de
como os conflitos raciais são
acomodados sob a ideia de baianidade
pode ser evidenciado a partir da música
"É d'Oxum", de Gerônimo (1985), que à
época, já estava experimentando o que
viria a se consagrar como axé:
Nessa cidade todo mundo é
d'Oxum
Homem, menino, menina,
mulher
Toda essa gente irradia magia
[...]
228
COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
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Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
A força que mora n'água
Não faz distinção de cor
E toda cidade é d'Oxum
Ao afirmar que toda a cidade é
d'Oxum e que a própria orixá não faz
distinção de cor, o cantor tensiona e
tenta dissolver a dimensão negra das
religiões de matriz africana. O mesmo
poderíamos dizer da música "O canto
da cidade", quando Daniela Mercury
(1992) afirma "a cor dessa cidade sou
eu". E o cantor Saulo Fernandes (2023)
que comunica também esta baianidade
em sua recente música "Bahia Batuque
Orixá":
Sua boca de Rio Vermelho
A Bahia solar no espelho
Amaralina
O sorriso Barra de Ondina
A menina, maré, melanina
Baiana [...]
Deus me livre de não ser
baiano
De não ter carnaval todo ano
De chegar o verão e eu ficar
sem lhe ver
Pula, pipoca
Pula bonito
Quem me pariu?
Bahia, batuque, orixá
Algo inerente ao Hip-Hop no
Brasil é a íntima ligação com a soul
music e a influência dos bailes black no
nascimento do Hip-Hop brasileiro. Ortiz
traz a seguinte provocação:
Quando os movimentos negros
recuperam o soul para afirmar
sua negritude, o que se está
fazendo é uma importação de
matéria simbólica que é
ressignificada no contexto
brasileiro. É bem verdade que
o soul não supera as
desigualdades de classe ou
entre países centrais e
periféricos, mas eu diria que de
uma certa forma ele "serve"
melhor para exprimir a angústia
e a expressão racial do que o
samba, que se tornou nacional
(2006, p.44).
Quando digo provocação, refiro-
me a ideia de que o samba parou de dar
conta da afirmação da negritude,
angústia e expressão racial, como Ortiz
sugere. Discordamos, nesse sentido,
mas chamamos a atenção para a
particularidade de cada cidade do
Brasil que em maior ou menor grau
produz continuidades e
descontinuidades a partir das heranças
culturais locais, bem como renova seus
aparatos e estabelece novas conexões.
No mais, o argumento nos serve para
refletir sobre a identidade Hip-Hopper
construída em Salvador no que diz
respeito a importação de matérias
simbólicas exteriores ao território,
tendo em vista as materialidades locais
da música baiana e da baianidade que
já não lhe cabiam.
Aspri (RBF) relembra que nos
anos 1990, no início do movimento Hip-
Hop em Salvador, a galera usava touca
e camiseta preta no sol do meio dia de
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COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Salvador, e indica como foram muito
influenciados pelo o que estava sendo
produzido no sudeste, se afastando
fortemente da sica baiana. O grupo
OPANIJÉ afirma, por outro lado, que o
axé se consolidou como cultura juvenil
mainstream, de modo que não cabiam
outros gêneros musicais produtores de
diálogos com a juventude não tivessem
espaço. Neste sentido, o rap,
classificado sob o guarda-chuva de
música alternativa, dividia lugar com a
galera do rock e da música eletrônica,
onde tudo que não fosse sica baiana
era, portanto, música alternativa. Em
um cenário em que a música era um
vetor de forjar identidades e
humanidades, a "soberania do axé"20,
para aquela geração de jovens, parecia
significar um afastamento com as
práticas culturais locais; fato que
justifica também a maior atenção para
o sul, sudeste e cenário internacional.
Uma vez que "todas as
identidades estão localizadas no
espaço e no tempo simbólicos" (Hall, p.
41, 2019), a baianidade reivindicada e
monopolizada na sobrerrepresentação
20 Esta expressão foi utilizada pelo grupo e por
este motivo a citamos entre aspas.
21 Pensando aqui estética enquanto conteúdo
discursivo, roupas que utiliza em shows e
branca no axé, significou para a
juventude negra Hip Hopper um
afastamento do que lhes era comum no
que diz respeito ao território e ao
discurso. Contudo, a partir de 2010,
estes mesmos rappers começam a
experimentar novas formas de fazer
rap. Aspri, por exemplo, em nossa
entrevista, apontou para a importância
de descentralizar as referências
estéticas do Hip-Hop do eixo Sul-
Sudeste para ampliar o olhar para
outras culturas populares e referências
do Norte e Nordeste, especialmente
para compreender que existem muitas
formas de fazer rap.
Uh! Neto salienta que o Hip-Hop
teria o objetivo de reconectar as
pessoas, de atentar para si e para a
ancestralidade negra. Elementos que
em sua carreira revelam essas
mudanças de posicionamento, no
sentido de buscar mobilizar novas
linguagem a partir de sua vivência no
interior do recôncavo baiano e nos
aprendizados de terreiro em suas
composições e estética21. O grupo
OPANIJÉ grava, em 2012, o disco
referências que mobiliza em videoclipes e
capas de música ou álbuns.
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COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
"Encruzilhada", que é fortemente
marcado pelo candomblé e pelas
referências sonoras soteropolitanas,
com a presença de Letieres Leite22, por
exemplo. O ápice deste movimento
aconteceu durante a pandemia, quando
os grupos RBF, OPANIJÉ e Fúria
Consciente23 se juntam e começam o
projeto "Ancestralidade Musicalizada",
no qual eles gravam raps e produzem o
videoclipe inspirados, principalmente,
pelas vivências de terreiro e pelo pan-
africanismo.
Considerações finais
Tendo em vista os conflitos
raciais particulares do território de
Salvador, mas os debates acerca da
identidade nacional e cultura brasileira,
foi interesse dos autores refletir sobre
como os jovens de Salvador forjaram
suas identidades em meio aos
dissensos e cinismos da cidade
antinegra e sobrerrepresentação
branca, explorando o groove da música
negra. Este movimento descrito como
22 Letieres Leite foi músico e educador e
expressivamente reconhecido na cidade de
Salvador a partir do estudo da sica afro-
percussiva e dos diálogos transatlânticos, em
especial, com a música cubana. Nasceu em
1959 e faleceu em 2021.
23 Fúria Consciente é um grupo de rap que
dialogou e dialoga muito com a galera de
afastamento e reaproximação após
quase 20 anos é particular desta
primeira geração de Hip-Hoppers e não
necessariamente se desdobra nos
jovens de 2024, até porque a nova
juventude está se forjando a partir de
um outro contexto e com um outro
aparato de referências. João Merín, por
exemplo, em 2019 inaugura seu estilo
que mescla pagodão e rap, em 2022
lançou um disco de rap e música
percussiva, com foco especial para o
samba-reggae.
Diante deste contexto de
afastamento e aproximação, vale
destacar ainda os debates que
perpassam, por exemplo, a moralidade
conservadora e machista incrustada no
Hip-Hop do final do século XX. Em
algumas entrevistas, os rappers
destacam, por exemplo, como o
dançarino Jacaré24 era visto de forma
negativada por parte do Hip-Hop por
ser um homem gay. Segundo o rapper
Aspri (RBF):
Então, eu tive a oportunidade
de conversar com ele (o
Salvador, mas que na verdade é de Lauro de
Freitas.
24 Edson Gomes Cardoso dos Santos, vulgo
Jacaré, foi dançarino do grupo de pagode É o
Tchan! e foi expressivamente reconhecido
como um grande artista, coreógrafo e
dançarino a partir de meados dos anos 1990.
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COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
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Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Jacaré) sobre essa questão
artística e o que ele curtia e ele
curtia rap. Ele ainda ia pros
shows de rap, em paralelo ao
Tchan. Aí, ele me deu uma
camisa do Racionais MCs, né?
Eu achei louco assim, porque a
relação entre o rap e a música
baiana era bem rachada por
conta da influência que nós
tivemos do sul na nossa
música, da parte do Brasil do
sul na determinação de como a
gente deveria se comportar no
norte ou no nordeste. Então,
essa parte regional influenciou
muito. A gente bloqueava, a
gente achava que não existia
diálogo, o que menosprezava a
outro tipo de cultura, outra
forma de fazer arte. Então, a
arte, a partir do momento que
eu estava conversando com
ele, eu percebi que se as
bandas, os grupos de Salvador,
ou da Bahia, ou do Nordeste,
tivessem um diálogo maior com
outros tipos das culturas
populares, outros tipos de
dança e tudo, a gente estaria
hoje em outro patamar artístico
e também com
profissionalismo em alta, mais
ainda, e até com poder
aquisitivo maior em relação a
grana mesmo, entendeu?
Discussões em torno de
masculinidades, sexualidades e
moralidades não foram o foco deste
artigo, mas é importante destacar que
certamente essas questões
possibilitariam outros caminhos para
discussões sobre identidades. Não
propomos aqui nenhuma reflexão
totalizante sobre o contexto musical da
Salvador dos anos 1990.
Ademais, diante do contexto de
sobrerrepresentação branca e
consolidação do a como música
baiana, os Hip-Hoppers dos anos 1990
assumem a postura disruptiva e miram
seus olhares em outras referências que
contemplem corpos negros, como o
reggae e o rap do sul e sudeste. Neste
contexto em que os blocos afro eram
também latentes, esses jovens do Hip-
Hop também apreciavam música
percussiva e participavam destes
circuitos, mas não se utilizavam destas
referências ainda. na primeira
década dos anos 2000 uma
mudança de posicionamento devido a
diálogos em torno do panafricanismo e
da vivência com as religiões de matriz
afro-brasileira. O que significou
também uma mudança na cena
soteropolitana.
Por fim, sobre a capital afro que
é uma cidade antinegra, vale
retomarmos o trabalho de Osmundo
Pinho (p. 234, 2021): "como Christen
Smith descreve, em Salvador, vivemos
paradoxo, ou dualidade, muito
semelhante à celebração, exaltação da
cultura negra e ao genocídio do povo
negro".
232
COSTA, Gabriela; ROSSI, Gustavo. "O Nordeste que você não viu": notas
sobre Hip-Hop, axé-music e identidades juvenis em meio a antinegritude
da Capital Afro. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.211-233, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
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Florianópolis. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.234-259, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
-
possibilidades de uma economia criativa alternativa a partir das experiências
do movimento Hip-Hop em Florianópolis
Alice Hübner Franz1
Eloise Livramento Dellagnelo2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v15i28.65571
Resumo: O presente artigo tem como objetivo central analisar as práticas artísticas e organizativas do
movimento Hip-Hop em Florianópolis e refletir sobre como essas práticas podem contribuir para a
construção de uma economia criativa alternativa na cidade, tendo como base a perspectiva real ou
substantiva de economia proposta por Polanyi. Nos últimos anos tem se fortalecido, em Florianópolis,
um discurso em torno da economia criativa no qual a perspectiva de cultura está fortemente orientada
para uma ideia de mercado, a qual tende a excluir e marginalizar setores criativos, incluindo o setor
cultural, que não possuem um alinhamento à essa lógica. Buscando alcançar o objetivo deste artigo,
realizou-se um estudo de caso sobre o movimento Hip-Hop em Florianópolis, com a coleta de dados
por meio de observação participante, 24 entrevistas semiestruturadas e análise de documentos. A partir
da análise feita acerca das práticas artísticas e organizativas do movimento Hip-Hop em Florianópolis
foi possível identificar elementos que apontam para uma outra forma de economia, que pode ser vista
como uma perspectiva alternativa de economia criativa, distinta da perspectiva dominante atualmente
promovida na cidade. As práticas do Hip-Hop, por outro lado, oferecem uma visão distinta sobretudo
por se aproximarem da noção substantiva de economia, destacando aspectos como a importância da
solidariedade, da coletividade, do apoio mútuo, da confiança e da possibilidade de autossustentação.
Palavras-chave: Hip-Hop; economia criativa; economia; alternativa econômica.
"We don't just want money, We want money, fun and art" - thinking about possibilities for an
alternative creative economy through the experiences of the Hip-Hop movement in Florianópolis
Abstract: This article aims to analyze the artistic and organizational practices of the Hip-Hop movement
in Florianópolis and reflect on how these practices can contribute to the construction of an alternative
1Doutora em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integrante do
Observatório da Realidade Organizacional, SC (UFSC). E-mail: alicefranz1@gmail.comm. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-8475-2178.
2Doutora em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina. Docente do
Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Santa Catarina
(PPGAdm/UFSC). Pesquisadora do Observatório da Realidade Organizacional, SC (UFSC). E-mail:
eloiselivramento@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7586-0302.
Recebido em 01/12/2024, aceito para publicação em 22/12/2024.
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- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
Florianópolis. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.234-259, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
recent years, a discourse surrounding the creative economy has gained strength in Florianópolis, where
the cultural perspective is strongly oriented towards a market-based idea that tends to exclude and
marginalize creative sectors, including the cultural sector, that do not align with this logic. To achieve
the objective of this article, a case study was conducted on the Hip-Hop movement in Florianópolis, with
data collection through participant observation, 24 semi-structured interviews, and document analysis.
From the analysis of the artistic and organizational practices of the Hip-Hop movement in Florianópolis,
it was possible to identify elements pointing to another form of economy, which can be seen as an
alternative perspective of creative economy, distinct from the dominant perspective currently promoted
in the city. Hip-Hop practices, on the other hand, offer a distinct vision, particularly by aligning with the
substantive notion of economy, highlighting aspects such as the importance of solidarity, collectivity,
mutual support, trust, and the possibility of self-sustainability.
Keywords: Hip-Hop; creative economy; economy; economic alternative.
"No solo queremos dinero, queremos dinero, diversión y arte" - pensando en las posibilidades
de una economía creativa alternativa a partir de las experiencias del movimiento Hip-Hop en
Florianópolis
Resumen: Este artículo tiene como objetivo analizar las prácticas artísticas y organizativas del
movimiento Hip-Hop en Florianópolis y reflexionar sobre cómo estas prácticas pueden contribuir a la
construcción de una economía creativa alternativa en la ciudad, basándose en la perspectiva real o
sustantiva de la economía propuesta por Polanyi. En los últimos años, se ha fortalecido en Florianópolis
un discurso en torno a la economía creativa, en el que la perspectiva cultural está fuertemente orientada
hacia una idea de mercado, que tiende a excluir y marginalizar los sectores creativos, incluido el sector
cultural, que no se alinean con esta lógica. Para alcanzar el objetivo de este artículo, se realizó un
estudio de caso sobre el movimiento Hip-Hop en Florianópolis, con recolección de datos a través de
observación participante, 24 entrevistas semiestructuradas y análisis de documentos. A partir del
análisis de las prácticas artísticas y organizativas del movimiento Hip-Hop en Florianópolis, fue posible
identificar elementos que apuntan a otra forma de economía, que puede ser vista como una perspectiva
alternativa de economía creativa, distinta de la perspectiva dominante actualmente promovida en la
ciudad. Las prácticas del Hip-Hop, por otro lado, ofrecen una visión distinta, sobre todo por acercarse
a la noción sustantiva de economía, destacando aspectos como la importancia de la solidaridad, la
colectividad, el apoyo mutuo, la confianza y la posibilidad de autosostenibilidad.
Palabras clave: Hip-Hop; economía creativa; economía; alternativa económica.
possibilidades de uma economia criativa alternativa a partir das experiências
do movimento Hip-Hop em Florianópolis
Introdução
Nos últimos anos, a temática da
economia criativa tem estado em
evidência, figurando tanto no discurso
político a partir de iniciativas
governamentais e de organismos
internacionais, sendo traduzidas em
diferentes práticas, inclusive de
políticas públicas, quanto no discurso
acadêmico, sendo discutida em
236
- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
Florianópolis. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.234-259, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
pesquisas e estudos nacionais e
internacionais. Enquanto países
desenvolvidos e em desenvolvimento
conomia uma
alternativa para superar os desafios
impostos pelo processo de
desindustrialização e pela necessidade
de se reposicionar economicamente, o
debate acadêmico concentra-se em
propor discussões que ampliem o
entendimento acerca do que significa a
economia criativa, seus impactos,
limites e implicações nos mais variados
contextos.
Muito do destaque conferido à
economia criativa advém, sobretudo,
da crescente valorização e integração
de valores culturais e simbólicos em
diferentes bens e serviços passíveis de
serem comercializados, além da
expansão dos setores econômicos
culturalmente orientados, os quais vêm
assumindo um papel estratégico no que
tange ao crescimento e
desenvolvimento econômico e social
em diferentes países (Romão, 2017;
Loiola; Miguez, 2015).
Como consequência, as
indústrias da informação, da cultura e
da comunicação, em conjunto, passam
a ser percebidas enquanto motor do
crescimento econômico, culminando
em uma estratégia econômica
orientada a fomentar os diferentes
setores industriais nos quais a
criatividade desempenha um papel
central (Tremblay, 2011). O discurso
que permeia a economia criativa é o de
que a mesma traz novas oportunidades
para o reposicionamento e crescimento
de países que passaram pelo processo
de desindustrialização, ou até mesmo
aqueles que buscam o
desenvolvimento através de recursos
locais, encontrados em abundância,
como é o caso da cultura. São
exaltados seus números em torno da
contribuição para a economia, geração
de empregos e criação de renda. A
economia criativa, portanto, é
defendida como a resposta ideal para
aqueles contextos que querem atrair
produtividade, oportunidades, construir
um ambiente inovador, inclusivo,
diverso, criativo, empreendedor.
Apesar da visão positiva,
construída por parte de seus
defensores, o que se percebe é a
conformação de uma arena complexa,
heterogênea, não neutra, que articula
diferentes atores e interesses que, a
partir de suas ações, buscam significar
e preencher os sentidos acerca da
economia criativa, além de definir quais
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- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
Florianópolis. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.234-259, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
os setores que dela fazem parte
(Jeffcutt, 2000). A economia criativa,
nesse contexto, acaba por se constituir
em um grande guarda-chuva, que
envolve tanto o conjunto das produções
artísticas e culturais, quanto o conjunto
das produções voltados à tecnologia e
informação e das criações funcionais,
como a arquitetura e o design (Madeira,
2014).
Destarte, nesse novo marco da
economia criativa, a cultura passa a ser
entendida como mais um setor
econômico incluso no cerne da
economia de mercado, ofuscando e
excluindo concepções de cultura que
não estão, de alguma forma,
subordinadas às condições
econômicas (Castro-Higuieras, 2016;
Schlesinger, 2017). Nesses termos,
existe um interesse na cultura e em
suas manifestações,
predominantemente enquanto esta
abre possibilidades para geração de
alguma forma de resultado que possa
ser passível de apropriação e
capitalização pela economia e que,
consequentemente, resultem em
índices positivos que signifiquem
alguma forma de desenvolvimento
econômico (Parada, 2016). Porém,
parte-se neste artigo, do argumento de
que as atividades desenvolvidas pelo
setor cultural abrangem uma variedade
de práticas e dimensões econômicas
que não estão, necessariamente,
imersas na economia de mercado, seja
pelo conteúdo que está sendo
produzido ou pelas características de
quem produz (Canedo, 2019; Garland,
2012; Parada, 2016).
Tendo em vista essas
considerações e inspirado na
perspectiva real ou substantiva de
economia proposta por Polanyi (1976)
a qual pode relacionar a ideia de
economia a toda forma de produção e
distribuição de riquezas (França Filho,
2007) este artigo busca analisar as
experiências artísticas e organizativas
do movimento Hip-Hop em
Florianópolis e refletir sobre como
essas práticas podem contribuir para a
construção de uma economia criativa
alternativa na cidade.
O Hip-Hop, desde sua origem e
ao longo de seus cinquenta anos de
existência, tem se consolidado como
um movimento cultural e político que,
através de suas diversas
manifestações, assume um caráter
contestatório e promove uma reflexão
social crítica. Dentre as críticas à ordem
social mobilizadas pelo movimento,
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- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
Florianópolis. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.234-259, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
tem-se reflexões acerca da exclusão
social, da opressão racial, das distintas
formas de violência e das
desigualdades econômicas, revelando
as condições de vida desiguais
enfrentadas por muitas pessoas,
especialmente entre as populações
pobres e negras (Souza, 1998;
Martinez; Franco, 2021; Silva, 1999).
Dessa forma, o Hip-Hop vem se
constituindo enquanto um movimento
que incorpora elementos que
constantemente desafiam e
questionam as hegemonias, sejam elas
de classe, raciais, culturais ou
econômicas. Tais aspectos fortalecem
o Hip-Hop enquanto uma forma de
expressão de resistência social e
cultural, crítica ao status quo e às
formas de arte dominantes. Pelo seu
caráter crítico e contestatório,
frequentemente o movimento articula
um posicionamento contrário à ideia da
cultura como mercadoria, no qual
prevalece a perspectiva de que a
produção, distribuição e consumo
cultural deve se adequar a um modelo
econômico que privilegia o mercado.
Perspectiva essa que predomina no
âmbito das construções em torno da
economia criativa, as quais se
expandiram significativamente nos
últimos anos, inclusive na cidade de
Florianópolis.
Na capital catarinense, tem se
fortalecido um discurso em torno da
economia criativa no qual a perspectiva
de cultura está fortemente orientada
para uma ideia de mercado, sendo
valorizada a partir de seu potencial em
gerar resultados econômicos e agregar
valor ao desenvolvimento e
crescimento da cidade. Na medida que
essa construção discursiva acaba se
expandindo, ela tende a marginalizar
setores criativos, incluindo o setor
cultural, que não possuem um
alinhamento à essa lógica. Isso resulta,
conforme ressaltam Silva e Teixeira
(2021), em uma tensão que se
manifesta entre a organização da
produção artística e cultural do Hip-Hop
e aquilo que os agentes econômicos e
do mercado anseiam, justamente por
não levarem necessariamente sua
atividade fim como algo que envolve a
busca pela lucratividade.
Este estudo adota uma
abordagem qualitativa, sendo um
estudo de caso focado no movimento
Hip-Hop de Florianópolis. A pesquisa
foi conduzida entre dezembro de 2022
e dezembro de 2023, com coleta de
dados por meio de observação
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- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
Florianópolis. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.234-259, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
participante (em reuniões, grupos de
WhatsApp e eventos culturais), 24
entrevistas semiestruturadas e análise
de documentos (notícias, publicações
em redes sociais, conversas em grupos
de WhatsApp). A análise dos dados foi
realizada com base na análise do
discurso, uma vez que todas as
práticas sociais têm um caráter
discursivo. A análise do discurso refere-
matérias-primas e informações
(Howarth; Stavrakakis, 2000, p. 6).
Economia criativa considerações
sobre a relação entre cultura e
economia
Ainda que a cultura esteja cada
vez mais presente nas diversas esferas
da vida social é, contudo, na sua
relação com a dimensão econômica
que tem havido um crescente interesse,
sendo objeto de atenção privilegiada de
estudos científicos, bem como de police
makers (Miguez, 2007). É, conforme
Miguez (2007), a partir desse ponto de
vista que deve ser compreendida a
emergência da economia e das
contemporâneas mais potentes que
representam o enlace entre cultura e
Mesmo que o interesse da
economia no campo da cultura não seja
algo recente (Miguez, 2007, Parada,
2016; Canedo; Dantas, 2016) é,
contudo, a partir dos anos 1990 que
esse debate é renovado com a
emergência de um novo deslocamento
provocado por força de uma novidade
advinda do contexto anglófono
(Miguez, 2009). Trata-se da noção de
economia criativa, a qual articula, nos
discursos acerca do desenvolvimento
econômico, social e urbano, a cultura
juntamente com a criatividade (Canedo;
Dantas, 2016).
Ao olhar para estudos que vêm
sendo desenvolvidos em torno da
cultura e economia criativa (Fahmi;
Mccann; Koster, 2017; Klaus, 2008;
Skavronska, 2017; Canaan, 2019;
Flew; Kirkwood, 2021; Procopiuck;
Freder, 2020; Santos; Gonçalves;
Simões, 2019) percebe-se que muitos
deles reproduzem uma visão de cultura
e de economia criativa fortemente
centrada na ideia de negócios, a partir
de um posicionamento e de uma
argumentação pautados em uma
perspectiva econômica, voltada ao
desenvolvimento. A cultura e a
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- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
Florianópolis. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.234-259, mar. 2025.
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transformações da cultura")
criatividade, assim, tornam-se insumos
para gerar resultados econômicos,
perpassados por uma racionalidade
instrumental-formal.
Especificamente a cultura,
nesses termos, se torna útil nas
estratégias de renovação urbana, no
aumento da competitividade e da
reputação de territórios e no fomento ao
turismo. Contribui para o
desenvolvimento sustentável de
regiões, proporciona entretenimento e
fomenta o consumo, gerando efeitos de
emprego e renda. Explora-se o
potencial da cultura em gerar novas
formas de crescimento econômico. No
âmbito da economia criativa, tais
estudos privilegiam o valor econômico,
comercial, financeiro que a cultura é
capaz de agregar à produção
capitalista, em detrimento de outras
formas de valor. Argumenta-se,
portanto, que, mais do que nunca, com
a emergência da economia criativa, a
cultura tem sido vista enquanto um
setor econômico em crescimento, que
gera emprego, riqueza e
desenvolvimento (Greffe, 2015).
Conforme aponta Canedo
(2019), ao mesmo tempo em que os
números relacionados à economia
criativa buscam demonstrar a
potencialidade dos setores criativos
para a economia, também acabam por
associar as organizações deste meio à
modelos de negócio imersos no modelo
de produção capitalista. Ou seja, as
práticas que têm prevalecido no âmbito
da economia criativa, assim como
também no campo dos estudos da
economia da cultura, refletem e
reforçam os domínios e métodos da
economia contemporânea de mercado,
sobretudo no que concerne à
preponderância do paradigma
neoclássico, hegemônico na economia
(Throsby, 2003).
Porém, conforme argumenta
Reis (2009), a economia o está
restrita ao mercado. Como
consequência, as dimensões
econômicas presentes no âmbito das
organizações culturais que fazem parte
da economia criativa são múltiplas, não
sendo pautadas única e
exclusivamente pelo modelo capitalista
de produção e por uma economia de
mercado (Canedo, 2019).
Pode-se pensar, assim, na
existência de outros princípios
econômicos que impulsionam o
desenvolvimento das atividades que
englobam o campo da cultura, não
orientados exclusivamente pelo lucro,
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- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
Florianópolis. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.234-259, mar. 2025.
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transformações da cultura")
mas por princípios como reciprocidade,
solidariedade, respeito, participação,
autonomia, etc. (Silva et al., 2011).
Frente a isso, defende-se que é
possível pensar em alternativas que
desafiem essa visão restrita, adotando,
para tanto, uma visão econômica mais
ampla, que leve em consideração
outros fatores envolvidos nas
atividades em torno da economia
criativa. É nesse contexto que se busca
ressaltar algumas das contribuições de
Karl Polanyi para o desenvolvimento do
pensamento econômico, com o objetivo
de expandir a noção de economia para
além de tomá-la apenas como sinônimo
de mercado.
Para além da economia de mercado
as ideias de Karl Polanyi
No cerne do pensamento de
Polanyi, reside a crítica à centralidade
do mercado na sociedade, a partir da
qual o autor destaca a ausência de
economias dirigidas pelo mercado em
momentos anteriores à Revolução
Industrial (Silva et al., 2011). Salienta
Polanyi:
Todos os tipos de sociedades
são limitados por fatores
econômicos. Somente a
civilização do século XIX foi
econômica em um sentido
diferente e distinto, pois ela
escolheu basear-se num
motivo muito raramente
reconhecido como válido na
história das sociedades
humanas e, certamente nunca
antes elevado ao nível de uma
justificativa de ação e
comportamento na vida
cotidiana, a saber, o lucro
(2000, p. 47).
De acordo com Polanyi (2000),
nesse sistema de mercado, em vez de
a economia estar embutida nas
relações sociais, são as relações
sociais que estão embutidas no sistema
econômico. A partir do século XIX, o
que ocorre, de acordo com o autor, são
mudanças nas estruturas institucionais
e no imaginário social que levam à uma
relativa desvinculação e
autonomização da esfera econômica
do tecido social, resultando na
conformação de uma sociedade de
mercado (Schneider; Escher, 2011).
Deste modo, como expõe Polanyi
econômico pelo mercado é
consequência fundamental para toda a
organização da sociedade: significa,
nada menos, dirigir a sociedade como
Uma sociedade de mercado é,
portanto, um tipo único e sem
precedentes históricos de organização
social, imprescindível para o
242
- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
Florianópolis. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.234-259, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
desenvolvimento de uma economia de
mercado. Polanyi entende uma
sistema autorregulável de mercados;
[...] uma economia dirigida pelos preços
do mercado e nada além dos preços do
autor que, o advento da sociedade de
mercado não seria possível sem que
transformados, de forma forçada e
fictícia, em mercadorias. Assim:
Uma economia de mercado
deve compreender todos os
componentes da indústria,
incluindo trabalho, terra e
dinheiro. [...] Acontece, porém,
que o trabalho e a terra nada
mais são do que os próprios
seres humanos nos quais
consistem todas as
sociedades, e o ambiente
natural no qual elas existem.
Incluí-los no mecanismo de
mercado significa subordinar a
substância da própria
sociedade às leis do mercado.
[...] O trabalho, a terra e o
dinheiro obviamente não são
mercadorias (Polanyi, 2000, p.
93).
Deste modo, não somente
produtos finais, mas o processo que
envolve sua produção e a reprodução
social dos indivíduos, os quais
necessitam vender sua força de
trabalho para alcance da sobrevivência,
ficam condicionados ao mecanismo do
mercado (Schneider; Escher, 2011).
Infere-se, portanto, a partir do
pensamento de Polanyi, que toda
sociedade acaba por ser modelada
para que o sistema opere conforme as
leis da economia de mercado. É,
afirmação familiar de que uma
economia de mercado pode
fun
(Polanyi, 2000, p. 77). Porém, essa
maneira de entender a economia a
partir da predominância do mercado,
que encontra amparo em uma definição
formalista de economia, acaba
tornando-se reducionista que: a)
parte do pressuposto da escassez; b)
pressupõe que o comportamento dos
indivíduos é guiado a partir de um
cálculo utilitário das consequências
(França Filho, 2007). Esse
ampliação da compreensão do que seja
o ato econômico e de seu sentido para
a vida em sociedade, na direção de sua
ressignificação enquanto forma de
Filho, 2007, p. 7).
Pode-se pensar, assim, em uma
alternativa que se aproxime da
concepção de uma economia real ou
243
- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
Florianópolis. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.234-259, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
substantiva, como vão chamar alguns
autores (Godelier, 1976; França Filho,
2007; Schneider; Escher, 2011) ,
conforme destacado por Polanyi
(1976). O significado dessa visão de
se encontra o homem com respeito a
natureza e a seus semelhantes para
conseguir o sustento. Se refere ao
intercâmbio com o entorno natural e
social, na medida em que é esta
atividade a que propicia os meios para
(Polanyi, 1976, p. 289). A economia,
portanto, é pensada enquanto um
processo instituído em dois níveis: i)
referente à interação estabelecida entre
o indivíduo e seu ambiente natural e
social; b) referente a institucionalização
desse processo (Machado, 2012).
A concepção substantiva da
economia deriva sobretudo do
reconhecimento, por parte de Polanyi,
de produzir e distribuir
riquezas que existiram/existem longo
da história, nas distintas culturas
humanas, ou seja, dos diferentes
princípios do comportamento
econômico, a saber: a reciprocidade
(relacionada ao padrão institucional de
simetria), redistribuição (relacionada ao
padrão institucional de centralidade) e
intercâmbio (relacionada ao padrão
institucional de mercado).
Tais princípios históricos podem
ser resumidos, conforme descreve
França Filho (2007) com base em
Laville (1994), em três distintas formas
de economia, tendo em vista seu
rearranjo na modernidade. Nesse
sentido, a economia permite: a) uma
economia de mercado: toma como
base o mercado autorregulado e está
baseada nas trocas impessoais e na
equivalência monetária; b) uma
economia não mercantil: fundada no
princípio da redistribuição e baseada
em relações de trocas verticalizadas e
pelo seu viés obrigatório; c) economia
não monetária: orientada pela lógica da
dádiva (dar, receber e retribuir), pelo
princípio da reciprocidade.
Frente ao exposto, optou-se,
neste artigo, por adotar essa
concepção de economia plural, a qual
se desdobra da concepção substantiva
(real) da economia desenvolvida por
Polanyi (1976) e que abrange uma
variedade de maneiras de produzir e
distribuir riquezas (França Filho, 2007).
Essa forma de compreender a
economia, segundo França Filho
244
- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
Florianópolis. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.234-259, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
econômico para além da visão
dominante, que reduz seu significado à
ideia de economia de mercado,
permitindo, ainda, perceber certas
-se,
portanto, a partir desse trabalho,
produzir uma imagem mais complexa e
socialmente incorporada da cultura no
âmbito da economia criativa
contemporânea, a partir da qual leva-se
em consideração valores mais do que
capitalistas (Luckman, 2018). É nesse
contexto que o movimento Hip-Hop
parece se constituir em uma dessas
possibilidades alternativas no campo
cultural.
Situando o movimento Hip-Hop do
Bronx à Florianópolis e a sua relação
com a economia criativa na cidade
O Hip-Hop emerge no final dos
anos 1970, em Nova Iorque, no Bronx.
Seu surgimento está atrelado a um
contexto social de profundas
modificações no cenário urbano das
grandes metrópoles, ocasionadas pelo
período pós-industrial (Rose, 1994).
Mudança nas estruturas e
oportunidades de emprego,
exacerbação da discriminação (raça e
gênero) e aumento da população em
situação de vulnerabilidade social e
econômica foram algumas das
consequências trazidas pela
desindustrialização (Rose, 1994). É
nesse cenário de acirramento das
desigualdades, que impactaram,
sobretudo, a população afro-
americana, latino-americana e
caribenha, que o Hip-Hop emerge,
dando voz às tensões sociais e
contradições presentes na paisagem
urbana de Nova Iorque (Rose, 1994).
Por meio da música (rap), da
dança (breaking) e das artes gráficas
(graffiti), o Hip-Hop foi se firmando
enquanto um movimento artístico,
cultural e político, ligado sobretudo à
juventude negra e periférica, que utiliza
o espaço da rua como palco das suas
manifestações e como instrumento de
denúncia das desigualdades e de luta
por melhores condições de vida. É arte
engajada construída por meio de um
movimento que, através de
mecanismos culturais de intervenção
que valorizam o autoconhecimento,
traz à tona críticas à ordem social, ao
racismo estrutural, à forma como a
história foi sendo oficialmente
construída (Silva, 1999).
Ainda que o Hip-Hop, através
das suas diferentes manifestações,
envolva aspectos associados à
245
- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
Florianópolis. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.234-259, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
economia e ao mercado, ele abrange,
também, muitas características que se
distanciam dessa lógica. O movimento
Hip-Hop, constitui- se, por exemplo,
enquanto um ampliador das noções
convencionais de cidadania e
democracia, envolve espontaneidade e
liberdade de criação, preza por
princípios coletivos e pelo
protagonismo dos agentes culturais,
traz a ideia de transformação, de
criação de espaços de sociabilidade e
pertencimento, além de ter um
envolvimento político explícito,
sobretudo ao abordar questões de
raça, de classe e de gênero (Félix,
2018; Souza, 2016; Silva; Teixeira,
2021).
Existe, conforme ressaltam Silva
e Teixeira (2021), uma tensão que se
manifesta entre a organização da
produção artística e cultural do Hip-Hop
e aquilo que os agentes econômicos e
do mercado anseiam, justamente por
não levarem necessariamente sua
atividade fim como algo econômico,
que envolve a busca pela lucratividade.
Além disso, as expressões do Hip-Hop
muitas vezes fogem dos padrões
artísticos, estéticos e comerciais
convencionais e socialmente
construídos, sendo considerada por
Importante mencionar que ao
longo do seu desenvolvimento, os
elementos centrais do Hip-Hop foram,
também, sendo desterritorializados e
levados para diversas metrópoles.
Através dos diferentes meios, o Hip-
Hop se espalhou pelo mundo,
alcançando jovens que passaram a
reinterpretar suas vivências cotidianas
em suas realidades a partir das práticas
e símbolos culturais gestados em
outros contextos (Silva, 1999). É assim
que o Hip-Hop chega ao Brasil, em São
Paulo, nos anos 1980. De acordo com
Félix (2018), o Hip-Hop foi aos poucos
sendo traduzido no contexto brasileiro,
chegando primeiro nos bailes black,
ganhando, posteriormente, as ruas
principalmente através do breaking.
Cabe destacar ainda, segundo o autor,
que sua emergência no contexto
brasileiro se deu de forma parcelada,
ou seja, seus elementos foram sendo
adotados pelas pessoas sem que
fossem feitas muitas ligações ou
relações com o que vinha sendo
praticado, por exemplo, em termos de
dança nos bailes black. Ademais, o Hip-
Hop brasileiro foi lentamente
assumindo seu papel contestador
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- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
Florianópolis. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.234-259, mar. 2025.
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transformações da cultura")
político e racial mais explícito,
prevalecendo, no início, um caráter
mais cultural e de lazer.
Especificamente no contexto de
Florianópolis, o Hip-Hop surge a partir
do final dos anos 1980 sobretudo a
partir do rap (Souza, 1998) e,
atualmente, se encontra bastante
difundido na cidade. Mesmo que a cena
no Hip-Hop de Florianópolis esteja
ainda em desenvolvimento, se
comparada com outras capitais,
percebe-se que uma busca por
ocupar espaços e marcar a presença
desse movimento no cotidiano da
cidade.
É, portanto, um movimento
urbano, que atrai jovens, em sua
maioria negros e moradores da
periferia, de Florianópolis, do Estado de
Santa Catarina, não sendo raro
encontrar também jovens de outros
estados. O palco é a rua, as praças, os
terminais e os ônibus. A ocupação da
cidade de diferentes maneiras é uma
característica marcante, seja através
das batalhas de rima, de batalhas de
poesias, de competições de breaking
ou pelos graffitis nos muros da cidade.
Atualmente estima-se que
existam aproximadamente vinte pontos
na cidade que promovem a cultura Hip-
Hop, os quais reúnem grupos de vinte
a cem pessoas. Tais encontros
caracterizam-se por serem realizados
semanalmente, em dias diversos, bem
como em diferentes pontos da cidade.
Além disso, essas atividades se
caracterizam por atraírem um público
que participa de forma espontânea. As
atividades normalmente são
organizadas e produzidas de forma
independente, em geral sem apoio do
poder público, utilizando-se dos
recursos disponíveis no local. É,
portanto, um movimento independente,
inclusivo, que acontece e se justifica
através da ocupação dos espaços
urbanos, por meio de intervenções e
ações coletivas culturais e de caráter
educativo.
Diante do crescimento do
movimento e da sua expressão nos
espaços públicos da cidade,
consequentemente ele acaba se
tornando mais visível, diferenciando-se,
tanto pelo comportamento, quanto pelo
padrão estético que criam e utilizam
(Souza, 2009). Importante mencionar
que a expansão do movimento por
Florianópolis ocorre em paralelo com o
desenvolvimento de um projeto que
busca direcionar as estratégias de
desenvolvimento da cidade com foco
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- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
Florianópolis. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.234-259, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
na economia criativa. Esse projeto cria
uma representação da cidade que
invisibiliza certos grupos de acordo com
seus interesses, especialmente
aqueles que desafiam a ordem social
estabelecida, como é o caso do Hip-
Hop (Souza, 2009).
Nos últimos anos, Florianópolis
tem se destacado no cenário da
economia criativa nacional. Isso se
deve, em grande parte, ao seu
desenvolvimento tecnológico e
inovador, que a levou a ser
reconhecida, inclusive, como a Ilha do
Silício da América Latina. Em
decorrência disso, a cidade acaba se
destacando em diversos índices e
rankings voltados à economia criativa,
como na recente publicação do Índice
de Desenvolvimento Potencial da
Economia Criativa (IDPEC), em que
figura em primeiro lugar entre as
capitais brasileiras analisadas.
Desde 2014, Florianópolis faz
parte da Rede de Cidades Criativas da
UNESCO, sendo a primeira cidade
brasileira a ganhar a chancela na área
da gastronomia. É neste contexto
também que surge, em 2020, a Rede
de Economia Criativa de Florianópolis,
criada com objetivo de buscar apoio e
fomento às políticas públicas das
atividades da economia criativa.
Além dessas, outras iniciativas
vêm sendo implementadas com intuito
de fomentar a economia criativa na
cidade, as quais se caracterizam pela
defesa dos benefícios gerados através
do seu fomento, sobretudo aqueles
relacionados aos resultados
econômicos e suas contribuições para
o crescimento e desenvolvimento para
a cidade. Percebe-se que o discurso da
economia criativa que vem sendo
hegemonicamente construído em
Florianópolis está pautado na
valorização econômica da criatividade,
sendo a mesma defendida enquanto
um importante vetor de crescimento e
desenvolvimento econômico. Nesses
termos, a economia criativa acaba
estando associada à lógica de
mercado, que privilegia investimentos
em setores que geram lucro e
incentivam a competitividade. Tem-se a
predominância de uma visão de
economia voltada para o mercado, que
se concentra na ideia de oferta e
demanda, que enfatiza a importância
da concorrência e da propriedade
privada e o fomento de organizações,
como salienta Canedo (2019),
orientadas ao mercado e
248
- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
Florianópolis. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.234-259, mar. 2025.
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transformações da cultura")
fundamentadas em um modelo de
produção capitalista.
Ainda que se tenha essa
construção sobre a ideia de economia
criativa dominante na cidade, a mesma
não está isenta de questionamentos e
resistências. É nesse contexto que
emerge o papel que a cultura
desempenha, que ela pode ser
identificada como um dos elementos
que está articulado e que faz parte da
economia criativa.
Assim, passou-se a pensar
sobre a possibilidade de existência de
uma alternativa cultural a partir do
estudo do movimento Hip-Hop no
cenário da economia criativa em
Florianópolis, analisando aspectos
como: ideia de valor cultural,
motivações, dinâmicas de organização
e execução das atividades, mobilização
de pessoas, experiências de trocas,
distribuição de tarefas e funções,
tomada de decisão, mobilização de
recursos e estrutura de apoio e
recompensas.
Articulando alternativas à economia
criativa dominante a partir do
movimento Hip-Hop de Florianópolis
Especificamente no contexto do
Hip-Hop de Florianópolis, diversas
manifestações artísticas e culturais,
como as batalhas de rima e de poesia
e a organização de eventos em torno do
graffiti, podem servir de exemplo de
como o movimento pode representar
outra perspectiva de economia criativa.
Um primeiro aspecto a ser analisado
refere-se a forma como se percebe o
valor que a cultura Hip-Hop gera e
transmite. Nesse sentido, as
manifestações artísticas e culturais do
Hip-Hop não proporcionam um
espaço para colocar em prática versos
e expandir repertórios, como servem
como plataforma para a troca de
experiências e capacitação.
Além da importância de tais
manifestações para a vivência e
promoção em torno da cultura Hip-Hop,
elas acabam tornando-se um espaço
de construção de rede de apoio e
acolhimento, de desenvolvimento
pessoal e profissional e de construção
de novas sociabilidades. Nesse
sentido, as manifestações do Hip-Hop
acabam tornando-se espaços de
inclusão e participação coletiva ligadas
ao território. A fala do entrevistado
Visão de Futuro expressa a importância
desses espaços criados pelo
movimento:
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- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
Florianópolis. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.234-259, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
[...] além de ser um movimento
cultural que enriquece a saúde
da comunidade, que o
espaço da gente poder falar
aquilo que muitas vezes está
trancafiado, que a gente não
sente a liberdade, que a
sociedade não pra gente,
toda hora oprimido, toda hora
alguém vai estar apontando um
dedo pra você. Na batalha isso
meio que se dissipa. A gente
acaba vendo as pessoas se
sentindo à vontade pra poder
falar coisas que não sentem,
pra poder, como a gente usa o
termo, explanar situações que
são mais sensíveis, que muitas
vezes as pessoas não vão dar
bola, não vão escutar (Visão de
Futuro).
Prevalece nesses encontros do
Hip-Hop pela cidade, a valorização dos
artistas locais, a divulgação dos
trabalhos desses artistas, o
compartilhamento de experiências e
vivências, o lugar de protagonismo de
quem faz a cultura acontecer os quais
são, na maioria das vezes, jovens
negros e que vivem em locais
periféricos, além de ser um espaço de
criação de vínculos e sociabilidade.
No que tange às motivações
para realização das manifestações,
aspectos como a criação de uma
cultura do pertencimento, a
aprendizagem compartilhada, a
promoção de interesses coletivos e do
bem comum são aspectos motivadores
que permeiam a realização das
manifestações artísticas e culturais
coletivas no âmbito do Hip-Hop da
cidade.
São levados em consideração
outros fatores que orbitam a economia
criativa que estão muito mais
relacionados à dimensão social (como
a solidariedade, coletividade,
pertencimento, crescimento mútuo) que
vão além da lógica de mercado
predominante e da motivação pelo
lucro. Na lógica da noção substantiva
de economia, como desenvolvido por
Polanyi (1976), a prioridade está na
satisfação das necessidades humanas
e sociais, com foco no bem-estar e na
integração social. No caso do Hip-Hop,
destacam-se valores e motivações que
se aproximam mais com a conformação
de uma noção substantiva de
economia, não monetária (França
Filho, 2007) do que com a de mercado.
As atividades artísticas e culturais do
Hip-Hop funcionam mais como espaço
onde as pessoas fortalecem laços e
desenvolvem um senso de
pertencimento e de comunidade, do
que a ideia de competição, de
eficiência, de priorização dos
interesses individuais e da busca por
alcançar o lucro.
250
- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
Florianópolis. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Outro fator importante a ser
destacado refere-se ao fato de que a
organização e a realização das
manifestações artísticas e culturais em
torno do Hip-Hop na cidade também
revela uma dinâmica de como as
atividades são organizadas e
executadas que valoriza aspectos
como a colaboração, autossuficiência e
o engajamento comunitário e não
necessariamente a ideia em torno da
construção de empreendimentos com
fins utilitários e que buscam a
lucratividade (França Filho, 2007).
É comum a existência de
práticas de troca não monetárias e da
solidariedade na realização das
manifestações artísticas e culturais, as
quais são concretizadas através de, por
exemplo, participação de artistas do
Hip-Hop de forma colaborativa e troca
de serviços, sobretudo entre membros
do movimento. Na fala abaixo tem-se
um exemplo prático da dinâmica de
funcionamento da organização das
manifestações do Hip-Hop, com
destaque para a colaboração e esforço
coletivo:
[...] Cada um gira um
pouquinho, eu trago uma caixa
de som, empresto uma
extensão para o vizinho. A
[inaudível] ali com as planilhas,
com os canetões da TAG,
organiza a documentação. E é
um pouquinho de cada, sabe?
A gente vai no mercado,
compra uma água para os MC
que vem rimar. E é isso, o
movimento. E um pouquinho de
cada um já soma, e a gente faz
acontecer. A gente não tem o
recurso, porque muitas vezes
os empresários, a galera que
tem dinheiro estão tirando da
onde era para acontecer. A
gente vai e busca e faz
acontecer (Sonho em Verso).
No movimento Hip-Hop é
possível perceber que muitas
atividades se baseiam e funcionam a
partir de uma aproximação com a lógica
da dádiva (dar, receber e retribuir). Isso
pode ser percebido ao se analisar a
questão da mobilização de pessoas. Os
participantes costumam contribuir para
o movimento sem necessariamente
esperar um retorno financeiro como
contrapartida. Em vez disso, se
envolvem pensando no bem-estar
coletivo e no impacto positivo que
podem gerar. A reciprocidade, princípio
descrito por Polanyi (1976), torna-se
um elemento fundamental nas
interações no movimento. As atividades
do Hip-Hop, em geral, são produzidas
de forma independente, sem patrocínio
ou apoio do poder público, e realizadas
por um grupo de pessoas que atuam de
forma voluntária, sem receber
251
- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
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transformações da cultura")
nenhuma forma de recompensa
monetária.
Além disso, é comum perceber a
criação de uma rede de apoio em que
são abertos espaços nas
manifestações para, por exemplo,
contribuição voluntária e divulgação de
trabalhos artísticos de membros do
movimento, em que o retorno pode vir
em termos do desenvolvimento de
parcerias ou colaborações, seja na
divulgação de eventos, reconhecimento
ou apoio nas atividades culturais. A fala
de uma das entrevistadas ilustra esses
elementos, ressaltando que muitas
contribuições são feitas como forma de
reconhecimento do trabalho de quem
também se dedica para as atividades
do movimento:
A gente fala assim: se você
nunca perdeu nada para o rap,
você nunca vai ganhar. [...] É
uma necessidade, né? De
quem realmente constrói o
movimento Hip-Hop. E as
pessoas que constroem o
movimento elas são muito
criativas nessa forma de buscar
um autossustento. Isso acaba
se tornando realmente uma
rede, né? Então tem a amiga
que vende paçoca, tem o cara
que vende o CD dele. [...] Então
a galera acha diversas formas
de conseguir monetizar o seu
corre que não seja a música
para conseguir sobreviver
(Verso Urbano).
Além disso, é possível perceber
que a colaboração e o apoio mútuo
também são comuns ao olhar para as
experiências de trocas criadas, a partir
das quais percebe-se a prevalência da
formação de uma rede de fomento
econômico, onde os próprios
participantes colaboram com o sustento
e a manutenção das atividades de
outros. Uma rede de trocas entre os
participantes que não se baseia
unicamente em termos de trocas
monetárias, mas na formação de um
sistema colaborativo e solidário. Um
esforço coletivo que acaba, como
salientado por França Filho (2007),
estimulando todo um circuito de
relações socioeconômicas locais que
envolvem uma lógica de rede. A fala
abaixo ilustra como uma atividade em
torno do Hip-Hop pode mobilizar uma
pluralidade de iniciativas econômicas
que o desde a comercialização de
produtos até a ajuda mútua entre os
participantes.
É uma coisa que a gente gera
de dentro pra fora pra que as
coisas aconteçam. Porque,
tipo, um evento que rola
movimenta toda uma
quebrada, entendeu? Então, é
a tiazinha que vai vender uma
cerveja, é a mina que tá na
faculdade e precisa pagar as
contas [...] então, é tudo um
pouco e a gente vai se
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- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
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transformações da cultura")
fortalecendo. Porque não tem
essa coisa, tipo assim, vo
não pode fazer. Ou você não
pode colocar a tua barraca
aqui, ou você não... Tudo é
liberado, você fazer, você
vender, você chegar, né?
Porque é um movimento
coletivo e a gente se sente à
vontade pra fazer esse
escambo, né? Que acaba
sendo uma troca (Poesia
Valente).
Em termos de gestão das
atividades, percebe-se a prevalência da
gestão colaborativa viabilizada por
meio de uma estrutura horizontal onde
os recursos e conhecimentos são
compartilhados, sem a existência de
uma hierarquia ou concentração de
poder e de recursos, como comumente
são observados em organizações
empresariais.
Pode-se observar também que
se adota uma abordagem de gestão
mais flexível, menos estruturada, sem
muitas normas ou processos
estabelecidos e padronizados, com
maior abertura para adaptações, sem
um planejamento muito rigoroso. Em
termos de distribuição de tarefas e
funções, pode-se perceber que as
mesmas são realizadas pelos próprios
organizadores que contam, por vezes,
com a colaboração pontual de
participantes externos em atividades
específicas e especializadas, como, por
exemplo, na função de DJ. É comum
que as pessoas envolvidas na
organização assumam diversas
funções conforme necessário e de
acordo com a disponibilidade de cada
um, sem a existência de uma divisão
clara e formal de papéis e funções.
em termos de tomada de
decisão, elas comumente ocorrem a
partir do consenso diante de
discussões abertas e colaborativas
entre organizadores de eventos. Como
ressalta a entrevistada Verbo Sincero
difícil, é óbvio, porque são vários
pensamentos, são rias pessoas,
mentalidades diferentes, vivências
diferentes, mas a gente sempre tenta
ser ao máximo, o mais compreensível
possível,
Alguns desses aspectos podem
ser observados nas falas abaixo de
entrevistados envolvidos com
organização de atividades e ilustram
uma forma de organizar guiada pela
cooperação e pela colaboração
coletiva:
Então, nosso grupo de
organização, a gente lança as
ideias, sempre reunião, todo
mundo em conjunto. Nunca
tem ninguém em cima de
ninguém. Aí a nossa divisão de
253
- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
Florianópolis. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
tarefas sempre fica entre o
mestre de cerimônia, quem vai
ajudar a carregar os
equipamentos. [...] Quem tá no
movimento tá porque quer, não
é porque é obrigado por estar
pago. E se é pago, estourou
(Verso Vivo).
[...] a gente é uma equipe, a
gente preza muito pela
equidade das funções. Então o
que eu sei fazer qualquer uma
da organização, e o da
organização, mas que se
disponha do público, pode
fazer também, desde
apresentar uma batalha, fazer
uma folhinha de chave, rimar
também, fazer poesias na rua
declama (Visão de Futuro).
Outra característica presente
nas manifestações do Hip-Hop está
relacionada à mobilização de recursos
e se refere à autossuficiência na
manutenção e sustento das atividades,
tanto em termos financeiros quanto em
termos de estrutura. As atividades são
promovidas sem depender de grandes
financiamentos, patrocínios ou
estruturas econômicas convencionais.
Em muitos casos, os recursos
financeiros são provenientes de
contribuições espontâneas feitas
através de doações dos próprios
membros, da comercialização de
produtos ou por meio da arrecadação
de dinheiro de forma coletiva (rifas,
passar chapéu). No que tange aos
recursos materiais e estruturais, faz-se
o uso daquilo que se tem disponível,
tanto em termos da utilização dos
espaços públicos e sua infraestrutura,
como também a utilização de
equipamentos emprestados e auxílio
de voluntários, que o recurso
financeiro para custeio de compra de
equipamentos, aluguel de espaço ou
pagamento de salários é escasso.
Abaixo, a fala ilustra algumas
estratégias utilizadas para viabilizar
financeiramente e operacionalmente as
manifestações do Hip-Hop:
Financeiramente, a gente é se
vira. A gente pede colaboração,
quem quiser apoiar, apoia. Se
não, a gente um jeito de
levantar uma grana, vende
salgado, faz alguma coisa. Mas
o importante é sempre estar
girando. Querendo ou não, é
isso que alimenta, ligado? É
por uma causa. A gente
sempre tem que dar um jeito.
Se não for com grana
envolvida, que seja. Vai ser
com contribuição do cara que
colabora, que está sempre
junto. Então, premiações, a
gente sempre um jeito de
viabilizar. Se não a gente faz
uma rifa pra levantar grana, a
gente sempre algum jeito.
Porque, como eu falei, é a
ação, é o fato de querer fazer é
o que consegue (Verso Vivo).
A lógica do improviso acaba
ganhando certo protagonismo no modo
de gerenciar os recursos necessários à
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- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
Florianópolis. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.234-259, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
concretização das atividades, sendo a
manifestações da autossuficiência das
atividades.
A utilização de práticas de
colaboração e auxílio mútuo acabam
tornando-se também expressões da
lógica da dádiva e da reciprocidade,
cujo objetivo é a continuidade das
maior, ao invés da garantia da
satisfação das necessidades
individuais ou do lucro. Em uma noção
substantiva de economia, as atividades
econômicas são adaptadas visando
atender necessidades coletivas, não
pela lógica do mercado.
Outro aspecto importante refere-
se às estruturas de apoio e
recompensas. São poucos os membros
que conseguem viver e se sustentar
financeiramente a partir das atividades
no Hip-Hop, sendo, muitas vezes,
necessário o envolvimento em outras
atividades profissionais. Alguns a
conseguem receber alguma
remuneração (através de shows, graffiti
comercial etc.) mas, na maior parte das
vezes, a remuneração não é suficiente
para tornar-se a principal fonte de
renda. Nesse sentido, a motivação está
muito mais relacionada ao afeto e
gratidão pela cultura e pela vontade de
contribuir para o desenvolvimento do
movimento do que pelo retorno
financeiro. A fala de Ritmo da Rua
mostra o quanto o envolvimento com o
Hip-Hop é frequentemente traduzido
em termos de motivação afetiva, do que
necessariamente pelo retorno
financeiro:
É, um faça você mesmo né. [...]
Mas acho que depois de um
tempo como organização, tu
acaba notando que isso
deveria ser um trabalho
remunerado. Porque somos
agentes culturais, a gente
fazendo a cena local de
Florianópolis. E não
recebendo nada. Bom, a gente
recebendo, porque é uma
baita troca. A gente sente muito
satisfeito e a gente recebe,
assim, todo um carinho
também de várias minas. Acho
que o que paga, assim, é a
gente ver... Ah, foi a primeira
vez que eu rimei. [..] Então
essas coisas acabam sendo
uma forma de estímulo, assim,
pra gente continuar (Ritmo da
Rua).
Outrossim, é importante
mencionar que a desvalorização,
informalidade e precariedade que
predomina no âmbito do trabalho
artístico e cultural no Hip-Hop acaba,
inclusive, dificultando o
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- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
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Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.234-259, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
reconhecimento do trabalho artístico e
cultural como uma forma de trabalho
legítima.
Considerações Finais
Tendo em vista os aspectos
mencionados, que refletem dimensões
da economia criativa do Hip-Hop em
Florianópolis, é possível identificar
elementos que apontam para uma
outra forma de economia, que pode ser
vista como uma perspectiva alternativa
de economia criativa. As práticas do
Hip-Hop oferecem uma visão distinta
sobretudo por se aproximarem da
noção substantiva de economia,
destacando aspectos como a
importância da solidariedade,
coletividade, apoio mútuo, confiança e
possibilidade de autossustentação.
Não se nega a presença de
práticas próximas a uma economia de
mercado por parte de algumas
manifestações do movimento, no
entanto as práticas criativas e culturais
promovidas não são orientadas
fundamentalmente pelo lucro. O Hip-
Hop ilustra a possibilidade de
existência de organizações e atividades
em torno de uma economia nas quais
os indivíduos participam
voluntariamente, sem serem guiados
necessariamente por motivações
racionais instrumentais, mas na busca
pelo fortalecimento dos laços sociais,
reconhecimento, troca de afetos e bem-
estar. Além disso, a experiência
salienta a existência de organizações
que surgem e se sustentam a partir de
iniciativas coletivas e que envolvem
atividades econômicas sem possuir
necessariamente como objetivo de sua
existência a acumulação para benefício
de poucos. A presença da lógica da
dádiva manifestada a partir das trocas
não monetárias e das práticas de
solidariedade e coletividade que
fortalecem a ideia de apoio mútuo e
crescimento conjunto também são
representativas para pensar uma
concepção substantiva de economia
criativa alternativa nesse meio.
A criatividade, no Hip-Hop em
Florianópolis, se manifesta não
somente através da prática artística
contestatória, mas também nas
distintas formas de se buscar gerar
renda, de financiar e sustentar as suas
atividades, na adaptação para
utilização dos recursos disponíveis,
entre outros. Muitas vezes, a realidade
que circunda as atividades artísticas e
culturais do Hip-Hop e suas práticas
econômicas baseadas no improviso, na
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- possibilidades de uma economia criativa
alternativa a partir das experiências do movimento Hip-Hop em
Florianópolis. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.234-259, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
adaptação, na informalidade, na
construção coletiva e na ajuda mútua,
distancia-se da visão mercadológica e
comercial preconizada pela visão
dominante em torno da economia
criativa. Tal fato retrata uma distorção
entre o valor e a importância das
práticas culturais locais e a maneira
como essas práticas são percebidas
num contexto mais amplo da cidade.
Ao aproximar a perspectiva
substantiva da economia de Polanyi
(1976) à economia criativa a partir da
experiência do Hip-Hop, percebe-se
que existe um esforço na tentativa de
articular uma noção mais ampliada de
economia que incorpora um conjunto
de práticas que envolvem a troca, a
produção e o consumo baseados em
princípios outros, alheios à lógica da
economia de mercado (França Filho,
2007). Assim, a análise da experiência
do Hip-Hop convida a refletir acerca
das limitações e exclusões geradas
pelo modelo dominante de economia
criativa que vem sendo construído na
cidade, que tende a priorizar e
favorecer setores e manifestações
criativas que possam ser mais
facilmente ajustadas às métricas de
mercado e à lógica capitalista.
Importante destacar também
que as limitações e exclusões estão
fortemente vinculadas a questões
sociais, como o preconceito de classe e
de raça. Nesse contexto, o movimento
Hip-Hop, que surge como uma forma
de resistência e afirmação cultural,
enfrenta não dificuldades de ser
reconhecido dentro das métricas de
valor capitalistas de mercado, mas
também o estigma social e o racismo
institucionalizado que permeiam o
campo da economia criativa. Pode-se
dizer, portanto, que a resistência ao
reconhecimento das práticas
econômicas alternativas às de
mercado, como as vislumbradas no
movimento Hip-Hop de Florianópolis,
está diretamente vinculada à um
contexto mais amplo de exclusão social
que está enraizado em uma visão
limitada e elitista da cultura, a qual
subestima e/ou negligencia as
experiências culturais que não se
enquadram, de algum modo, nos
moldes dominantes.
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revolta discursiva presente no Hip-Hop e a imaginação política como
farol. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.260-281, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Gritos na margem: a revolta discursiva presente no Hip-Hop e a imaginação
política como farol
Renan da Silva Palácios1
Jenniffer Simpson dos Santos2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v15i28.65562
Resumo: O presente trabalho propõe uma análise dos enunciados emergentes e insurgentes do
movimento Hip-Hop na cidade de Dourados, Mato Grosso do Sul, em contraponto aos ideais neoliberais
de compartimentalização social e individualização de experiências outrora coletivas. Tendo como
referência a produção de um documentário sobre o tema, realizado no mesmo período em que esta
pesquisa foi desenvolvida, o foco da análise recai sobre os enunciados de MCs em suas entrevistas,
com o objetivo de compreender a prática da imaginação política na estruturação de discursos de
resistência às normas de vida neoliberais. A análise em questão foi conduzida paralelamente ao
acompanhamento da produção do documentário e à transcrição das entrevistas. O referencial teórico
está ancorado na teoria foucaultiana, enquanto o método utilizado é a Análise do Discurso. A
materialidade linguística dos enunciados, em relação à marginalização e à resistência ativa às normas
sociais e discursivas vigentes, constitui o principal objeto de análise. A partir disso, obteve-se que a
imaginação política se encontra efetivamente presente nos discursos analisados, funcionando o
apenas como uma forma de imaginar um mundo menos injusto, mas também como um chamado à
ação; atuando como um farol que guia os sujeitos marginalizados à resistência, valendo-se da música
e da cultura como ferramentas de subversão e transformação social. A imaginação política expressa
nos discursos das pessoas entrevistadas o é vista apenas como um ideal utópico, mas como uma
realidade concreta, através de práticas cotidianas de artistas e ativistas que compõem o movimento em
Dourados.
Palavras-chave: Hip-Hop; neoliberalismo; imaginação política.
Screams on the margin: the discursive revolt present in Hip-Hop and the political imagination as
a beacon
Abstract: This paper proposes an analysis of the emerging and insurgent statements of the Hip-Hop
movement in the city of Dourados, Mato Grosso do Sul, as a counterpoint to the neoliberal ideals of
social compartmentalization and individualization of once collective experiences. Taking as a reference
1Graduando em Psicologia pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). E-mail:
renan.palacioss@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0009-0005-5607-533X.
2Doutora em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Professora do Programa de Pós-Graduação
em Psicologia (PPGPsi) da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande
Dourados (FCH/UFGD). E-mail: jennifersantos@ufgd.edu.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
9323-0045.
Recebido em 03/12/2024, aceito para publicação em 22/12/2024.
261
PALÁCIOS, Renan; SANTOS, Jenniffer Simpson dos. Gritos na margem: a
revolta discursiva presente no Hip-Hop e a imaginação política como
farol. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.260-281, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
the production of a documentary on the subject, made during the same period in which this research
was carried out, the focus of the analysis is on the MCs' statements in their interviews, with the aim of
understanding the practice of political imagination in structuring discourses of resistance to neoliberal
norms of life. The analysis in question was carried out in parallel with monitoring the production of the
documentary and transcribing the interviews. The theoretical framework is anchored in Foucauldian
theory, while the method used is Discourse Analysis. The linguistic materiality of the statements, in
relation to marginalization and active resistance to current social and discursive norms, constitutes the
main object of analysis. From this, it emerged that the Political Imagination is effectively present in the
discourses analyzed, functioning not only as a way of imagining a more equitable world, but also as a
call to action; acting as a beacon that guides marginalized subjects to resistance, using music and
culture as tools for subversion and social transformation. The Political Imagination expressed in the
speeches of the people interviewed is not just seen as a utopian ideal, but as a concrete reality, shaped
by the daily actions of the artists and activists who make up the movement in Dourados.
Keywords: Hip-Hop; neoliberalism; political imagination.
Gritos al margen: la revuelta discursiva presente en el Hip-Hop y la imaginación política como
faro
Resumen: El presente trabajo propone un análisis de las manifestaciones emergentes e insurgentes
del movimiento Hip-Hop en la ciudad de Dourados, Mato Grosso do Sul, en contrapunto a los ideales
neoliberales de compartimentación social e individualización de experiencias que alguna vez fueron
colectivas. Con referencia a la producción de un documental sobre el tema, realizado en el mismo
período en el que se desarrolló esta investigación, el foco del análisis recae en las declaraciones de los
MCs en sus entrevistas, con el objetivo de comprender la práctica de la imaginación política en la
estructuración de discursos de resistencia a las normas de vida neoliberales. El análisis en cuestión se
llevó a cabo en paralelo con el seguimiento de la producción del documental y la transcripción de las
entrevistas. El marco teórico está anclado en la teoría de Foucault, mientras que el todo utilizado es
el Análisis del Discurso. La materialidad lingüística de los enunciados, en relación con la marginación
y la resistencia activa a las normas sociales y discursivas vigentes, constituye el principal objeto de
análisis. De todo ello se desprende que la Imaginación Política está efectivamente presente en los
discursos analizados, funcionando no sólo como una forma de imaginar un mundo más equitativo, sino
también como una llamada a la acción; actuando como un faro que guía a los sujetos marginados hacia
la resistencia, utilizando la música y la cultura como herramientas de subversión y transformación
social. La Imaginación Política expresada en los discursos de las personas entrevistadas no se ve sólo
como un ideal utópico, sino como una realidad concreta, moldeada por las acciones cotidianas de los
artistas y activistas que componen el movimiento en Dourados.
Palabras clave: Hip-Hop; neoliberalismo; imaginación política.
Gritos na margem: a revolta discursiva presente no Hip-Hop e a imaginação
política como farol
E não adianta fingir que não vê
lado
O preconceito é velado
Vê lá do alto do morro qual
corpo vai ser velado, vai ser
favelado
É o pai que perde o filho, é o
dedo no gatilho
É o medo do homicídio, é a
morte a domicílio, é a guerra
262
PALÁCIOS, Renan; SANTOS, Jenniffer Simpson dos. Gritos na margem: a
revolta discursiva presente no Hip-Hop e a imaginação política como
farol. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.260-281, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
nos presídios
Carandiru, Alcaçuz, por aqui
se banaliza genocídios
Pergunta pros índios, pergunta
pros índices
Quantas dessas vítimas são
pretas?
Pergunta lá pro IML
Qual é a cor da pele que
colore suas gavetas? Hein?
Rap é tudo o que o sistema
não queria
Tudo o que o sistema não
queria
Rap é tudo o que o sistema
não queria
É o povo armado de poesia
[...]
Fabio Brazza feat. Vulto
Armados de Poesia (2020)
Introdução
Ansiando pela possibilidade de
reinventar o mundo (ou a ideia que
temos dele) através da resistência
coletiva ante ao discurso
contemporâneo de
individualização/compartimentalização
do social, debruçamo-nos sobre um
conceito polimorfo e complexo: a ideia
de imaginação política; o ponto de
convergência entre a revolta discursiva
presente no Hip-Hop e a possibilidade
de um futuro melhor. O entrelace entre
ritmo, revolta e a habilidade de pensar
crítico-criativamente sobre como a
sociedade pode ser (re)organizada,
governada e transformada.
Esse trabalho teve como
objetivo compreender o papel da
imaginação política na estruturação de
discursos de resistência ante aos
vieses de individuação e
compartimentalização do coletivo,
amplamente difundidos dentro no
neoliberalismo, e também a
segregação, violência e preconceitos
advindos da operacionalização desse
discurso. Propõe-se apresentar, nesse
sentido, uma análise sobre o
movimento Hip-Hop na cidade de
Dourados, Mato Grosso do Sul, a partir
da perspectiva da análise do discurso,
como uma forma de resistência ante a
este sistema normativo.
Dessa maneira, propomos aqui
uma experiência diferente daquela que
usualmente reafirma o pensamento e
as práticas hegemônicas, propomos
uma escrita disruptiva, parcial, visceral
e, acima de tudo, política. Ao optar por
estruturar o texto dessa maneira,
reiteramos a necessidade de uma
psicologia capaz de escutar e amplificar
o grito dos marginalizados, excluídos e
segregados, que ecoam às margens da
sociedade.
Assim sendo, falaremos aqui
não somente sobre música, arte e
poesia, mas também sobre resistência,
263
PALÁCIOS, Renan; SANTOS, Jenniffer Simpson dos. Gritos na margem: a
revolta discursiva presente no Hip-Hop e a imaginação política como
farol. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.260-281, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
luta por espaço e igualdade de direitos.
Sobre como esses discursos,
presentes em espaços reais ou
imaginados, resistem a outras
modalidades discursivas
instauradas, como o neoliberalismo e
as suas normas de vida; e também
sobre como a Psicologia hegemônica,
herdeira de uma moralidade
aristocrática, deve cair para a ascensão
de uma outra Psicologia contra-
hegemônica, fronteiriça, anticolonial,
se
desfaça da ciência cartesiana e se
n.p.) e traga para o debate a memória
popular, como insistentemente
argumenta Maritza Montero (2014) e
Martin-Baró (2016).
Partimos da compreensão de
que o papel da Psicologia, nesse
contexto, não é outro senão o de aliar-
se a essas vozes insurgentes, como um
potencial instrumento de transformação
social. Esse processo envolve não
apenas a análise crítica das estruturas
opressivas que perpetuam a
desigualdade, mas também a análise
da materialidade discursiva das
narrativas que sustentam o movimento
do Hip-Hop, especialmente dentro do
contexto douradense.
Assim sendo, tomamos o Hip-
Hop, não apenas como movimento
cultural, mas como um espaço de
resistência e ressignificação. E assim o
interpretamos, pois, as letras, as
batidas, bem como os enunciados que
surgem a partir da construção de
coletividades, nos encontros e
desencontros possíveis dentro das
batalhas de rima, nos eventos culturais
oferecem um terreno fértil para a
expressão das dores, sonhos e
aspirações daqueles que foram
historicamente silenciados/as.
Dessa forma, para uma melhor
compreensão desse fenômeno dentro
do contexto douradense, delimitaremos
ao longo do texto o enunciado que
nome a este trabalho. Tal perspectiva
justifica-se na necessidade de uma
compreensão mais ampla sobre a
polifonia que a noção de imaginação
política mobiliza, presente nos
discursos dos MCs da cidade de
Dourados, na formação de
comunidades e também no exercício da
cidadania em oposição aos ideários
neoliberais.
Haja vista a produção do
Rap em
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PALÁCIOS, Renan; SANTOS, Jenniffer Simpson dos. Gritos na margem: a
revolta discursiva presente no Hip-Hop e a imaginação política como
farol. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
um Estágio Supervisionado de Ênfase
A (processos psicossociais) do curso
de Psicologia da Universidade Federal
da Grande Dourados, voltamo-nos à
análise dos enunciados apresentados
pelos MCs em suas entrevistas,
buscando compreender o papel da
imaginação política na estruturação de
discursos de resistência ante aos
vieses de individuação e
compartimentalização do coletivo,
amplamente difundidos dentro no
neoliberalismo, e também a
segregação, violência e preconceitos
advindos da operacionalização desse
discurso.
Ao todo, foram entrevistadas
quinze pessoas para a realização do
documentário, sendo cinco mulheres e
dez homens, com idades diversas, que
juntos de outros tantos que não
puderam ser alcançados na ocasião
das gravações, por limitações de
tempo, recursos e pessoal, integram o
atual cenário douradense do Hip-Hop.
Salienta-se, em consonância a
isso, que nem todo o material colhido foi
utilizado para análise; apenas alguns
dos enunciados apresentados pelos
MCs, no contexto da gravação das
entrevistas, foram selecionados para
fundamentar o presente trabalho. Tal
decisão se fez necessária devido a
limitação de tempo para a realização da
pesquisa. Por essa razão, foram
selecionados trechos específicos das
entrevistas de quatro MCs, sendo três
mulheres e um homem, e de um grupo
de MCs, composto por quatro homens.
A análise dos enunciados foi
feita através de uma revisão
sistemática das entrevistas transcritas,
alinhada a estudos sobre a
operacionalização do discurso
neoliberal na sociedade
contemporânea e as (im)possibilidades
de resistência ante as dinâmicas de
poder que perpetuam as desigualdades
e silenciam os sujeitos das periferias
urbanas, sobretudo, quando essas
periferias estão em zona de fronteira,
como é o caso da cidade de Dourados.
O corpus da pesquisa, portanto,
pode ser definido como sendo um
recorte dos principais enunciados
apresentados pelas pessoas MCs
durante suas entrevistas; as dinâmicas
de exclusão e invisibilização social
analisadas a partir de bibliografia
básica sobre a temática e a criação de
discursos de resistência ao
neoliberalismo, enquanto sistema
normativo, no contexto da cidade de
Dourados-MS. Diante disso, o foco na
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PALÁCIOS, Renan; SANTOS, Jenniffer Simpson dos. Gritos na margem: a
revolta discursiva presente no Hip-Hop e a imaginação política como
farol. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
materialidade linguística dos
enunciados apresentados pelos MCs,
relativa à marginalização e a
resistência ativa às normas
sociais/discursivas vigentes, é
considerado o principal objeto da
análise realizada. Propõe-se
apresentar, nesse sentido, uma análise
sobre o movimento Hip-Hop na cidade
a partir da perspectiva da análise do
discurso, como uma forma de
resistência ativa ante ao neoliberalismo
e as suas nuances.
Buscou-se, nesse sentido,
estabelecer conexões e similaridades,
a partir da identificação de imaginação
política, entre enunciados que
permitissem a compreensão do
contexto e das condições de produção
de discursos de resistência a esses
processos. Esse movimento levou em
conta as vinculações históricas,
sociológicas e linguísticas, utilizando
interpretações pós-estruturalistas e da
análise de discurso (Orlandi, 1999).
Partiu-se do princípio de que o
discurso não possui uma origem fixa e
não responde a uma posse única, mas
circula; mesmo que, após ser posto em
circulação, sua origem se desfaça, ou
seja, esquecida, e que seus sentidos
não sejam controlados pelo enunciador
(Pêcheux, 1990). Reconhecemos que a
dispersão do discurso segue regras
delimitadas por uma ordem discursiva
complexa e que a exterioridade é um
componente irremediável. Portanto, a
identificação da autoria não é o foco da
análise; ao contrário, o objetivo é
compreender as condições de
produção que permitem que algo seja
enunciado, compreendido e
modificado, ou não, em um
determinado contexto espacial e
temporal (Orlandi, 1999).
Imaginação política e Hip-Hop
Diante da opressão institucional
sobre os corpos marginalizados,
surgem movimentos que versam sobre
formas de resistência ante a práticas
que legitimam e perpetuam
desigualdades, abordando a
possibilidade de transformações
sociais e comunitárias, como é o caso
do Hip-Hop. O discurso mantido pelos
rappers dentro do movimento Hip-Hop
é político de resistência e, ao contrário
da modalidade discursiva adotado
pelas instituições, pode assumir
diferentes formas de expressão
RAP (Colima; Cabezas, 2017, p. 32).
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PALÁCIOS, Renan; SANTOS, Jenniffer Simpson dos. Gritos na margem: a
revolta discursiva presente no Hip-Hop e a imaginação política como
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Dessa maneira, mesmo em
condições desfavoráveis,
determinadas práticas culturais
emergem como práticas de resistência,
pregando a coletivização das
experiências, mobilização,
conscientização e intervenção político-
social, indo na contramão daquilo que
está, institucionalmente, estabelecido
(Oliveira, Sathler; Lopes, 2020), pois as
perspectivas construídas dentro desses
contextos atuam diretamente na forma
como os sujeitos compreendem as
relações sociais e a importância da
coletividade.
O rap se apresenta então não
somente como uma expressão
artística, mas como modalidade
discursiva que versa sobre as
(im)possibilidades de vida e de
mudança dos sujeitos marginalizados
socialmente. Ao reivindicar espaços
públicos, articularem experiências
coletivas e promoverem uma crítica ao
sistema e aos discursos vigentes, os
sujeitos do underground subvertem a
racionalidade neoliberal, expressando
não apenas dissidência, mas criando e
ocupando espaços de autonomia e
coletividade.
Valem-se da revolta que sentem,
decorrente dos processos de exclusão
e invisibilização social, para buscar
mudanças e conscientizar a população
sobre as estruturas de poder que
regem a vida em sociedade. Isso fica
claro, por exemplo, nas letras de
Eduardo Taddeo, ex-Facção Central,
onde o rapper diz que:
[...]
Quem não tem o padrão de
vida estabelecido na
constituição federal
Já tá em estado avançado de
putrefação
Quem tem a probabilidade de
uma morte violenta
Por sua condição financeira e
cor de pele
Já sobrevive dentro de um
túmulo
A coroa de flor
É só um detalhe para nós
Que caminhamos sem vida
Na escuridão da indigência
Viver é ter a opção de crescer
profissionalmente
E intelectualmente
De não ser metralhado pela
polícia
De não ser torturado num
sistema prisional
Puramente vingativo
Enquanto não pudermos
impedir o genocídio
O racismo
A alienação
O aprisionamento em massa
A pobreza extrema e a
anulação social
Não passaremos de cadáveres
que respiram
[...]
(Eduardo Taddeo Estamos
Mortos, 2023)
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PALÁCIOS, Renan; SANTOS, Jenniffer Simpson dos. Gritos na margem: a
revolta discursiva presente no Hip-Hop e a imaginação política como
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Dessa forma, suas letras, falas e
ações, atuam como um farol para todos
aqueles que estão às margens da
sociedade, promovendo
conscientização e noção de
pertencimento, dada a semelhança
entre aquilo que é expresso em seus
versos e a realidade cotidiana dos
A partir dessas constatações,
percebe-se, muito claramente, a
presença de imaginação política nas
narrativas apresentadas pelos
rappers/MCs, de modo geral; e isso fica
ainda mais evidente na medida em que
estes sujeitos, dotados de uma posição
de fala-poder, não apenas imaginam
possibilidades de ação, mas agem,
efetivamente, em função da construção
política de coletividades insurgentes,
buscando a inconformidade como fator
comum. Assim sendo, podemos
interpretar esse conceito
[...] como uma forma de
transcender a realidade política
e, assim, desafiar a
conformidade. Ela pode ser
usada para visualizar possíveis
futuros e trazer à vida um
passado real, mas distante.
3No original: [...] a way of transcending political
reality, and thus challenging conformity. It can
be used to visualize possible futures and to
bring to life a real but distant past. It can be a
consciously applied strategy or an unconscious
way of processing desire. In a broad sense,
Pode ser uma estratégia
aplicada conscientemente ou
uma maneira inconsciente de
processar o desejo. Em um
sentido amplo, a imaginação
política destina-se a designar
todos esses processos
imaginativos pelos quais a vida
coletiva é simbolicamente
experimentada e esta
experiência mobiliza-se com
vista à consecução de objetivos
políticos (Glaveanu; Saint
Laurent, 2015. apud.
Duncombe; Harrabye, 2021, p.
2. Tradução nossa)3.
Compreender essas
manifestações a partir do prisma da
análise do discurso nos permite
vislumbrar a construção de narrativas
que recuperam a centralidade do
coletivo e da justiça social, permitindo
que os sujeitos imaginem e atuem,
politicamente, na contestação das
estruturas sociais vigentes. A
resistência, então, é tida não apenas
como um ato de oposição, mas uma
prática criativa que busca construir
novos caminhos e possibilidades de
resistência, desafiando as imposições
de um sistema que desvaloriza a vida
comunitária.
those imaginative processes by which collective
life is symbolically experienced and this
experience mobilised in view of achieving
political aims (Glaveanu and Saint Laurent
2015, p. 559).
268
PALÁCIOS, Renan; SANTOS, Jenniffer Simpson dos. Gritos na margem: a
revolta discursiva presente no Hip-Hop e a imaginação política como
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
O interesse em sufocar as
subjetividades e evitar que os
indivíduos pensem crítico-
criativamente é político. Aqueles que
detém o poder do discurso, possuem a
capacidade de manipular a verdade e
assim obscurecem a capacidade
criativa dos sujeitos, mantendo-os
alienados e fáceis de controlar. O
sufocamento da capacidade criativa se
manifesta na sujeição do discurso e nos
atravessamentos que constituem o
sujeito que ainda não despertou a
consciência sobre a própria situação;
diferentemente daqueles que
constituem o cenário do Hip-Hop e
utilizam da revolta que sentem para
imaginar um futuro melhor, valendo-se
de uma modalidade discursiva, também
política, para geração de mudança.
Dessa maneira, o Hip-Hop se
apresenta como uma possibilidade de
resistência a partir da formação de uma
identidade social e coletiva frente ao
discurso neoliberal de
compartimentalização do social.
Discurso esse que visa a criação de
corpos dóceis e obedientes, sem se
importar com o processo de exclusão,
marginalização, sofrimento psíquico e
angústia, sentidos na pele pelos
sujeitos que por ele são agenciados.
Assim, a imaginação política
oferece o aporte contra-hegemônico
que os sujeitos precisam para desafiar
as políticas neoliberais e seus efeitos
de marginalização, promovendo assim
novas formas de pensar e agir que
buscam reverter a lógica opressiva e
excludente das normas de vida
oriundas do neoliberalismo enquanto
sistema normativo. Assim, ao
compreender a profundidade e as
nuances desses processos, pode-se
dar início ao desenvolvimento de
estratégias de resistência que não
apenas contestem, mas transformem
as estruturas de poder que perpetuam
a marginalização e o silenciamento das
periferias urbanas.
A hegemonia do discurso neoliberal
neoliberalismo surge como uma
tentativa de dar conta das tensões
teóricas e das crises econômicas e
sociais da transição entre as metades
do século XX, mas torna-se uma
política econômica e consolida-se,
sobretudo, como uma racionalidade
p. 3). Entretanto, devido às implicações
desse sistema sobre outras áreas para
além da economia e a política, o
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PALÁCIOS, Renan; SANTOS, Jenniffer Simpson dos. Gritos na margem: a
revolta discursiva presente no Hip-Hop e a imaginação política como
farol. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
neoliberalismo, enquanto discurso,
tornou-se hegemônico e, mais ainda,
transfigurou-se em um sistema
normativo.
Um dos principais autores que
tratam sobre essa questão é Harvey
(2008), que discute os processos
formativos desse sistema ao redor do
mundo, impulsionado pelo fenômeno
da globalização, em sua obra O
neoliberalismo: história e implicações.
No livro em questão o autor descreve o
termo como um conjunto de práticas
políticas que objetiva o pleno exercício
de liberdades e capacidades
empreendedoras individuais no âmbito
de uma estrutura institucional,
caracterizada por direitos à propriedade
privada, livres mercados e livre
comércio. Todavia, constata-se que, ao
longo de seu desenvolvimento, o
neoliberalismo transformou a forma
como a distribuição de poder ocorre
dentro da sociedade, ganhando vida
própria e desmembrando-se do
capitalismo tradicional, não mais
limitando-se a essa definição.
Nesse sentido, estabelece-se
novas relações e usos possíveis para o
termo, e atribui-se a ele o caráter
hegemônico, que se dá, em grande
parte, devido a forma e efetividade
como esse sistema afeta e modifica os
modos de pensamento dos sujeitos na
sociedade, incorporando-se às
maneiras cotidianas de interpretação,
vivência e compreensão do mundo
(Harvey, 2008), além, claro, da forma
como fundamenta certas práticas
institucionais, legitimando a ideologia
neoliberal e sustentando as (novas-
velhas) relações de poder.
Pode-se afirmar, nesse sentido,
que,
O neoliberalismo, enquanto
racionalidade, é pautado na
premissa de que o mercado é o
modelo ideal para todas as
relações sociais, o que implica
em um modo de viver baseado
na competitividade, no lucro
máximo e na crença de que
tudo ou todos pode(m) ser
negociado(s) (Coelho; Neves,
2023, p. 4).
E que, portanto, não deveria ser
reduzido meramente a uma ideologia,
tipo de política econômica ou
contradição do capitalismo, e sim
interpretado como um sistema
normativo particular composto por um
conjunto de discursos, práticas e
dispositivos (Dardot; Laval, 2016) que,
para existir, demanda de novos modos
de ser e pensar (Foucault, 2005, p.
219).
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revolta discursiva presente no Hip-Hop e a imaginação política como
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Visto que o produto desse
sistema é um modo particular de ser
sujeito (Caponi; Daré, 2020, p. 303),
onde os atravessamentos neoliberais e
a lógica da individualização influenciam
as possibilidades do sujeito (Safatle;
Silva Junior; Dunker, 2020), devemos
compreender que esse contexto de
produção de subjetividades (e porque
não vulnerabilidades) molda a(s)
forma(s) de resistência e agência dos
sujeitos (Furlin, 2013).
Territorialidade e marginalização no
cenário douradense
Considerando que as políticas
neoliberais frequentemente resultam
em segregação socioespacial e
reforçam, por meio da opressão e de
discursos meritocráticos, as
desigualdades sociais, abordaremos o
fenômeno da organização espacial da
sociedade como um exemplo da
manutenção do poder em detrimento
das subjetividades e vozes dos sujeitos
marginalizados. Entretanto, para que
isso seja possível faz-se necessária a
compreensão sobre o que é a
territorialidade e quais as influências
dela sobre o processo de
marginalização dos sujeitos das
periferias urbanas.
Sack (1986) afirma que a
territorialidade pode ser interpretada
como um dispositivo de controle social
utilizado por certos agrupamentos para
delimitar e efetivar o controle sobre um
determinado recorte sociodemográfico.
Isso resulta de uma complexa relação
entre as dimensões políticas,
econômicas e culturais de um território,
que podem se transformar de acordo
com os interesses daqueles que estão
territorialidade passa a ser entendida,
então, como estratégia espacial de
controle e influência, marcada por
intencionalidade por parte dos atores
2018, p. 24).
Assim sendo,
A periferização não é uma
conseqüência natural do
crescimento urbano, mas uma
forma racional de promovê-lo
com a segregação social e
espacial, dando aos pobres a
pobreza das condições de vida
que a própria urbanização
segregada produz: distância
excessiva, precariedade de
transporte e vias de acesso,
das construções, da infra-
estrutura em rede, de
segurança, de serviços os mais
diversos etc (Espinheira;
Soares, 2006, p. 5).
Tal organização espacial é uma
manifestação clara das políticas
271
PALÁCIOS, Renan; SANTOS, Jenniffer Simpson dos. Gritos na margem: a
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
neoliberais que perpetuam a
desigualdade e a exclusão social.
Exclusão essa simbólica, diga-se de
passagem, uma vez que existem,
mesmo que precariamente, estruturas
limitam significativamente as
perspectivas e possibilidades de ação
dos sujeitos alvo da segregação devido
a sua ineficácia. Objetiva-se, a partir
a exclusão e a desigualdade, na
medida em que naturalizam a ideia de
que certos grupos sociais o, por
natureza, problemáticos e/ou menos
merecedores de recursos e
oportunidades.
Em última análise, a
marginalização, decorrente do uso
político da territorialidade em
consonância com o discurso neoliberal,
serve como uma ferramenta de controle
social e visa a manutenção da ordem
discursiva estabelecida (Foucault,
2014a), impedindo que os sujeitos
marginalizados desafiem as estruturas
de poder dominantes (Foucault,
2014b).
No contexto douradense,
observou-se claramente esse processo
ao mapear os locais onde as batalhas
de rima acontecem ao longo dos dias
da semana. Exceto pela chamada
Praça Antônio João, localizada bem no
centro da cidade, as demais
localidades apresentam como padrão e
fator comum o distanciamento da
região central.
Tal constatação pode ser
interpretada como o processo de
marginalização, no sentido literal e
simbólico da palavra, da cultura Hip-
Hop na cidade de Dourados MS, uma
vez que, mesmo contando com a
io
no Parque dos Ipês e, por fim, a
Antenor Martins, não qualquer
incentivo da prefeitura municipal para
fomento cultural do Hip-Hop na cidade.
Esse cenário leva os sujeitos
que integram o movimento a articular-
se por conta própria para viabilizar a
expressão da angústia e revolta que
sentem em forma de arte e poesia em
locais públicos, como uma forma de
afirmação de suas existências. Essa
dinâmica se aproxima das heterotopias
em Foucault (2021), onde as mesmas
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PALÁCIOS, Renan; SANTOS, Jenniffer Simpson dos. Gritos na margem: a
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transformações da cultura")
demarcam, tal qual o exercício da
imaginação política, a transformação
de espaços comuns em locais de
significação alternativa, onde novas
formas de poder e identidade são
negociadas e afirmadas a partir do
deslocamento da visão disciplinar do
espaço público para uma prática de
resistência.
ocupação das praças, em sua
maioria distantes do centro, expõe a
marginalização simbólica e territorial da
cultura Hip-Hop, ao mesmo tempo que
transforma esses locais em espaços
alternativos de poder e expressão.
Cada batalha, portanto, reafirma a
presença de vozes historicamente
invisibilizadas, questionando dinâmicas
excludentes e consolidando novas
narrativas de pertencimento e
protagonismo.
Figura 1: Mapeamento das batalhas de rima
em Dourados MS
Fonte: Autoria própria, 2024.
Essa ideia se fez presente no
discurso dos entrevistados, como na
fala do MC 1, que evidenciou a
importância desse movimento de
ocupação de espaços públicos no
exercício de uma resistência ativa e
coletiva ante ao processo de
marginalização das batalhas de rima e
do movimento do Hip-Hop:
E aí, depois da criação da
Batalha, eu fui entendendo,
acho que a grandeza de como
é participar e organizar o
movimento social e cultural, e
isso também foi um baque
pra mim, porque antes de
organizar, eu tinha uma
visão de MC, e ainda uma visão
muito rasa. E aí, depois
organizando, eu tive uma visão
mais profunda sobre o que
representa estar ali ocupando o
espaço público. E depois
você que aquilo ali, e é muito
importante, não por uma
questão de movimentar a cena
ou de rima, mas para a vida das
pessoas que estão
representa muito para as
pessoas. (Trecho da entrevista
com o MC 1).
Ao destacar o caráter coletivo e
a responsabilidade existente na
organização e realização das batalhas,
os MCs enfatizam que tais práticas não
são meramente artísticas ou para fins
de entretenimento, são também formas
de demonstrar poder e jogar luz sobre
os processos de marginalização e
273
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transformações da cultura")
silenciamento de determinados
agrupamentos sociais; isso ocorre na
medida em que mobilizam corpos e
mentes contra a opressão institucional
e fazem oposição aos discursos
hegemônicos vigentes em suas letras e
aparições públicas, que ocorrem em
diferentes localidades da cidade.
Assim, a cultura cumpre seu papel
como ferramenta de expressão, mas
também representa um modo de
resistência ativa, como destacam os
entrevistados.
A gente também ensinando
no palco não como artista
cantando, a gente também
falando de política ali em cima.
A gente também levando a
militância ali em cima, né?
Quando a gente fala da nossa
comunidade, quando a gente
fala dos problemas que
ocorrem dentro da
comunidade, é óbvio que a
gente relatando ali é uma
parada de denúncia ali em cima
também, né? (Trecho da
entrevista com o grupo 1 de
MCs).
[...] é um movimento que critica,
né? Também crítica ao sistema
capitalista, essa é a minha
para mim, todo MC, por
exemplo, ele tem que ser um
guerrilheiro, uma guerrilheira,
porque o capitalismo não é a
entrevista com o MC 1).
O conteúdo obtido através das
entrevistas revela profunda consciência
política e criticidade por parte dos
atores sociais do movimento; tais
elementos são evidenciados por
práticas e falas que buscam, através da
construção de coletividades, a
conscientização da população
marginalizada sobre as estruturas de
poder presentes na sociedade, como
quando afirmam que o que os movem é
a coletividade e a responsabilidade
sobre estar à frente de um movimento
crítico, como destaca o MC 1 ao afirmar
Então, hoje em dia eu acho que
o que me move para continuar
fazendo a batalha, é essa
questão de que não é só sobre
uma batalha e sim sobre um
coletivo, é sobre uma luta,
que também tem essa
grandeza, esse peso, e saber
que uma responsabilidade
grande, que não é carregada
sozinha, mas ainda é
necessário, às vezes aos
trancos e barrancos, né?
(Trecho da entrevista com o
MC 1).
Se fazem presentes nesses
enunciados a crítica ao capitalismo (ao
neoliberalismo na medida em que se
cita a importância da coletividade), e
também a visão dos MCs sobre o Hip-
Hop como um combatente cultural. Tais
narrativas, claramente críticas,
emergem como formas de oposição à
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PALÁCIOS, Renan; SANTOS, Jenniffer Simpson dos. Gritos na margem: a
revolta discursiva presente no Hip-Hop e a imaginação política como
farol. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.260-281, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
hegemonia dos discursos
contemporâneos de individualização e
compartimentalização do coletivo. A
cultural, evidencia que a resistência
praticada cotidianamente pelos sujeitos
que constituem o cenário douradense
do Hip-Hop não é meramente passiva,
mas uma contínua prática de
subversão e criação de espaços
discursivos, reais ou imaginados, como
quando falam de seus sonhos e
aspirações em oposição a realidade
estrutural que a eles se apresenta
atualmente. Isso fica evidente quando
afirmam seus desejos de romper com
as violências que perpetuam a
marginalização do movimento.
Pô, primeiro desejo que a gente
consiga quebrar essa violência
que a cidade tem com a com
culturas periféricas, né? Então
o primeiro passo é quebrar
sonho meu é ter mais apoio da
prefeitura, sabe? Pra gente ter,
por exemplo, é uma iluminação
melhor na praça, pra gente
poder ter equipamento
disponível, ou pelo menos uma
tomada ali pra gente conseguir
conectar um microfone e uma
caixa... Conseguir ter esse
apoio, sem ficar com medo de
sofrer violência policial da
polícia, passar ali e fazer uma
batida e assim, alguma pessoa
ser violentada de alguma
forma, porque vai ser
impacto da polícia, se ela for lá
na praça, como foi outras
vezes nos Ipês, por exemplo,
foi truculento de uma forma
entrevista com o MC 1).
Outro aspecto relevante
apontado é a violência estrutural contra
necessidade de apoio institucional para
a manutenção desse movimento. Algo
que está, aparentemente, longe de
acontecer. Ao citar a abordagem
policial truculenta, revestida de
preconceitos, evidencia-se a
encarnação do poder disciplinar no
sufocamento de qualquer forma de
oposição às normas de vida
consideradas socialmente aceitáveis,
além da tentativa de controle dos
espaços públicos como forma de
manutenção da ordem e supressão da
dissidência. O apoio da prefeitura,
nesse caso, é uma tentativa de
legitimar a cultura do underground
nesses espaços e desafiar a repressão
advinda dos aparelhos (repressivos) do
Estado (Althusser, 1980).
Essa tentativa de legitimação do
movimento aparece nas falas de quase
todos os entrevistados, ficando
evidente quando afirmam que as
pessoas que estão fora do movimento
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PALÁCIOS, Renan; SANTOS, Jenniffer Simpson dos. Gritos na margem: a
revolta discursiva presente no Hip-Hop e a imaginação política como
farol. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.260-281, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
não compreendem a extensão do Hip-
Hop enquanto expressão cultural,
apenas focam em conceitos pré-
estabelecidos sobre como a cultura do
underground está associada à
marginalidade.
hop as pessoas não aceitam
aquilo né, é como se fosse
marginalizado e tudo mais.
(Trecho da entrevista com a
MC 2).
E muitas vezes a gente está ali
na insegurança, com medo da
polícia, mesmo com medo da
repressão. Com medo da
galera extremista, né? Da
política, que acha que ali é
coisa de vagabundo. (Trecho
da entrevista com a MC 3).
Isso é muito importante porque
a gente levando a cultura,
tirando desse senso comum
que a batalha é um lugar
marginalizado, onde traz
ideias fúteis e não, a batalha
tem muito a agregar na
cabecinha de todo mundo.
(Trecho da entrevista com a
MC 2).
Assim, a noção de
marginalização do movimento se fez
presente em todas as entrevistas
realizadas, sendo apresentada de
diferentes formas pelos entrevistados.
De um ponto de vista objetivo, pode-se
interpretar esse processo como uma
estratégia institucional de
desqualificação e controle de práticas
culturais que desafiam a norma.
Os/as MCs, enquanto alvos e
objetos dessas articulações discursivo-
políticas, em oposição a isso, utilizam
suas experiências de vida para criar
narrativas/discursos que ressignificam
as concepções prévias da sociedade
sobre o que é o Hip-Hop, contestando
todo o estigma que recai sobre o
movimento; demonstrando assim que
as batalhas são espaços de construção
e disseminação de conhecimento
crítico e cultural, como destaca a MC 4.
Toda agência que eu infrinjo
efetivamente a nível de
sociedade ou a nível de
articulações que não estão
integradas no que a gente
interpreta como sociedade, é
através da cultura. Então a
minha agência é
exclusivamente cultural, assim,
o que eu consigo dedicar
energia e ver uma mudança
acontecendo é através da
cultura, então não seria... até
eu ser uma agente social, por
exemplo, uma assistente,
alguma coisa, porque eu penso
em trabalhar nessa área, minha
agência ela é cultural, e eu
acho que é uma forma muito
legítima de trazer uma
interpretação coerente da
realidade do momento que a
gente tá vivendo e convidar
reflexões e perspectivas pro
debate. (Trecho da entrevista
com a MC 4).
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PALÁCIOS, Renan; SANTOS, Jenniffer Simpson dos. Gritos na margem: a
revolta discursiva presente no Hip-Hop e a imaginação política como
farol. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Além disso, os discursos
construídos pelos sujeitos do Hip-Hop
douradense servem também como
ferramentas de decolonização e
unificação de pessoas na medida em
que redefinem identidades e desafiam
as divisões impostas pelo colonialismo
e racismo estrutural. A discriminação
contra minorias é destacada, nesse
sentido, como um fator de relevância
para a análise, uma vez que evidencia
como o poder opera através de
determinadas práticas discursivas,
perpetuando preconceitos e
silenciando os gritos daqueles que
buscam por direitos.
Nesse sentido, a ascensão
social dessas populações e a presença
de suas narrativas na grande mídia
desafiam essas práticas e reivindicam
espaço para as vozes historicamente
marginalizadas, jogando luz sobre a
violência, literal e simbólica, do
preconceito sofrido, como destaca o
grupo 1 de MCs.
desde aí, eu falei nossa,
cara. Eu pensei, né? Puff, né?
Não tem ninguém, né? Que fala
por nós, que grita. - Ô estamos
aqui! O povo Kaiowá-Guarani,
o povo Tereno aqui, Mato
Grosso do Sul, Pô, ? Não
tinha ninguém que falava isso
pela gente. Foi, foi quando eu
tinha o quê? Uns 6, 7 anos de
idade naquela época, saca?
Então é uma parada que já né?
Desde pequeno, eu comecei a
luta, né? (Trecho da entrevista
com o grupo 1 de MCs).
você vê que o estado é feito de
agronegócio, o estado é feito
pelo os fazendeiros, saca?
Então ali também um
um preconceito contra o
indígena e ainda mais por ser
um indígena cantando rap
ainda mais preconceito
ainda, saca? (Trecho da
entrevista com o grupo 1 de
MCs).
De modo geral, os enunciados
apresentados pelos MCs destacam o
papel do Hip-Hop como uma forma de
denúncia política das não-condições de
expressão existentes na sociedade.
Essas falas (sejam elas as músicas ou
rimas improvisadas) são uma forma
clara de expressão da resistência
discursiva desses sujeitos ante aos
ideários neoliberais e capitalistas de
individualização, mérito, sucesso e
representado pelos espaços públicos
da cidade, para além de um espaço de
performance, torna-se um local de
articulação política, onde questões de
ordem comunitária são expostas e
debatidas, subvertendo e
reconfigurando as relações de poder
instituídas e promovendo novas formas
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PALÁCIOS, Renan; SANTOS, Jenniffer Simpson dos. Gritos na margem: a
revolta discursiva presente no Hip-Hop e a imaginação política como
farol. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
de identidade/agência dos sujeitos do
movimento Hip-Hop da cidade de
Dourados, sendo a principal ferramenta
de transformação social que os sujeitos
contra as normas sociais do sistema
discursivo/normativo vigente.
rap hoje, tipo é
quebrando esse corrente,
quebrando esse barreira que
existe entre branco, negros e
índios, sabe? (Trecho da
entrevista com o grupo 1 de
MCs).
Compreende-se, a partir da
perspectiva analítica adotada e da
análise dos enunciados acima
descritos, que a imaginação política se
encontra efetivamente inserida nos
discursos analisados e serve não
apenas para imaginar um mundo
igualitário, mas também atua como um
chamado à ação, isto é, como um farol
que guia os sujeitos marginalizados à
resistência e a coletividade.
Destaca-se também a
necessidade de adoção de uma
perspectiva decolonial para a análise
efetiva desses enunciados, que se deu
no decorrer do processo de
estruturação/organização dos
resultados obtidos. Tal ação fez-se
necessária na medida em que os
conhecimentos acessados nas
principais bases de dados para
pesquisa não contemplaram sequer
uma terça parte da temática,
evidenciando considerável limitação de
produções científicas sobre o assunto.
Dessa maneira, conforme
evidenciado por Amaral (2021), adotar
essa abordagem permitiu uma
compreensão mais ampla sobre a
estruturação das relações de poder na
sociedade a partir do prisma da
colonialidade e, por essa razão, foi
adotada em complemento à
metodologia escolhida para a
realização da pesquisa.
A análise resultante disso
revelou que os/as MCs não apenas
criticam o sistema capitalista e a
percepção social negativa do Hip-Hop,
mas também constroem novos
caminhos através de suas ações. Eles
se envolvem ativamente na promoção
de eventos culturais, na busca por
apoio institucional e na inclusão de
artistas locais, mostrando uma
resistência prática e contínua ante as
desigualdades resultantes dos
discursos neoliberal e capitalista.
Ademais, os entrevistados
relataram ainda a importância de
fomentar a cultura urbana local,
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PALÁCIOS, Renan; SANTOS, Jenniffer Simpson dos. Gritos na margem: a
revolta discursiva presente no Hip-Hop e a imaginação política como
farol. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
trazendo shows que normalmente não
seriam acessíveis e criando espaços
seguros para a expressão artística,
destacando a necessidade de desafiar
os estereótipos associados ao Hip-Hop.
As entrevistas também evidenciaram o
esforço em incluir mais mulheres e
outras minorias no cenário musical,
criando uma rede de apoio e
visibilidade para essas artistas.
Considerações finais
Ao analisar os enunciados
apresentados pelos MCs do cenário
douradense de Hip-Hop, à luz da
Análise do Discurso, observou-se um
movimento constante de resistência à
hegemonia discursiva neoliberal, onde
os sujeitos utilizam a música e a cultura
como meios de subversão e
transformação social, isto é, utilizam
desses meios para não somente
expressar a revolta, produto do
processo de marginalização do Hip-
Hop, mas também para reivindicar
espaço de fala e melhora das
condições necessárias para o exercício
da cidadania através do mic. A
imaginação política presente no
discurso das pessoas entrevistadas é
vista, portanto, não apenas como um
sonho utópico, mas como uma
realidade tangível, moldada pelas
ações cotidianas dos artistas e ativistas
que constituem o movimento na cidade
de Dourados.
É importante destacar que
pesquisa não contribui para a
compreensão teórica da imaginação
política, mas também para a
compreensão da importância do Hip-
Hop como uma ferramenta ptica de
transformação social, pois demonstra,
através das relações teórico-
conceituais elaboradas, como as/os
MCs estão ativamente envolvidas/os na
construção de um futuro baseado na
coletividade, imaginando,
politicamente, diferentes formas de
resistir às opressões e contradições do
sistema normativo vigente.
Ademais, considera-se que se
estabeleceram as relações possíveis
com os conteúdos acessados ao longo
das entrevistas e investigações
complementares; e salienta-se que a
análise realizada não tem qualquer
pretensão de chegar a uma conclusão
específica ou a uma verdade absoluta
sobre o assunto. Pelo contrário, ela
objetiva meramente questionar as
estruturas de poder vigentes,
colocando em voga a possibilidade de
resistência comunitária ante ao
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PALÁCIOS, Renan; SANTOS, Jenniffer Simpson dos. Gritos na margem: a
revolta discursiva presente no Hip-Hop e a imaginação política como
farol. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.260-281, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
fenômeno de individualização e
compartimentalização do coletivo vivido
na contemporaneidade.
É importante destacar também
que a perspectiva aqui elaborada pode
conter limitações conceituais e
técnicas, considerando a polissemia do
termo em debate e as adversidades
encontradas durante o processo de
pesquisa sobre informações adicionais
de usos possíveis do conceito; dessa
forma, os resultados obtidos e as
relações estabelecidas correspondem
a uma interpretação possível dentre
várias outras. Destaca-se, nesse
sentido, a necessidade de estudos
posteriores sobre o assunto de modo a
complementar as informações
alcançadas ao longo do
desenvolvimento do presente trabalho,
que é fruto do Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC),
da Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD).
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282
BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
ontem. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.282-304, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Entre o biográfico e o coletivo: fabulações em torno do Hip-Hop no
Documentário AmarElo: é tudo pra ontem
Caio Barbosa1
Rosane Sampaio2
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v15i28.65564
Resumo: Este artigo constitui um exercício investigativo sobre a articulação entre o biográfico e o
coletivo em narrativas ao redor do rap. Para isso, analisamos o movimento poético-performático
construído no documentário-concerto AmarElo: é tudo para ontem (2020). Quer-se entender como esse
filme faz emergir sentidos que possibilitam o diálogo entre aspectos coletivos e individuais na busca
pela inscrição de uma determinada perspectiva nos debates sobre a cultura Hip-Hop e sobre as
matrizes culturais negras do Brasil. A hipótese apresentada foi que as experiências individuais podem
servir de esquemas para a reorganização da memória coletiva e podem promover articulações
temporais, além de tensionar as convenções no campo simbólico do Hip-Hop brasileiro. Como
perspectiva teórico-metodológica, foi adotada uma conexão entre as proposições de Paul Ricoeur,
sobre tempo e narrativa, associadas à discussão sobre o conceito de performance, apresentado por
André Brasil e Diana Taylor, e ao conceito de tradição seletiva, de Raymond Willians. Foi possível
concluir que a fabulação realizada através da seleção e organização discursiva de acontecimentos
históricos, sonoridades, sujeitos e performances durante o documentário-concerto é fundamental para
reorganizar o campo simbólico do Hip-Hop no Brasil, produzindo novos sentidos e convenções.
Palavras-chave: rap, narrativa, tradição, performance.
Between the Biographical and the Collective: Fabulating Around Hip-Hop in the Documentary
AmarElo: é tudo pra ontem
Abstract: This article constitutes an investigative exercise on the articulation between the biographical
and the collective in narratives revolving around rap. To this end, we analyze the poetic-performative
movement constructed in the concert-documentary AmarElo: É Tudo para Ontem (2020). The goal is to
understand how this film brings forth meanings that enable dialogue between collective and individual
aspects in the pursuit of inscribing a particular perspective within the debates on Hip-Hop culture and
the Black cultural matrices of Brazil.The hypothesis presented is that individual experiences can serve
as frameworks for the reorganization of collective memory and can promote temporal articulations, in
addition to challenging conventions within the symbolic field of Brazilian Hip-Hop. As a theoretical-
1Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-
mail: caiobn.j@gmail.com. ORCID: orcid.org/0000-0002-4212-7961.
2Doutoranda em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Mestre em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-
mail:sampaiorosane042@gmail.com ORCID:orcid.org/0009-0000-7792-4891.
Recebido em 30/11/2024, aceito para publicação em 20/12/2024.
283
BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
ontem. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.282-304, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
narrative, the discussion on the concept of performance presented by André Brasil and Diana Taylor,
and Raymond Williams
carried out through the selection and discursive organization of historical events, sounds, subjects, and
performances throughout the concert-documentary is fundamental for reorganizing the symbolic field of
Hip-Hop in Brazil, producing new meanings and conventions.
Keywords: rap, narrative, tradition, performance.
Entre lo Biográfico y lo Colectivo: Fabulaciones en Torno al Hip-Hop en el Documental AmarElo:
é tudo pra ontem
Resumen: Este artículo constituye un ejercicio investigativo sobre la articulación entre lo biográfico y
lo colectivoen narrativas en torno al rap. Para ello, analizamos el movimiento poético-performativo
construído em el documental-concierto AmarElo: É Tudo para Ontem (2020). Se busca entender cómo
esta película hace emerger significados que posibilitanel diálogo entre aspectos colectivos e
individuales em la búsqueda por La inscripción de una determinada perspectiva em los debates sobre
la cultura Hip-Hop y sobre lãs matrices culturales negras de Brasil. La hipótesis presentada es que las
experiencias individuales pueden servir como esquemas para La reorganización de la memoria
colectiva y pueden promover articulaciones temporales, además de tensionar las convenciones en el
campo simbólico del Hip-Hop brasileño. Como perspectiva teórico-metodológica, se adoptó una
conexión entre las proposiciones de Paul Ricoeur sobre tiempo y narrativa, La discusión sobre el
concepto de performance presentada por André Brasil y Diana Taylor, y el concepto de tradición
selectiva de Raymond Williams.Se pudo concluir que La fabulación realizada a través de La selección
y organización discursiva de acontecimientos históricos, sonoridades, sujetos y performances a lo largo
del documental-concierto es fundamental para reorganizar el campo simbólico del Hip-Hop en Brasil,
produciendo nuevos significados y convenciones.
Palabras clave: rap, narrativa, tradición, performance.
Entre o biográfico e o coletivo: fabulações em torno do Hip-Hop no
Documentário AmarElo: é tudo pra ontem
Introdução
O interesse por tematizar a
história, as práticas, estilos e os atores
do movimento Hip-Hop sempre
mobilizou o campo cinematográfico. No
início da década de 80, apenas dez
3Faça a coisa certa (Lee, 1989) e Style Wars (Silver, 1983) o exemplos de produções ficcional e
documental, que apresentam o Hip-Hop e o graffiti e suas influências na construção do imaginário
simbólico da cultura afro-estadunidense e dos subúrbios nova iorquinos em específico.
anos após a eclosão desse fenômeno,
surgiram os primeiros filmes3
retratando a efervescência cultural,
política e social que emergia das ruas
do subúrbio de Nova York e se
espalhava pelo mundo.
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
ontem. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.282-304, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Nos anos seguintes, novas
narrativas fílmicas foram construídas
trazendo perspectivas diferentes das
narrativas hegemônicas que atuavam
pela manutenção de estigmas sobre o
Hip-Hop na sociedade (Guimarães,
2015, p.50). Estratégias eram
construídas para mobilizar a indústria,
preservar memórias e produzir
discursos sobre esse movimento que
atuava renovando estéticas da dança,
da sica e da arte visual e
apresentando diferentes (e
contraditórios) valores que se
originavam das intensas trocas
culturais, e também dos conflitos entre
negros norte-americanos e a população
hispânica. Isso tudo em um contexto de
resistência às violências física, material
e simbólica violências essas que o
Hip-Hop, justamente, visava combater
através dos principais elementos que
formam essa cultura: o break, o DJ, o
graffiti e o rap.
Entre esses elementos, um dos
que mais se popularizou foi o gênero
musical rap, sigla do termo rhythm and
poetry, que, no final dos anos 80,
teve seu estilo adotado por grupos
musicais ao redor do mundo, inclusive
4Rap da felicidade (Cidinho e Doca, 1995).
no Brasil. Diversos grupos, sobretudo
nas favelas das capitais do país,
encontraram, na batida eletrônica e nos
versos falados, um modo apropriado
para evidenciar o contexto
socioeconômico de comunidades
marginalizadas, tanto no que diz
respeito à falta de assistência do
Estado e alto índice de violência quanto
no sonho de construir novos futuros
para que o desej
tranquilamente na favela em que eu
4pudesse se tornar uma
realidade.
O sucesso musical dos artistas
do gênero foi alavancado pela indústria
fonográfica e midiática, sobretudo pelas
rádios e pelas redes de televisão, além
da publicidade e do cinema, que
organizavam não apenas modos de
produzir, circular e consumir essa
sonoridade, mas também
apresentavam performances de escuta,
estilo de vida e valores associados aos
integrantes dessa cultura, evidenciando
que esse fenômeno trazia em si
distintos, delineando um estilo de vida
no mercado de bens simbólicos e
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
ontem. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.282-304, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
(Santos, 2022, p.18). Dessa forma, as
estratégias da indústria para a
consolidação desse gênero articulavam
as vivências nas ruas a uma forte
presença nas ambiências midiáticas,
permitindo que a musicalidade, os
discursos, atores e códigos identitários
desse movimento ganhassem força.
As estratégias para legitimação
e consolidação do Hip-Hop,
particularmente do rap no cenário
musical, ganharam um novo salto com
entrelaçou os modos de produzir,
circular e consumir música e apontam
para a emergência de novos
agenciamentos entre música,
anotti
Jr., 2020, p.12). Esses agenciamentos
passam por novos modos de
vinculação entre o local e o global, pelo
embaralhamento das fronteiras entre o
que é voltado a um público massivo e o
que é nichado, bem como criam novas
frentes para mobilizar a disputa por
enquadramentos próprios da indústria
da mídia, que ora empoderam, ora
arrefecem essas concepções.
Nessa ambiência digital,
variadas materialidades áudio-verbo-
visuais têm sido exploradas por grande
número de atores do Hip-Hop ou para
circulação e consumo de produções,
construção discursiva, para
proximidade entre público e artistas do
campo, ou para a emergência de novas
carreiras. Também a organização de
narrativas sobre a história da cultura
Hip-Hop, suas raízes, valores e a
biografia de seus atores tem sido um
fenômeno crescente nesse
ecossistema. São produções pautadas
pela reivindicação de uma política
estética que marca tanto a parte
específica que cabe ao Hip-Hop no
todo da cultura afro-diaspórica, quanto
aquilo que ela compartilha com todos,
no que é comum (Rancière, 2009).
Diante disso, esse artigo visa
discutir como produções audiovisuais
sobre a cultura Hip-Hop acionam
imagens e elementos afro-diaspóricos
na fabulação das narrativas
construídas em torno do gênero rap e
das suas interfaces com outros gêneros
musicais , relacionando-os com
percursos biográficos/históricos dos
agentes históricos desse movimento.
Para tanto, tomamos como
fenômeno a narrativa visual (tanto
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
ontem. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.282-304, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
pessoal quanto coletiva) apresentada
por Emicida, no documentário AmarElo:
é tudo para ontem (2020) parceria
entre a Laboratório Fantasma e a
Netflix , na busca por entender como
esse documentário-concerto tensiona
sentidos alternativos com os
hegemônicos a partir da performance,
dos discursos e do entrelaçamento das
suas fabulações visuais que, ao
articular a experiência biográfica à
experiência coletiva como estratégia de
estabelecimento de uma tradição,
operam tanto exclusões como
elaboram novas convenções no campo
da cultura.
A partir da perspectiva de que a
narrativa artístico-biográfica de Emicida
está sugerida como resultante de uma
série de elementos constitutivos de
uma narrativa coletiva afro-diaspórica
brasileira, levantamos a hipótese de
que a construção de uma narrativa
5Não será abordada aqui, numa reflexão
aprofundada, a teoria do romance, mesmo
sabendo que poderia ajudar a justificar o uso do
adjetivo romanesco. Contudo, considera-se o
estudo de Georg Lukács sobre o romance
auxiliar no entendimento das narrativas
anali
fim do mundo romanesco, determinados por
início e fim do processo que preenche do
conteúdo do romance, tornam-se assim marcos
impregnados de sentido de um caminho
claramente mensurado. Por menos que o
romance esteja efetivamente vinculado ao
começo e ao fim naturais da vida, a nascimento
poético-performática, que emenda o
biográfico ao coletivo no documentário-
concerto, constituiu movimento de
reorganização e disputado campo
simbólico relacionado ao Hip-Hop
brasileiro. Isso porque as experiências
individuais podem servir de esquemas
para reencaixar a memória coletiva
mais ampla e podem promover novas
articulações entre passado, presente e
futuro com o objetivo de estabilizar
novos sentidos e convenções.
Teias de AmarElo: das biografias
particular e coletiva a uma tradição
contemporânea do Hip-Hop
Pode-se dizer que AmarElo: é
tudo pra ontem, documentário-concerto
concebido por Emicida, em 2020,
apresenta uma estrutura facilmente
reconhecível: desde o início, esboça
um diálogo romanesco5entre células
narrativas que, por fim, culminará no
e morte, ele indica, no entanto, justamente pelo
meio dos pontos onde se inicia e acaba, o único
segmento essencial determinado pelo
problema, abordando tudo que lhe seja anterior
ou posterior em mera perspectiva e em pura
referência ao problema; sua tendência, pois, é
desdobrar o conjunto de sua totalidade épica no
2000, p. 83). Então, em uma analogia possível,
as narrativas contadas nessa obra áudio-verbo-
visual funcionam como aquelas agenciadas em
narrativas escritas e possuem, pela sua
natureza, início, problema, resolução e final.
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
ontem. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.282-304, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
espetáculo de mesmo nome no teatro
municipal de São Paulo. Na sua
realização, encontram-se aspectos
metafóricos, mudança de estados dos
sujeitos, transformações de
perspectivas individuais e coletivas,
além de dramaticidade e de relações de
causa e efeito. E mais, se se considerar
a estrutura como romanesca, arrisca-se
dizer que em seu bojo, existe um herói
moderno/romântico que conduz todos
os enredos: Emicida.
Foi por esse caminho que
observamos a existência de um
fenômeno que ainda carece de
investigação: como sujeitos da cena do
Hip-Hop brasileiro, particularmente do
rap, produzem em seus trabalhos
áudio-verbo-visuais um entrelaçamento
entre a narrativa biográfica e a narrativa
coletiva afro-diaspórica no Brasil?
Consideramos que investigar narrativas
verbais e visuais utilizadas pelo
documentário AmarElo: é tudo pra
ontem (2020), visando articular esses
dois campos, o pessoal e o coletivo,
permitirá entender a construção das
estratégias discursivas sobre o Hip-Hop
no Brasil que intencionam reorganizar a
história desse movimento,
particularmente de sua sica e de
seus principais atores, em relação à
cultura afro-diaspórica, sobretudo na
manifestação de suas performances
culturais que, como explica Futata
(2021), não tem um viés utilitário como
acervo de patrimônios históricos, mas
vital que impulsiona os corpos, e
criadora de futuros, pela experiência
disruptiva que interfere inclusive na
(Futata, 2021, p.191).
Observamos que todo o
documentário-concerto é narrado em
primeira pessoa, pela voz do próprio
Emicida. É o seu olhar, a sua
perspectiva, a sua percepção da
história do povo negro através do
século XX que seleciona, legitima e
deslegitima, destaca os eventos,
conhecimentos, práticas, produtos,
agentes históricos e todo um passado
que é filtrado e organizado por sua
visão que constrói, nos termos de
Williams (1977), uma tradição seletiva.
Segundo o autor, existem três
níveis de cultura: o primeiro é o da
cultura vivida, que é acessível
inteiramente apenas às pessoas que
são contemporâneas a determinado
cenário e vivem em um tempo e lugar
específicos; outro nível é a cultura
registrada, ou documentada: o conjunto
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
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Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.282-304, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
dos artefatos, conhecimentos, práticas,
objetos que sobreviveram ao momento
de sua emergência e estão disponíveis
em momentos históricos
marcadamente distintos; por fim, o
terceiro nível de cultura, a tradição
seletiva, que é o processo deliberado
pelo qual a cultura vivida (primeiro
nível) é conectada à cultura registrada
(segundo nível), construindo, a partir do
presente, uma visão organizada sobre
o passado que serve para legitimar
determinadas práticas, atores e valores
no próprio presente e em direção ao
futuro.
Esse processo é complexo na
medida em que olhar para o passado
através dos seus registros permite
entrever apenas uma pequena parcela
de uma vivência cultural muito mais
profunda e sofisticada. Partindo da
perspectiva de Williams (1977), Leal e
Sacramento (2019), pode-se notar que
a tradição seletiva constitui um recorte
sobre essa parte reduzida pelos
documentos, deixando de fora diversos
outros elementos que escapam ou são
estrategicamente excluídos porque não
contribuem para o discurso que se
pretende fortalecer.
Dessa forma, ao desenvolver
qualquer linha da tradição há sempre a
possibilidade de criar outras seleções e
alternativas, trazendo para o centro
fatos, produtos, práticas que foram
desconsideradas em uma organização
específica. Dessa forma, seria possível
transformar perspectivas dominantes
sobre determinado universo cultural
através de uma nova conexão entre
passado, presente e futuro.
Para isso, Emicida utiliza sua
visão pessoal como justificativa para a
produção do show e entrelaça aspectos
selecionados da história da cultura
africana e do Hip-Hop a falas sobre vida
cotidiana, sobre sua história
profissional e sobre processo de
criação artística relacionadas ao álbum
e ao show que não deixam de
evidenciar uma justaposição político-
identitária que se vislumbra na história
contada sobre um coletivo que
interferiu, por sua vez, na construção
da sua própria história pessoal.
Entretanto, nesse percurso, para
compreendermos os contornos
biográficos presentes no documentário
articulados à narrativa coletiva,
primeiramente, consideramos a
afirmação de Ricoeur (2016, p.85) de
na medida em que é articulado de um
modo narrativo, e que a narrativa atinge
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
seu pleno significado quando se torna
Ou seja, para que se haja dimensão
cronológica da existência humana, é
necessário organizar os fatos ocorridos
a partir de uma operação ficcional; por
outro lado, para que uma história
ficcional seja plenamente acessada, é
preciso fazê-la parecer um
acontecimento vivido.
A primeira operação proposta
por Ricoeur (2016) pode ser observada
em AmarElo, que existem
construções narrativas biográficas ali
presentes. Emicida organiza fatos de
sua vida e os imbrica com fatos e
narrativas de personagens históricas
importantes para o povo negro e para a
história cultural e social do Brasil. A sua
vida particular é apresentada em
alguns trechos, como quando ele
começou nos shows de rap, quando ia
a lojas de discos e quando divide o
cotidiano com suas filhas ou regando
plantas ou escrevendo6.
6Inclusive, Emicida aparece escrevendo em
uma antiga máquina de escrever. Nesse
momento, ele faz uma referência em sua fala
ao fato das coisas se dissiparem rapidamente
pode deixar que isso tudo se dissipe no digital.
Evidentemente que o gesto de Emicida
representa uma resistência à debandada de
Ele organiza esses momentos e
os ficcionaliza, ao escolher momentos-
chave para a compreensão da sua
trajetória (em imagem e som ou em
palavras), como os primeiros shows e a
busca por referências musicais até o
dia a dia com sua família, além do
desfile de moda de sua marca
Laboratório Fantasma, na São Paulo
Fashion Week. Construindo uma linha
cronológica em torno de sua premissa
a de que ele é a epítome de uma série
de personagens, fatos histórico-
culturais brasileiros , ele produz e
permite uma percepção coerente com a
proposta de realizar o show no Teatro
Municipal. Sobre esse aspecto, deduzir
que Emicida lança sua trajetória para o
espaço simbólico do herói, não seria
equivocado, pelo menos nesse viés de
análise.
Em seguida, partindo para
entender o encontro (há que se dizer
teleológico) entre indivíduo e coletivo,
proposto pelo documentário, a partir
das narrativas particular e coletiva, a
informações no meio digital e uma possível
perda de sentido delas nessa conjuntura. A
escrita em máquina de escrever, então, pode
comunicar que um gesto largo e demorado de
um escrever mais lento do que num dispositivo
eletrônico é reflexo de um pensamento
consolidado.
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
outra ponta a considerar: os
acontecimentos e personagens que
marcaram a construção de São Paulo.
Eles foram selecionados para justificar
o caminho construído pelo próprio
Emicida, a partir de releituras e
seleções de experiências do passado
que encaminham o olhar para suas
próprias práticas e produções, criando
uma configuração específica sobre
esse fenômeno.
É possível observar como o
autor elabora uma visão,
aparentemente óbvia e naturalizada,
que conecta o passado ao presente em
direção ao futuro. Ele vai desde fins do
século XIX, com a propagação da ideia
de que era necessário embranquecer a
população brasileira, passando pela
afirmação de que o metrô São Bento foi
importante para a periferia de São
Paulo e chega à ascensão do Hip-Hop
nas periferias de São Paulo, pela fusão
do rap com gêneros musicais de matriz
brasileira, em finais do século XX e
início do século XXI. Portanto, um
traçado cronológico que atravessa
7O conceito de polifonia foi desenvolvido por
Bakhtin após estudos sobre a obra de
Dostoiévski. Ele aponta o caráter plurivocal e
independente das vozes dentro de um
romance, como se fossem consciências
espaços físicos e simbólicos, que
ficcionaliza essa narrativa histórica e
permite a percepção de causa e efeito,
de início, meio e fim entre os
acontecimentos elencados como os
mais importantes.
Essa ordem está agenciada na
justificativa do percurso de Emicida.
Não por menos, fica evidente quando,
como uma pista, ele fala sobre a
emancipação dos jovens negros,
inclusive econômica, em ambiente
digital. Ainda declara que faz parte do
grupo dos jovens que pretende
(Amarelo, 2020). Nesse contexto, ele
(Leandro - como a mãe me chama) sou
para destacar que seu papel é também
reapresentar o lugar que cabe ao Hip-
Hop na realidade cultural brasileira.
Há, então, uma narrativa
composta por narrativas, uma narrativa
polifônica7, que desaguam no show
AmarElo8enquanto um fazer, um agir e
independentes que se equiparam à voz do
narrador (Bakhthin, 2013).
8 que se ressaltar que a composição do
show também é uma narrativa. No entanto, no
que concerne ao exercício de análise aqui feito,
foram eleitas as duas comentadas ao longo
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
parte do narrador e de seu auditório
uma familiaridade com termos tais
como agente, objetivo, meio,
circunstância, ajuda, hostilidade,
cooperação, conflito, sucesso,
-99).
Objetivamente, a narrativa pode
ser entendida como um repositório de
referências da experiência dos seus
partícipes, do narrador ao receptor. Ou
seja, é preciso entender os elementos
que compõem as histórias antes de ter
entrado em contato com elas. Além do
mais, ação e sofrimento (ancorados em
agir e sofrer) promovem a
compreensão da mudança tímica que
deve ocorrer em uma estrutura
narrativa canônica. Por fim, para que
haja o fazer, é preciso a compreensão
do agir, do sofrer e dos termos
relacionados a eles.
Por outro lado, não se pode
entender a narrativa somente por esses
termos, porque, para construí-la, são
necessários aspectos discursivos
(Ricoeur, 2016) que a transponham
poeticamente e que, portanto,
propiciem a emergência de sentidos.
Esses aspectos possibilitam uma
do texto por conta do diálogo profundo
estabelecido entre elas.
ordem sintagmática e uma percepção
da narrativa no campo prático. Em
tempo, a ordem sintagmática é o que
proporciona o agenciamento dos fatos,
a intriga (Ricoeur, 2016). Segundo
Ricoeur:
[...] a ordem sintagmática do
discurso implica o caráter
irredutivelmente diacrônico de
toda a história narrada. Mesmo
que essa diacronia não impeça a
leitura de trás para frente da
narrativa, característica, como
veremos, no ato de recontar, essa
leitura que remonta do fim para o
começo da história não abole a
diacronia fundamental da
narrativa (Ricoeur, 2016, p. 99).
AmarElo é dividido em três atos:
ATO 1 Plantar; ATO 2 Regar; ATO
3 Colher. Nesses atos, os temas
abordados se repetem, que com
enfoques diferentes e materialidades
audioverbovisuais diferentes. Como
mesmo sugerem os seus títulos, veem-
se início, meio e fim metaforizados,
compreendendo, portanto, que os
elementos narrativos, tanto biográficos
quanto histórico-culturais, e os temas
que atravessam essas histórias, desde
sua passada invisibilização até a
presente materialização e importância,
serão organizados para que emerjam
292
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
aspectos discursivos que caracterizem
os acontecimentos como
irremediavelmente inevitáveis.
O desenvolvimento do enredo
a vida de Emicida e a história social e
cultural pela perspectiva afro-
diaspórica da cidade de São Paulo e do
Brasil , as peripécias, as escolhas
dentro da tradição, o clímax e a catarse
estão dentro dessa estrutura nomeada
como plantar, regar e colher por
Emicida. Acrescenta-se nessa análise
um prólogo e um epílogo, o que
arrematam os contornos narrativos de
AmarElo.
Performatividades em AmarElo: dos
repertórios vividos a uma
experiência imaginada
Chama-se de prólogo o
momento no documentário em que
Emicida apresenta, em linhas gerais,
reflexões sobre o significado, para ele,
da produção e da culminância do show
no Teatro Municipal de São Paulo.
Tudo se inicia quando ele fala um
ditado de Exu, de matriz Iorubá, que
anuncia o que virá nos próximos
matou um pássaro ontem com a pedra
A princípio, esse ditado pode
não deixar explícita a sua função dentro
da história que vai ser contada, mas, ao
longo do caminho, entende-se a sua
presença. É como se os
acontecimentos e os personagens
históricos ali elencados tivessem uma
ligação direta com o presente e vice-
versa. Ou seja, é a ação realizada no
presente (o documentário) tanto
organiza o entendido do que foi feito
antes (a história da cultura negra),
quanto é o resultado direto de todo esse
conjunto de experiências vividas.
Seguindo no desenvolvimento
do prólogo, vemos imagens aéreas da
periferia de São Paulo; ouvimos sobre
a história do Brasil, especificamente
sobre o desenvolvimento de São Paulo;
sobre a escravidão e sobre,
principalmente, o desenvolvimento de
São Paulo atrelado à escravidão e à
abolição. No entanto, de maneira
contumaz, ouvimos Emicida falar sobre
suas vivências. São recorrentes falas
sinto que eu voltei e para contar minha
história, preciso contextualizar umas
Aliada a essas falas, resta uma
incerteza sobre para quem ele se
dirige. Inclusive, na abertura do
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
documentário, é projetada uma citação
de Mário de Andrade, em Pauliceia
Desvairada
prazer de descobrir minhas conclusões,
confrontando obras e dados. Para
quem me rejeita, trabalho perdido
explicar o que, antes de ler, não
se Emicida se enxergasse nessa
reflexão de Mário sobre quem se
debruça sobre sua história, sobre o que
ele tem a dizer. Ele a vislumbra
possíveis interlocutores e os coloca
como possíveis curiosos ou
indiferentes, mas nada fica claro.
Como num fluxo de consciência,
Emicida fala sobre o Brasil ser o último
país a abolir a escravidão, sobre o ciclo
do café ser apoiado nela. Além disso,
refere-se ao abandono dos negros no
processo pós-abolição e da política de
embranquecimento da população
brasileira. E mais, fala de
multiculturalismo e como o movimento
Hip-Hop foi importante para a juventude
negra de São Paulo. Figuras como
Mateus Aleluia, velhinhas da Penha e
jovens negros da periferia de São Paulo
vão se misturando ao discurso de
caráter político, permitindo a percepção
de que todos os espaços geográficos e
simbólicos e todas as personagens,
cotidianas e histórico-culturais, estão
interligados.
Por outro lado, avançando pelas
diversas perspectivas materializadas
no documentário, se pode
vislumbrar, nas primeiras passagens,
que as narrativas contadas em
AmarElo orbitam a narrativa biográfica
de Emicida e a construção de sua
persona artística. Ou seja, os fatos são
organizados por um gesto ficcional que
articula os acontecimentos de sua vida
a uma sequência cronológica de
eventos políticos, sociais e artísticos de
um movimento que perpassa a história
de toda uma cultura. Infere-se que,
somente assim, será possível acessar
corretamente essa realidade.
Em tempo, ao considerar essa
premissa, pode-se dizer que o discurso
construído chama em causa o
arquétipo do herói, daquele que serve
de exemplo, que erige uma trajetória
exemplar. Ele mesmo apresenta o
porquê de contar essa narrativa,
atribuindo a ela a importância de um
exemplo a ser seguido.
Considerando essa leitura, é
possível enxergar nessa narrativa um
ato performativo, nos termos de André
Brasil (2011), que se refere à
performance como o que está entre o
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
mundo vivido e o imaginado. Segundo
ele,
[...] não são poucas as
experiências em que as imagens
parecem não apenas representar
ou figurar não apenas,
ressaltemos logo mas inventar,
produzir formas de vida, estas que
mantêm com a obra uma relação
de continuidade (em certos
aspectos) e descontinuidade (em
outros). (Brasil, 2011, p.5)
Depreender que uma
aspiração heroica na conduta de
Emicida, portanto, significa,
considerando esse conceito de
performance, dizer que ela está entre o
que foi projetado em imagens (vida de
pai, de filho, de artista, de empresário)
e o que se imagina heroico e/ou, em
outras palavras, predestinado a partir
dessas imagens. Ou seja, o que se
apresenta visualmente é a busca
incessante da performance, que é uma
intenção, algo imaterial, uma força
(Brasil, 2011), pela forma, pela
materialização.
Em seu trabalho, Emicida não
apenas expõe mbolos e
personalidades que dão consistência à
sua experiência, mas também
apresenta uma performance em torno
delas, pelo modo como ele mobiliza, na
perspectiva de Diana Taylor (2023),
arquivos (objetos, documentos,
espaços, vídeos) e repertórios (língua
falada, dança, rituais, modos de fazer)
de uma experiência cultural tensionada
entre continuidades e transformação na
comunidade negra que ele representa
de um modo próprio no documentário.
Sua performance, nesse caso,
constitui um ato de transferência de
conhecimento, de memória e de
especificidade cultural e histórica
existente na encenação quanto na
possibilitando uma compreensão mais
acurada da narrativa por ele construída
e do modo como ele pensa a si mesmo
e sua comunidade de pertença.
Isso ocorre, por exemplo, na
que conta com participação do pastor
Henrique Vieira. A canção e
participação do religioso são
precedidas pela sucessão de dois sons
extradiegéticos: primeiro, o som do
atabaque sendo tocado enquanto
contemplamos uma imagem da
movimentada Avenida Tietê em São
Paulo e, logo em seguida, o som de
sinos. Nesse ponto, inicia-se a fala do
cantor baiano Mateus Aleluia, dizendo
acordados pelos sinos da igreja católica
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
ontem. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.282-304, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
que reprimia o candomblé! Aquilo era
bonito, mostrando que pronto - s
nascemos para viver incluído, e não
Na cena seguinte, escutamos
um diálogo de Emicida com a cantora
Fabiana Cozza no qual ele apresenta o
pastor, am
que participa da música que abre o
aparece logo em seguida, com vestes
eclesiásticas, em um lpito, em
gravação feita num templo cristão,
pregando o Evangelho. A pregação se
torna um poema e um templo é trocado
por um estúdio enquanto ouvimos
espiritualidade: latente, potente, preto,
rápida troca de falas entre eles, vemos
Emicida sozinho no palco.
Essa é a única vez no
documentário em que Emicida está
abaixado, quase ajoelhado, diante da
plateia. Neste momento, enquanto
ouvimos sons de agogôs e o cantarolar
de vozes, ele apresenta uma fala em
que atrela sua própria experiência de
vida e sua atuação profissional a uma
reorganização não apenas dos
sentidos sobre o passado, mas da
própria subjetividade de cada pessoa
negra que tiver contato com sua
produção artística.
A primeira vez que eu fui na África,
o meu amigo Chapa me levou em
um museu que tem em Angola
que eles chamam de Museu da
Escravidão. E naquele lugar tinha
uma pia e tava escrito um texto na
parede que era, mais ou menos,
negros foram batizados e através
de uma ideia distorcida do
cristianismo, foram levados a
Eu olhe para o meu parceiro e,
naquele dia eu entendi qual era a
minha missão: a minha missão, a
cada vez que eu pegar uma
caneta e um o microfone, é
devolver a alma de cada um de
meus irmãos e das minhas irmãs
que sentiu que um dia não teve
uma. (Amarelo, 2020)
Ao final, vemos que ele está com
uma camisa que traz nas costas uma
estampa de um santo negro (com
auréola e roupa de frade), segurando
no colo uma criança branca nua. A
partir do que destaca Brasil (2011) ao
dizer que imagens não são apenas
lugares de representação, mas
performances que pretendem elaborar
e efetuam processos de subjetivação, é
possível observar que as sonoridades e
os atores convocados, as falas verbais
e as visualidades presentes nesse
trecho apresentam sentidos em torno
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
ontem. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.282-304, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
que realizam um apagamento das
singularidades e diferenças das
tradições de matriz africana e cristã; e,
ao mesmo tempo, torna evidente o
papel que Emicida se pretende dar
nesse processo ao trazer, mais uma
vez, aspectos de sua biografia como o
elemento disruptivo na história da
cultura afro-diaspórica, deslocando os
sujeitos de suas partes específicas.
Explicando melhor, o rap tem
sido um modo historicamente
consolidado de cantar e performar as
vivências e posicionamentos afetivos,
políticos e estéticos da comunidade
negra, também de latinos e de outros
sujeitos marginalizadas ao redor do
globo, constituindo, para essas
comunidades, uma forma de
enfrentamento dos processos sociais
de exclusão, fazendo com que sua
história, valores e práticas culturais,
normalmente invisíveis, possam
representar uma partilha do comum
(Barbosa, 2005).
No entanto, Em AmarElo, um
elogio a formas de vida possíveis
tanto de Emicida quanto da
comunidade negra a partir daquilo
que foi experienciado e foi projetado
por ele mesmo. Além disso, ao mesmo
tempo em que são manifestações de
vidas reais, entrelaçadas a uma matriz
cultural partilhada e sempre
ressignificada, estão atreladas ao que
elas podem ser a partir da seleção de
acontecimentos, fatos, documentos e
personagens em um processo que
inscreve o seu lugar no centro desse
movimento no Brasil e na produção de
outros sentidos sobre rap que, de
alguma forma, parece conformá-lo na
relação com outros ritmos, estilos e
gêneros musicais.
De fato, observamos que os
aspectos culturais expostos são
convocados para a construção do
arcabouço poético-performático, que é
consolidado à medida que o discurso
sobre música, identidade e resistência
toma forma nas canções, no cotidiano
representado, nos eventos históricos
evocados, nos bastidores de
preparação do show e no palco, nos
personagens entrevistados, além de se
entrelaçar com o que é imaginado
sobre sua própria vida, de modo que as
performances que ali se produzem (dos
simultaneamente, no mundo vivido e no
mundo imaginado, elas são, a um
tempo, forma de vida e forma da
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
O encontro do Hip-Hop com o samba
e suas implicações dentro de
AmarElo
Como dito antes, desde o
prólogo, percebe-se que Emicida
entrelaça narrativas: a sua vida com a
trajetória de pessoas negras e com a
trajetória de montagem do show. Pode-
se notar que, desde o início, uma
premissa possível é imbricar todas
elas. No início do ATO 1, o que se
parte da metáfora que atravessará toda
a construção de AmarElo.
A ideia de plantar traz em seu
bojo a expectativa do crescer, do
florescer. Daí, pode-se inferir que,
assim como os negros que construíram
(Emicida apresenta marcos fundantes
da cidade de São Paulo, como a pedra
fundamental do Mosteiro de o Bento,
fincada por negros; a primeira escola
de samba de São Paulo), ele mexe na
terra acompanhado de sua mãe, planta
literalmente, rega e, de forma
subentendida, espera os
frutos/crescimento das plantas.
- o samba,
os monumentos, o teatro municipal -
seriam e deveriam ser aproveitados
pelas pessoas negras que sucederam
ele, Emicida, planta e rega a terra,
empreende e recebe os resultados de
seus projetos, aqueles homens e
mulheres negras dos séculos XIX e XX
construíram marcos de São Paulo para
que pessoas negras do século XXI
pudessem usufruir desses marcos, já
que aqueles tinham sido impedidos;
diferente da deles é a trajetória de
Emicida que aproveitará as benesses
de suas conquistas. Talvez por isso
Emicida conte a história de São Paulo,
pela perspectiva dos trabalhadores
negros e dos negros escravizados,
demonstrando respeito e gratidão,
como se houvesse uma linha
teleológica que culminaria nesse show
no Municipal, máxima demonstração de
que tudo ocorreu de forma positiva no
final.
Voltando à composição das
imagens, todo esse ato é construído
por imagens da periferia entrecortadas
por imagens de Emicida com sua
família. A sépia das imagens de família
cria uma atmosfera mítica, de um
passado longínquo que se mistura com
imagens de Emicida regando as
plantas e falando sobre sua mãe.
Nesse momento, o caráter
performativo, entre o mundo vivido e o
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
mundo imaginado (Brasil, 2011),
permite deslizar entre a memória e a
narrativas projetadas, entre o que ele
viveu em família e o que representa
essa experiência na história costurada
com tantas linhas, tramas e trançados
distintos históricos e afetivos para,
enfim, buscar compreender o quanto se
entrelaçam o discurso sobre um
indivíduo e o coletivo com o qual ele se
identifica, ainda que possa saltar aos
olhos o quanto o que mais se valoriza
nesse contexto é a experiência desse
indivíduo em contato com o meio, suas
impressões e as suas reflexões sobre o
que herdou.
Outro aspecto importante para a
compreensão da história é presença do
samba muito forte nesse ato, provada
pela genealogia traçada por Emicida.
Ele engendra uma espécie de
cronologia do gênero quando fala sobre
a criação da primeira escola de samba,
fundada por Ismael Silva. Apresenta
vários nomes do samba e chega a
Hip-Hop
antes de nós e que o
do rap
Deduz-se, considerando essas
falas, que Emicida cria uma via de mão
dupla para o samba e para o rap,
fazendo questão de não desgarrar os
gêneros. Ao contrário, quer ligá-los pela
importância que um tem para o outro.
Talvez por isso, ele oferece pistas
sobre o desejo de nomear o AmarElo
como um novo movimento cultural
chamado neossamba. Então, o que
seria isso? Um gênero erigido do
encontro do samba com o rap e vice-
do AmarElo
aponta, ainda, o samba-rock e o
samba-rap como resultados do
encontro de gêneros estrangeiros com
o samba, e como a presença desses
dois gêneros não brasileiros, o rock e o
rap, adaptaram-se bem à música
brasileira.
Emicida reivindica um novo
movimento/gênero musical a partir da
sua iniciativa como músico, produtor,
idealizador e design de roupas para a
Talvez, se se considerar que ele reúne
matrizes consagradas da música
brasileira em articulação com o pop,
além da presença das artistas Pabllo
Vittar e Maju, seja possível conduzir o
olhar para essa conclusão, porque
relações muito diversas e distintas
entre esses artistas. A questão é que,
ao trilhar esse caminho, Emicida
conforma os gêneros numa perspectiva
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
(cuja expectativa de rompimento com a
tradição musical, desde o samba,
passando pelo rap, pelo rock, até
chegar no neo-samba parece distante)
possivelmente idealizada.
Para finalizar, que se
comentar a presença de Wilson das
Neves no documentário. Emicida conta
a história de como chegou a ele, a partir
de seu garimpo em lojas de discos, na
adolescência. Ele diz que notara a
presença de Wilson nos arranjos e na
execução de vários álbuns que ele
havia comprado e que o músico se
tornara uma referência para ele.
Emicida conheceu Wilson, gravou com
ele, acompanhando-o nos seus últimos
anos de vida. O encontro dos dois
possibilita o vislumbre, dentro da
história do documentário, do encontro
do passado com o presente e da
renovação musical. Nesse sentido,
simbolicamente, a história vivida entre
Emicida e Wilson das Neves reúne os
argumentos narrativos, projetados no
documentário, que sustentam um
imaginário de continuidade de uma
tradição.
No
Emicida fala sobre as lutas pelos
direitos civis das pessoas negras. As
primeiras referências, a criação do
movimento negro, o tensionamento
com a ditadura militar estão na base
desse recorte narrativo.
Desde artistas, como Wilson
Simonal a Lélia Gonzales, passando
por Leci Brandão, Emicida tece uma
relação entre a história da luta pelos
direitos do povo negro (e suas
interseccionalidades) às suas lutas
pessoais, essas que se imbricam com
as lutas coletivas. Uma observação
deve ser feita, em tom de crítica e
cobrança: não há qualquer referência a
Elza Soares, o que pode gerar
estranhamento, dado o seu papel
singular como uma das artistas negras
mais versáteis e mais ativas na cultura
brasileira.
O Ato 3 é praticamente todo
dedicado ao show. Detalhes da
produção são colocados em diálogo
com cenas do show. Pessoas que não
conseguiram entrar assistiram a tudo
por telão, de fora do teatro e a emoção
é sempre partilhada em uma
intensidade demonstrada como
equânime. Dentro do teatro, muitas
imagens da plateia emocionada,
chorando e cantando as músicas, de
camisetas com a inscrição Ubuntu.
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
ontem. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura,
Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.282-304, mar. 2025. www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
O epílogo sereno: um exemplo para
quem ou para quê?
Evidente que a história contada
em AmarElo, apesar de partir de uma
perspectiva individual, pretende-se
coletiva: representa trajetórias de
pessoas negras alçadas para o centro
das discussões sobre identidade
cultural e, mais, sobre valorização da
identidade cultural afro-diaspórica.
Emicida se permite diluir nessa história
para alcançar um dos objetivos
apontados por ele que é de reescrever
a história brasileira junto com outras
pessoas negras. Nesse bojo, os
significados compartilhados e as
interpretações semelhantes
sustentadas são possíveis pelo acesso
comum à linguagem (Hall, 2016), que
pode ser identificada como o rap, o
samba, a cultura Hip-Hop, o movimento
de luta do movimento negro pelos
direitos civis, a consciência da
interseccionalidade, que atravessa a
experiência afro-diaspórica agenciada
no documentário-concerto.
Gerando identificação pelos
temas abordados e compartilhando
significados intercambiando sentidos
, o documentário encaixa-se no que
Hall (2016) entende como circuito da
cultura: um sistema em que a
linguagem, uma estrutura complexa
composta por signos e símbolos
sejam eles sonoros, escritos, imagens
eletrônicas, notas musicais e até
objetos alinha-se para representar
ideias pensamentos e afetos (Hall,
2016). Hall declara:
Afirmar que dois indivíduos
pertencem à mesma cultura
equivale a dizer que eles
interpretam o mundo de maneira
semelhante e podem expressar
seus pensamentos e sentimentos
de forma que um compreenda o
outro. Assim, a cultura depende
de que seus participantes
interpretem o que acontece ao seu
de forma semelhante. (Hall, 2016,
p. 20)
Partilhar signos culturais de
diversas categorias permite que
Emicida reconheça-se e reconheça
seus semelhantes dentro de uma
temporalidade e de um espaço
simbólico que tensionam com o status
quo a importância de suas histórias. Em
outras palavras, a partir da
manifestação cultural, ele buscará
transformar uma visão hegemônica de
que o espaço do Teatro Municipal é
destinado a apresentações ditas
eruditas, de tradição acadêmica,
eurocêntricas, e de pessoas brancas.
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Por outro lado, o seu discurso,
ao mesmo tempo em que se pretende
parte de uma comunidade e
instrumento de tensionamentos com a
hegemonia, fala muito sobre si mesmo,
num jogo de espelhamentos e de
predestinação. Um exemplo disso é
quando, após elaborar um resumo de
práticas musicais e performáticas da
história do rap cuja fusão ele percebe
com outras musicalidades de matriz
africana, como o samba e o reggae, por
exemplo, ele declara que tem a
aludindo ao conjunto
de práticas e processos artístico-
culturais realizados ao longo do tempo
no Brasil
elaboração de um novo ritmo, uma
2020) que, a partir de seu trabalho em
AmarElo -
É como se Emicida estivesse se
colocando num lugar do indivíduo que
irá fatalmente emergir de uma
comunidade que fora invisibilizada por
séculos, carregando consigo todas as
referências histórico-culturais dessa
comunidade e organizando-as,
enquanto fala de si e de sua trajetória
como músico, filho, pai, empresário,
destinado a contar a sua história e a de
sua comunidade.
Considerações finais
Nesta breve análise das
narrativas biográficas e históricas,
erigidas e entrelaçadas em AmarElo,
levamos em conta o seu caráter
performativo e representativo, foi
possível concluir que a relação entre
esses aspectos é discursivamente
organizada com o intuito de apresentar
um ator enquanto herdeiro da história
social e cultural dos negros brasileiros
que ajudaram/participaram do processo
de expansão da cidade de São Paulo,
sem poderem usufruir do progresso.
Considerando-o como herdeiro,
presume-se que Emicida será o
responsável por reescrever essa
história e destiná-las aos jovens
negros, esses que o aproveitar das
benesses que deveriam ter sido
aproveitadas desde quando
floresceram, por todo o século XX. Ele
realiza essa fabulação através de um
processo de seleção de
acontecimentos históricos,
sonoridades, sujeitos e performances
que ele traz para o palco e para os
bastidores a fim de organizar uma linha,
302
BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
fabulações em torno do Hip-Hop no Documentário AmarElo: é tudo pra
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
uma tradição selecionada, sobre o
percurso e o cume dessas realidades.
Enquanto resultado dessa
pesquisa, foi possível observar que a
elaboração de produtos culturais que
entrelaçam aspectos biográficos e
coletivos através de justaposição
político-estética pode ser uma
estratégia capaz de reorganizar a
estrutura de relevância de atores,
fenômenos, práticas e acontecimentos
dentro do campo do Hip-Hop a partir
das experiências vividas, tensionando,
desta forma, visões dominantes sobre a
história, os valores, as práticas e as
transformações futuras desse
movimento.
Além disso, observamos que o
desenvolvimento de uma narrativa
ficcionalizada, que acionou dores,
batalhas e conquistas coletivas
associadas às dores, batalhas e
conquistas individuais foi mobilizada
na tentativa desconstruir uma
identidade heroica para diferentes
personagens da cultura afro-diaspórica
brasileira que tem no próprio Emicida
um dos atores principais.
Esse processo produz entre
seus significados que as conquistas de
determinados indivíduos, ou de uma
parcela reduzida de uma coletividade,
conta de abarcar um contingente
muito mais amplo, plural e espraiado.
Desta forma, não é somente que um
show com artistas negros e negras,
com apresentações
predominantemente da cultura afro-
diaspórica, nunca tenha acontecido no
Teatro Municipal de São Paulo, mas
minha
embaralhando as fronteiras entre aquilo
que é biográfico e aquilo que é coletivo.
Foi possível observar, ainda, que
a apresentação de uma performance
áudio-verbo-visual, com engajamentos
corporais, e mobilização de arquivos e
repertórios mais ou menos
reconhecidos pelo público, é um
importante lugar do encontro entre o
individual e o coletivo no trabalho de
Emicida. É no corpo, nas sonoridades
produzidas, nos gestos que remetem a
lutas políticas, nas parcerias
construídas ao cantar, dançar e subir
ao palco, que Emicida faz encontrar o
vivido e o imaginado dessas duas
instâncias.
Contudo, em sua performance
não lugar para as diferenças, nem
para as contradições, nem para
discursos que embatem com o cenário
político social do país ou com a
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BARBOSA, Caio; SAMPAIO, Rosane. Entre o biográfico e o coletivo:
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
trajetória seguida pelo Hip-Hop no
desembarcar por aqui. Pelo contrário,
lutas se encontram, gêneros musicais
afro-diaspóricos dialogam, os atores
evocados ecoam em uníssono e
atravessam a emergência daquele
momento único nessa história:
AmarElo.
Por fim, Emicida traz novamente
o ditado de Exu, para finalizar e reforça
a necessidade de refazer memórias a
partir de encontros no momento
presente. Assim, fecha-se um ciclo:
imagens do cotidiano, imagens do
Teatro Municipal, imagens do show,
imagens de ensaios, imagens das
comunidades periféricas continuam a
compor o cenário das narrativas.
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Laboratório Fantasma. Netflix, 2020. 89
minutos. Disponível em:
https://www.netflix.com.
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Álbum: eu só quero ser feliz. 1994.
305
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continuidades e descontinuidades na cultura Hip-Hop: o caso de
Moçambique. Entrevista com Simba toi, artista de Hip-Hop
moçambicano. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.305-320, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Sobre continuidades e descontinuidades na cultura Hip-Hop: o caso de
Moçambique. Entrevista com Simba Sítoi, artista de Hip-Hop moçambicano
William de Goes Ribeiro1
Laís Volpe Martins2
Nelson/Simba Sitói3
DOI: https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v15i28.67367
Resumo: Este texto expõe uma entrevista remota, transcrita e editada, com Simba Sitói (artista de Hip-
Hop em Moçambique), realizada em 20 de junho de 2024. Trata-se de um dos artistas mais influentes
de Moçambique, atuante na cultura Hip-Hop, como rapper e produtor cultural. É idealizador de
importantes eventos ligados ao tema, o que inclui o protagonismo do jovem artista no Festival de Hip-
questões pertinentes para o
estudo na área, os quais apontam para o curso de continuidades e de descontinuidades de uma cultura
globalizada, negociada e ressignificada localmente. Ajuda-nos, portanto, o que justifica a inclusão da
entrevista neste dossiê, a reforçar o nosso argumento em torno do processo complexo e dinâmico da
referida cultura.
Palavras-chave: Hip-Hop; Moçambique; Entrevista.
On continuities and discontinuities in Hip-Hop culture: the case of Mozambique. Interview with
Simba Sítoi, Mozambican Hip-Hop artist
Abstract: This text presents a remote interview, transcribed and edited, with Simba Sitói (Hip-Hop artist
in Moçambique), conducted on June 20, 2024. It is about two of the most influential artists from
Moçambique, active in Hip-Hop culture, as a rapper and cultural producer. He is the idealizer of
-Hop Festival. In its work, Simba explains elements and questions pertinent to the study
of the area, the quais apontam for the course of continuities and discontinuities of a globalized culture,
negotiated and locally re-signified. Help us, therefore, which justifies even the interview in this dossiê,
to reinforce our argument around the complex and dynamic process of the aforementioned culture.
1Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Adjunto na Universidade
Federal Fluminense (UFF), atuando nos cursos de graduação em Pedagogia e Geografia e no
Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades (PPCULT/UFF). E-mail:
williamgribeiro@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3940-7492.
2Mestranda no Programa de Pós-graduação em Cultura e Territorialidades da Universidade Federal
Fluminense (PPCULT/UFF). Bolsista da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do
Estado do RJ. E-mail: laisvolpemartins@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0009-0006-9007-4354.
3Artista de Hip-Hop em Moçambique. E-mail: simbasitoi@gmail.com.
Recebido em 15/03/2025, aceito para publicação em 28/04/2025.
306
RIBEIRO, William de Goes; MARTINS, Laís Volpe; SITÓI, Nelson. Sobre
continuidades e descontinuidades na cultura Hip-Hop: o caso de
Moçambique. Entrevista com Simba toi, artista de Hip-Hop
moçambicano. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.305-320, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Keywords: Hip-Hop; Mozambique; Interview.
Sobre continuidades y discontinuidades en la cultura Hip-Hop: el caso de Mozambique.
Entrevista con Simba Sítoi, artista de hip-hop mozambiqueño
Resumen: Este texto expone una entrevista remota, transcrita y editada, con Simba Sitói (artista de
Hip-Hop en Mozambique), realizada el 20 de junio de 2024. Es uno de los artistas más influyentes de
Mozambique, activo en la cultura Hip-Hop, como rapero y productor cultural. Es creador de importantes
eventos relacionados con esta temática, entre los que se incluye el protagonismo del joven artista en
el Festival de Hip-
pertinentes al estudio del área, que señalan el curso de continuidades y discontinuidades de una cultura
globalizada, negociada y resignificada localmente. Por tanto, lo que justifica la inclusión de la entrevista
en este dossier nos ayuda a reforzar nuestro argumento en torno al complejo y dinámico proceso de
dicha cultura.
Palabras clave: Hip-Hop; Mozambique; Entrevista.
Sobre continuidades e descontinuidades na cultura Hip-Hop: o caso de
Moçambique. Entrevista com Simba Sítoi, artista de Hip-Hop moçambicano
Introdução
Figura 1 Imagem de Simba Sitói
Fonte: portfólio do artista
4Julgamos que não cabe neste texto tecermos análises críticas de suas obras e discussões teóricas
de fundo. A introdução visa apenas apresentar o entrevistado (que é pouco conhecido no Brasil). Para
aprofundar o discurso mobilizado pelas suas canções e visualidades, outro trabalho se faz necessário.
A escolha pelo específico artista se deu pelas nuances que a entrevista aponta e que, certamente,
demandam aprofundamentos e estudos, incluindo o contexto e as negociações postas em jogo.
De acordo com o portfólio
profissional, disponibilizado pelo artista,
Simba Sitói é a marca comercial e
nome artístico de um músico que se
expressa, maioritariamente, através
dos gêneros musicais Hip-Hop e
Rap/Soul4. No entanto, o artista faz
questão de se integrar em vários estilos
musicais: do clássico ao
contemporâneo, do analógico ao
eletrônico (considerando o contexto de
produção da obra). Explora uma cultura
307
RIBEIRO, William de Goes; MARTINS, Laís Volpe; SITÓI, Nelson. Sobre
continuidades e descontinuidades na cultura Hip-Hop: o caso de
Moçambique. Entrevista com Simba toi, artista de Hip-Hop
moçambicano. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.305-320, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
visual, lúdica e assertiva, que emprega
nas suas visualidades um fator
relevante para a sua expressão criativa,
delicadamente transportada dos versos
e rimas para vídeos e animações,
buscando uma forma sempre inovadora
e irreverente.
Nelson Sitói, proprietário da
marca "Simba Sitói", para além de
músico, se considera um ativista social
e empreendedor cultural,
apresentando-se com uma vasta
experiência em projeção de marcas e
promoção de eventos. A seguir,
destacamos apenas alguns de seus
trabalhos musicais: Hands Up -
Atuação ao Vivo em São Paulo
(Brasil)5; Hands Up - Lançamento do
Single (MTV Showcase)6; Kick It Chuta
com a participação de Milton Gulli7;
Scenario com a participação de Milton
Gulli e Zubz8; Last Hope com a
participação de Mota9; Daddy never
5Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=-
vAYj5hy5_w>. Acesso em: 25 fev. 2025.
6Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=R8RGkW
OTSPs&t=218s>. Acesso em: 25 fev. 2025.
7Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=RuzVb7riJ
Tc&t=205s>. Acesso em: 25 fev. 2025.
8Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=5yH5yBG
_qMU>. Acesso em: 25 fev. 2025.
came with Flowers com a participação
de The Rocats10 e Lovely day com a
participação de The Rocats11.
Simba Sitoi é um dos pioneiros
do Hip-Hop em Moçambique.
Destacamos que foi o primeiro rapper
moçambicano a assinar com a BBE,
uma record label britânica de renome
internacional. Além disso, Simba criou
a primeira banda moçambicana de Hip-
Hop ao vivo, denominada Simba and
the Rocats; foi o primeiro artista
moçambicano a ter um outdoor de
divulgação do seu trabalho; o primeiro
e único moçambicano a ser convidado
a participar de um dos maiores festivais
de Hip-Hop: A3C Festival (uma espécie
de plataforma de lançamento de novos
artistas do gênero).
O seu single Party People
conquistou o primeiro lugar no top 10 da
MTN Sul-Africana, como música com
maior número de downloads daquela
9Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=IlDzWcR2
2fM>. Acesso em: 25 fev. 2025.
10 Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=KPy12p-
FcSU>. Acesso em: 25 fev. 2025.
11 Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=s0YogHOt
86k>. Acesso em: 25 fev. 2025.
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RIBEIRO, William de Goes; MARTINS, Laís Volpe; SITÓI, Nelson. Sobre
continuidades e descontinuidades na cultura Hip-Hop: o caso de
Moçambique. Entrevista com Simba toi, artista de Hip-Hop
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telefonia móvel em 2010. Mesmo se
passando mais de 10 anos desde o seu
lançamento, o vídeo da sua música
Lovely Day, produzido por DJ Marcel,
continua a ser, segundo informa o
artista, o mais caro da história do Hip-
Hop moçambicano. Simba atuou ao
lado de diversos outros artistas, como o
músico e compositor camaronês Manu
Dibango. Por meio de sua rede
profissional, foi escolhido para abrir o
show do rapper e ator estadunidense
Mos Def em Johannesburg, no seu
primeiro tour em África. Destacamos
ainda: primeiro artista moçambicano de
Hip-Hop nomeado para um dos
maiores awards de África em duas
categorias, a competir com artistas de
(cantor nigeriano), Hip Hop
Pantsula/HHP (rapper sul-africano) e
2Face (cantor nigeriano).
Considerando o exposto, o
percurso artístico de Simba Sitói atingiu
patamares amplos, tendo se
consagrado como um dos artistas de
Hip-Hop mais internacionalizados do
continente africano. O seu trabalho
concedeu-lhe acesso, ampliando
quadrantes criativos, a nível
12 Novamente, frisamos que o conteúdo da
introdução é apenas informativo.
internacional, tendo construído
relações de bastante proximidade com
o Hip-Hop. Simba Sitói se encontrou
em Nova Iorque com o legendário "pai
do Hip Hop", DJ Kool Herc, além de
Mos Def (rapper de renome
internacional) e executivos da Def Jam.
Cloud Walker é o nome da
terceira obra discográfica de Simba
Sitói, lançado em 25 de março de 2022.
Segundo o artista, trata-se de um
álbum motivacional, cujo foco é inspirar
pessoas de todas as idades e
segmentos sociais a não desistirem dos
seus sonhos e a seguirem o seu
propósito. O objetivo é partilhar a visão
de que a vontade de fazer algo
acontecer transgride o conceito de
impossível, a despeito dos
enfrentamentos e desafios12. O álbum
foi produzido pelo DJ Kenzhero
Origimoz, co-produzido por Simba Sitói
e conta com a colaboração de artistas
de renome internacional,
nomeadamente: Stogie T (rapper sul-
africano), FIFI Cooper (rapper sul-
africana), Sky Wanda (artista sul-
africana), Proverb (rapper sul-africano),
HHP entre outros.
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RIBEIRO, William de Goes; MARTINS, Laís Volpe; SITÓI, Nelson. Sobre
continuidades e descontinuidades na cultura Hip-Hop: o caso de
Moçambique. Entrevista com Simba toi, artista de Hip-Hop
moçambicano. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.305-320, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Finalizando esta introdução,
destacamos alguns dos trabalhos
publicitários de Simba: Primeira
Publicidade Pré-Pago Giro (1999)13;
Campanha Vodacom Edjô (2011)14;
Campanha Jeito (2012)15 e Campanha
Mcel Boneco Shiboleca (2018)16, além
do Outdoor Publicitário da Marca Xipixi
(2018), do Outdoor do single Hands Up
(2019) e do Rise - Together 4
Mozambique - Ciclone IDAI (2019)17.
Considerando o exposto, tendo
observado o dinamismo e a vasta
contribuição de Simba Sitoi para a
cultura Hip-Hop, nacional e
internacionalmente, seguimos com a
nossa entrevista.
Simba Sitói - Posso me apresentar?
Dizer agora que eu estou a fazer esta
conversa convosco. Estou no carro.
Estou à espera de entrar num encontro
que vai começar daqui a uns 40
minutos. Então, estou no meio da
estrada. Meu nome é Simba Sitói. Esse
13 Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=eU8hFcLi
LnA>. Acesso em: 25 fev. 2025.
14Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=zO_6No_
X7jQ>. Acesso em: 25 fev. 2025.
15 Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=kfCIrLg0L
Fs>. Acesso em: 25 fev. 2025.
é o nome artístico. Sou artista de Hip-
Hop. Sou também parte dos pioneiros
do Hip-Hop aqui em Moçambique. Sou
promotor de eventos, tenho um festival.
E agora vamos começar com um
programa de rádio. Também vamos
fazer uma coisa em televisão. Então,
sou essas coisas todas. Resumindo
assim: fui pioneiro do movimento aqui,
um dos pioneiros aqui do movimento
Hip-Hop.
William Ribeiro - E como se deu o
processo?
Simba Sitói - Hip-Hop em Moçambique
começa mesmo nos anos 1990. Não
começou nos anos 1980. O movimento
em si começa nos anos 1990. No
princípio dos anos 1990. A nossa
introdução com o movimento Hip-Hop
foi ainda na televisão experimental de
Moçambique. Chamava-se... TVE.
Então é aí onde havia um programa de
televisão chamado Espaço Aberto.
16 Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=-
dGsiywtpEk>. Acesso em: 25 fev. 2025.
17 Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=W4vwlPw
otAw>. Acesso em: 25 fev. 2025.
310
RIBEIRO, William de Goes; MARTINS, Laís Volpe; SITÓI, Nelson. Sobre
continuidades e descontinuidades na cultura Hip-Hop: o caso de
Moçambique. Entrevista com Simba toi, artista de Hip-Hop
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Onde passavam sicas estrangeiras.
É importante mencionar que nós somos
de um país que começou socialista,
comunista18. E naquela altura nós
podíamos ouvir música estrangeira aos
domingos. Música estrangeira que nós
podíamos ouvir e ouvíamos
frequentemente era música
portuguesa, música brasileira. E alguns
discos americanos. Quando cai o
mundo de Berlim, há um novo começo.
Muita coisa começa a ser consumida.
Muita coisa que nós não consumíamos,
começamos a consumir. Inclusive, é
assim, como mais tarde entra o Hip-
Hop em Moçambique. Obrigado.
William Ribeiro - Obrigado pela
apresentação. É muito pertinente
visualizar o contexto da entrada do Hip-
Hop em Moçambique. Meu nome é
William. Eu estou coordenador de um
Programa de Pós-graduação aqui na
Universidade Federal Fluminense,
Niterói, Rio de Janeiro. Foi que eu
conheci a Laís Volpe, porque ela é
estudante do programa. Estou na
universidade também como professor,
trabalhando com educação. Mas a
18 Cumpre observar que não tivemos condições
de aprofundar o assunto e os referidos termos
não puderam ser explorados na ocasião.
minha trajetória na época da escola,
que eu passei pela escola aqui no
Brasil, foi com o movimento Hip-Hop,
no subúrbio do Rio de Janeiro. Aqui no
Brasil foi uma explosão também, eu
acho, pela divulgação, pela mídia,
meios de comunicação, nos anos 1990,
principalmente. Anos 1990, anos 2000.
E aí passei a fazer parte do movimento
pela dança, porque eu pratico a dança
desde garoto. Foi a minha entrada. E eu
tenho muito interesse na cultura,
emerge nos meus estudos e de amigos,
parceiros que eu tenho até hoje,
procurando entender o Hip-Hop. Então,
conhecer você é uma grande felicidade,
porque uma possibilidade de
entender essa entrada do Hip-Hop em
Moçambique, construir uma rede com o
Brasil, um laço para pensar algumas
questões juntos. Então, muito obrigado
pela oportunidade.
Simba Sitói - Quero também
mencionar que o nosso Hip-Hop aqui
tem uma particularidade. Não sei se foi
o mesmo que aconteceu também no
Brasil, mas o nosso Hip-Hop é de zonas
periféricas. Começa sim em Bronx, mas
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RIBEIRO, William de Goes; MARTINS, Laís Volpe; SITÓI, Nelson. Sobre
continuidades e descontinuidades na cultura Hip-Hop: o caso de
Moçambique. Entrevista com Simba toi, artista de Hip-Hop
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Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.305-320, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
o Hip-Hop em Moçambique começa da
elite para os pobres. Não começa ao
contrário. Não começa como começou
nos Estados Unidos. Começa da elite,
por quê? Porque a elite é que tinha a
informação, a elite é que tinha as
parabólicas, os canais internacionais, é
que viam primeiro, é que tinham acesso
primeiro ao mundo em relação ao
jovem da periferia. Então, a elite é que
gravavam as fitas cassetes em VHS e
começava assim a circular, que até
chegava nas periferias. É assim como
começa o movimento aqui.
William Ribeiro - Algo que realmente é
impensável no Brasil, que tem uma
diferença, a gente visualiza o
movimento Hip-Hop ligado à população
negra, principalmente, aos Estados
Unidos, pelo protagonismo dos afro-
americanos na cultura. E aqui no país,
chega pelas periferias, principalmente,
com muita força em São Paulo, mas
também em outras regiões, inclusive no
Nordeste. É pertinente saber. Você
falou do festival, pode falar um pouco
sobre?
Simba Sitói - Existe um festival aqui na
África do Sul, chama-se Back to the
City. É o maior festival de Hip-Hop em
África. Então, o festival Back to the City
aparece como uma espécie de
resposta. São jovens que criaram e
deram o nome Back to the City, que
significa de volta à cidade ,
manifestado no dia da liberdade .
Então, o dia da liberdade foi o dia em
que Nelson Mandela saiu da cadeia. O
símbolo, o dia simbólico em que Nelson
Mandela saiu da cadeia é no dia 27 de
abril. Então, que é o Freedom Day. Um
grupo de jovens começou com o
conceito Back to the City, que
significava porque as pessoas negras
não eram permitidas para viver na
cidade. Então, é por isso que está o
nome de volta à cidade, que significa
que a cidade é deles, sempre foi
deles, mas hoje estão a voltar para a
cidade. Então, é Back to the City. Eu fui
o primeiro artista internacional africano
que participou do Back to the City
durante talvez três, quatro anos. E com
essa ligação com a África do Sul e ter
de sair de Moçambique para cantar
num feriado na África do Sul, tornei-me
amigo do diretor do festival, que em
várias conversas dizia que s
precisávamos de uma coisa, de um
festival parecido em Moçambique. Mas
eu sempre neguei, porque eu dizia ao
meu amigo que eu não era promotor,
312
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Moçambique. Entrevista com Simba toi, artista de Hip-Hop
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Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.305-320, mar. 2025.
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transformações da cultura")
artista. Eu não me via como promotor
de eventos. Então, nesse processo, eu
voltei para Moçambique, falei com
alguns promotores, sentei com rios
deles, mas todos eles recusaram fazer
o festival de Hip-Hop porque diziam que
não há dinheiro no Hip-Hop. Então, não
viam vantagens em fazer um festival de
Hip-Hop. Então, uma vez eu estava a
ver um filme e um dos atores disse que
às vezes tu és o messias que estás à
espera. Então foi isso mesmo que me
incentivou a fazer o festival. Iniciamos
em 2015, tivemos a pausa durante a
COVID e retornamos no ano passado.
William Ribeiro - Entendi.
Simba Sitói - Essa é a história de como
foi que eu cheguei de artista para
promotor. Agora, nós olhamos para o
festival como uma espécie de encontro
internacional. Não é necessariamente
um encontro de artistas
moçambicanos. Nós sempre tivemos o
sonho de ter vários artistas africanos a
participarem do nosso festival. Mas,
muitas vezes, com dificuldades
financeiras. Nós tivemos algumas
subvenções que facilitaram, por
exemplo, para os americanos virem, ou
para os ingleses virem, ou para... não
sei se para perceber. E nós
trabalhamos muitas vezes com o que
temos. O que nós fazemos no festival é
desde performance, workshops,
conferências, ativações. E fazemos
mais...tentamos criar uma sinergia
entre artistas. Criamos debates sobre
como é que nós podemos usar o Hip-
Hop como um veículo para melhorar e
transformar aquela que é a nossa
realidade para o melhor. E ano
passado, nós fizemos uma conferência
que foi a conferência em celebração
dos 50 anos da cultura Hip-Hop.
Tivemos artistas americanos, sul-
africanos, moçambicanos.
Conseguimos até trazer um dos
executivos da Def Jam [Recordings]
para fazer parte do painel. Tentamos
cada vez mais mostrar aos artistas
moçambicanos que podemos também
criar uma sustentabilidade com a arte
que fazemos.
William Ribeiro - Aqui no Brasil, os
temas que são abordados, os assuntos
que são abordados no Hip-Hop são
bem variados. É até difícil você definir.
Mas alguns deles percebemos que são
recorrentes. O tema da desigualdade, o
tema do racismo, a vida na periferia,
Hip-Hop para transformar as
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RIBEIRO, William de Goes; MARTINS, Laís Volpe; SITÓI, Nelson. Sobre
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Moçambique. Entrevista com Simba toi, artista de Hip-Hop
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transformações da cultura")
realidades... O que vodiria que são
alguns assuntos, alguns temas
recorrentes nas músicas que vocês
trabalham ou no evento como um todo?
Simba Sitói - Bom, eu acho que nós
temos desde o artista de Hip-Hop que
fala sobre festas, artista de Hip-Hop
que fala sobre a realidade
moçambicana, artista de Hip-Hop que
fala sobre os sonhos. Então nós temos
um bocadinho de tudo aqui. O Hip-Hop
também é usado não para falar
daquilo que existe, mas também é
usado para criar uma espécie de
viagem, uma viagem que tu queres
fugir um bocadinho da tua realidade,
crias ali um Mundo Fantástico ,
através do Hip-Hop e também tem
artistas que falam da realidade que
querem que várias coisas mudem na
sociedade. E tens artistas que falam,
tens mulheres que falam, direitos das
mulheres tens, e rappers que falam
inclusive, é, tens artistas que já tiveram
na procuradoria, intimados pelo
sistema, para questionar sobre as
letras da música. Então, tens de vários,
tens uma coisa variada em
Moçambique.
William Ribeiro - Eh, essas letras que
foram intimadas, elas tratavam de,
sabe dizer, de que assunto?
Simba Sitói - essas letras eram,
assuntos políticos e que nós temos aqui
um programa de Hip-Hop que se
chama Hip-Hop time clássico. Hip-Hop
que a maioria das músicas são mais é,
a onda é, muitas músicas que passam
lá o que é o apresentador do programa
e o, um dos fundadores, ele é que faz,
ah... como eu posso dizer? Ele é que
faz a censura. Então ele determina qual
é o tipo de conteúdo que passa no
programa dele e tens outros programas
de Hip-Hop que também a coisa é um
bocadinho mais aberta, depois tens
outros que a coisa é muito mais pobre
em termos de, em termos de conteúdo.
William Ribeiro - Você falou que tinha
mais ou menos uns 40 minutos, mas
tem duas coisas que eu queria
perguntar para você. É assim: como
que você vê o Hip-Hop na relação com
a educação em Moçambique?
algum diálogo, alguma relação que
possa ser estabelecida com a escola,
por exemplo? Como é que você vê isso
aí?
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RIBEIRO, William de Goes; MARTINS, Laís Volpe; SITÓI, Nelson. Sobre
continuidades e descontinuidades na cultura Hip-Hop: o caso de
Moçambique. Entrevista com Simba toi, artista de Hip-Hop
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Simba Sitói - Bom, eh, por acaso eu
estou neste momento, tenho alguma
relação com a escola de comunicação
e artes que é uma escola superior.
Temos comunicado com o diretor e
alguns docentes que eles querem
mesmo introduzir várias atividades
extracurriculares que têm a ver com
Hip-Hop agora. Ah, também tenho uma
proposta para eles de aulas com uma
direção assim, do Hip-Hop, desde aulas
que nós usamos, por exemplo, o
próprio Hip-Hop como método de
estudos. Deixar referenciar que o Hip-
Hop, para mim, e particularmente, a
coisa que mais, que eu mais aprendi
com o Hip-Hop, e que eu acho que a
maioria dos artistas aprenderam é a
memória, a capacidade de memorizar
várias palavras ao mesmo tempo.
Então, quando estive a estudar, eu usei
muito a coisa do rap para poder
organizar, assim nos testes. Usei muita
matéria da escola. Estudava com Hip-
Hop que era pegar a matéria de
história, por exemplo, pegar na matéria
de geografia, ciências ou filosofia e pôr
rimas. E tornar aquilo numa coisa,
num verso ou dois ou três. Ah, para eu
poder memorizar mais rápido e poder
fazer o teste. Então, eu acho que
muitas outras coisas que pode-se fazer
com o Hip-Hop, do lado assim, literário.
E também muitas coisas que pode
fazer com Hip-Hop, como a dança,
como a pintura. E com a própria
tecnologia do Hip-Hop. Eu acho que
muita coisa que pode se fazer dentro de
uma faculdade. Ah, mas agora estamos
num bom caminho, porque estamos a
começar esta comunicação, estamos a
ter aquela primeira comunicação em
que podemos tentar levar algo que eles
acham que é positivo e introduzir nas
faculdades, para podemos criar uma
espécie de um currículo. Porque a
própria faculdade precisa disso, porque
vários alunos são fãs do Hip-Hop, mas
não tem como estudar. Eu não sei se
vais perceber, então para aulas assim,
fui dar algumas palestras para alunos
do direito. fizemos alguma coisa com
a UEM [Universidade Eduardo
Mondlane]. Ah, eu, Iveth e SG (artistas
de Hip-Hop moçambicanos), já fizemos
com a faculdade de letras. fizemos
muitas coisas então eu acho que agora
espaço para começarmos a
introduzir isso. Por isso, estão a
acontecer conversações e eu também
acho que é muito importante entrar
devagar. Começamos primeiro com
aquilo que chamam de guest teachs: é
aquilo quando tu convidas um artista do
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RIBEIRO, William de Goes; MARTINS, Laís Volpe; SITÓI, Nelson. Sobre
continuidades e descontinuidades na cultura Hip-Hop: o caso de
Moçambique. Entrevista com Simba toi, artista de Hip-Hop
moçambicano. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.305-320, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Hip-Hop, por exemplo, e ele, o próprio
artista prepara-se então. Diz: - Olha o
tema é este. Como é que nós podemos
fazer isto De uma maneira tal que os
alunos possam aprender sem muita
burocracia da coisa. Então eu acho que
essa coisa é muito importante.
Laís Volpe - Simba, você falou também
de duas coisas que eu queria pontuar.
Você falou do seu trabalho pioneiro.
Falou também da Iveth. Aí, se você
puder mencionar um pouco dessa
presença, assim, feminina, no Hip-Hop
moçambicano, seria massa. E também
você falou da diversidade do Hip-Hop
em Moçambique. E acho que outro
ponto que seria massa falar é da
diversidade linguística. Porque vocês
fazem rap, vamos dizer Hip-Hop em
inglês, em português, em changana,
em ronga, em zulu.
Simba Sitói - em changana, em muitas
línguas.
Laís Volpe - Enfim, acho que isso
também é um ponto super
enriquecedor, para o pessoal que está
no Brasil perceber ...
Simba Sitói - Obrigado por ter
mencionado isso. Na questão das
músicas que são feitas em
Moçambique, na verdade em África, as
línguas mais faladas não são as
línguas, por exemplo, de Moçambique.
Nós temos a língua portuguesa como a
língua oficial, mas não é a língua mais
falada. Então tu tens a língua mais
falada em Moçambique é a macua, é
língua dos macuas que é da zona de
Nampula, mas também Cabo Delgado
falam muito macua. Então aqueles, as
províncias com maior número
populacional em Moçambique, uma
delas é esta dos Macuas. Então, é isso,
em cada província tem a sua língua e
essas línguas também são
transformadas. As que estão lá
presentes nas músicas, sejam em outro
estilo de música, mas também no Hip-
Hop. Então, se tens um artista de
Nampula que canta em português,
podes ver, perceber que também
outros versos não são em português.
outros artistas que também
simplesmente fazem música na língua
nativa, assim, sem falar português, e
são artistas também com uma
popularidade muito grande. Então, eh,
e depois também tens a prerrogativa de
Moçambique ser um país que fala
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RIBEIRO, William de Goes; MARTINS, Laís Volpe; SITÓI, Nelson. Sobre
continuidades e descontinuidades na cultura Hip-Hop: o caso de
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Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.305-320, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
português, mas que está cercado de
países que falam inglês. Então desde a
revolução que o país criou laços de
irmandade com alguns países vizinhos
e esses países vizinhos, que falam
inglês, tinham, neste caso, por causa
do ensino em inglês, o ensino britânico.
E tinham mais reconhecimento no
mundo e em várias universidades que
corrigiam os testes em Oxford. Então
vários jovens, depois da revolução,
tiveram o privilégio de ir estudar em
países vizinhos. Seja através de
bolsas, seja porque os pais tinham
melhores condições para mandar os
seus filhos para ir estudar num país
vizinho e é por isso que sente-se muito
essa presença também inglesa nas
músicas e na comunicação entre várias
línguas. Inclusive em changana, que é
uma das minhas línguas aqui locais.
Existem muitas palavras em inglês por
causa desta ligação com o mundo que
fala inglês e não também porque
Moçambique é um país na costa e é um
país que sempre recebeu rias e
várias, assim, nacionalidades. E, desde
os anos antes da Independência, s
tivemos que nos adaptar com várias,
assim, nacionalidades que vinham para
o porto. Vinham para baixo da cidade
para trabalhar e que eram obrigados a
falar inglês, porque todos que vinham
de vários cantos do mundo, tinham que
ir para os restaurantes e esses
restaurantes eles tinham que ter
moçambicanos que falassem as
línguas do mundo. Então, é assim
mesmo como a língua inglesa, as
línguas locais, juntamente com a língua
portuguesa. Tu apanhas até este buffet
de línguas quando ouves o Hip-Hop.
William Ribeiro - Simba, sobre essa
questão da presença feminina, também
acho que Laís tinha perguntado...
Simba Sitói - Eu acho que a presença
feminina no Hip-Hop ainda é um
desafio em Moçambique. O Hip-Hop
sempre foi conotado como uma esfera,
assim, masculina e tens muito poucas
mulheres que se destacam em
Moçambique e que fazem um trabalho
excelente. São artistas que são bem
reconhecidas em Moçambique, mas eu
acho que ainda é um número que eu
gostaria de ver muito maior. Nós temos,
por exemplo, referências como a Iveth,
como eu mencionei, tens a Gina Pepa,
a TMRS Awage, Sista África, Leo Kid e
a Filady, mas ainda acho que o
universo do Hip-Hop feminino é
pequeno. Eu acho que já fizemos
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continuidades e descontinuidades na cultura Hip-Hop: o caso de
Moçambique. Entrevista com Simba toi, artista de Hip-Hop
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Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.305-320, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
dentro do Festival Amor A Camisola,
fizemos uma edição a promover um
concurso feminino e artistas, também a
dar espaço àquelas que são
reconhecidas. Ah, que são elas que
quando subir ao palco, o trabalho ainda
tem que ser muito bem feito. Temos
que fazer mais trabalhos para convidar
mais mulheres a fazerem parte de do
Hip-Hop em Moçambique.
William Ribeiro - Você pode falar um
pouco mais do Festival Amor A
Camisola? E uma dúvida, em relação
às línguas, você falou do inglês, das
línguas moçambicanas e do português.
Fiquei curioso: as nguas, elas
aparecem em letras separadas ou
vocês têm letras que, inclusive,
misturam um momento numa língua,
outro momento em outra? Porque isso
acontece aqui no Brasil.
Simba Sitói - Mas é isso mesmo que
acontece. Nós misturamos muito as
línguas e tens também artistas que
falam, que fazem, por exemplo, que
se expressam numa única língua, que
ou é português ou é changana, ou é
ronga. Mas a maioria do Hip-Hop,
assim, mais popular, é uma mistura de
inglês-português.
William Ribeiro - E o Amor A
Camisola?
Simba Sitói - Ele começou em 2015.
Começamos em 2015 e ano passado
fizemos a nossa sétima edição.
Tivemos parados durante a época do
COVID. Então a sétima edição foi no
ano passado. Este ano [2024] teremos
a oitava edição, mas ainda não ainda
temos, estamos à espera de algumas
respostas para podermos ter certeza
das datas.
William Ribeiro - vou deixar aqui
minha última pergunta, e também,
depois ...
Figura 2 - Simba Sitói no Festival Amor A
Camisola 2023
Fonte: Instagram do artista Simba Sitói.
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Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.305-320, mar. 2025.
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(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Simba Sitói - Eu queria te perguntar...
também ...
William Ribeiro - Sim, claro...
Simba Sitói - Falaste de um do projeto
que estás, que tu conheceste a Laís
com ele. O que o que que é esse
projeto?
William Ribeiro - A Laís me conheceu
em uma disciplina que se chama
Episteme de/ des/ pós-colonial , que é
uma disciplina que trata de uma
maneira mais ampla, de questões
ligadas a efeitos da colonização em
diversos países e as contraposições
epistêmicas. Lendo teorias e textos que
estão trabalhando o tema. E ela
apresentou o projeto dela. Um projeto
de Mestrado que está discutindo a
questão LGBT em Moçambique.
Inclusive, você falou da presença
feminina, cabe também para a gente
ouvir essa presença LGBT no Hip-Hop.
Você falou que a presença feminina é
um desafio. Possivelmente LGBT
também. Se vo quiser falar alguma
coisa, e ela está tratando desse tema.
Laís, se quiser falar mais alguma coisa.
Então quer dizer, a gente se aproximou
porque ela estava precisando de uma
orientação. Aqui no Programa a gente
faz esse processo de orientação e de
formação acadêmica no Mestrado.
Mestrado em Cultura e Territorialidades
[da Universidade Federal Fluminense].
E ela está fazendo esse trabalho aí em
Moçambique, fazendo os estudos dela
também, e construindo em outras
áreas. Porque ela também trabalha
com a produção cultural, com artistas e
tudo mais.
Simba Sitói - No caso do LGBT,
sinceramente, não conheço nenhum na
área do Hip-Hop. Ah então, eu acho
que se temos um défice de mulheres,
eu acho que LGBT também é pior, não
temos mesmo.
Laís Volpe - Total e acho que seria
massa também professor, você falar
um pouco sobre o projeto dos Originais
do Charme e essa sua relação, assim,
com o Charme, com a dança, com Hip-
Hop, que eu acho que também seria
uma plataforma interessante de
conectar com Moçambique.
William Ribeiro - Ah, muito bom Laís.
E a gente faz esse movimento também,
aberto, Simba, de você fazer as
perguntas que você quiser, para
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RIBEIRO, William de Goes; MARTINS, Laís Volpe; SITÓI, Nelson. Sobre
continuidades e descontinuidades na cultura Hip-Hop: o caso de
Moçambique. Entrevista com Simba toi, artista de Hip-Hop
moçambicano. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.305-320, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
conhecer um pouco mais e a gente
trocar ideias. Hoje, estou com 50 anos.
No processo de estudar para me tornar
professor universitário, fui aos
pouquinhos deixando de lado a dança.
E o meu envolvimento no Hip-Hop,
fiquei uns 5 anos mais ou menos
afastado. Com a pandemia e o
movimento de ficar em casa , com os
problemas que eu tive e ligados a isso,
acabei sentindo bastante, me
despertando a vontade de voltar a
dançar. Quando eu voltei a dançar,
para minha surpresa, vi o
amadurecimento das pessoas na
dança. E, vi que não era o único. Que a
geração que aqui no Brasil começou a
dançar, e não o Hip-Hop...antes do
Hip-Hop, o Soul, o Charme, as músicas
da cultura negra e a dança a partir da
cultura negra aqui no Brasil, a geração
estava mais madura. Então comecei a
perceber que havia espaço para eu
continuar a dançar. Danço Charme
também. O Charme acabou sendo uma
cultura carioca que surgiu nas periferias
do subúrbio, principalmente Madureira.
O bairro fica na Zona Norte, uma região
potente da cultura negra: tem escola de
samba, comércio voltado para a
produção cultural e negra etc. E foi
nesse espaço em que eu fui formado
como dançarino. Sempre teve espaço
no Charme para o Hip-Hop, então o
Baile Charme ...tem um baile aqui em
Madureira que acontece nos sábados à
noite, que é um espaço mesmo de
produção, da música, da dança preta
norte-americana e brasileira,
sobretudo. Então onde se dança, onde
tem formação de DJs, onde tem grupos
que dançam e que criam coreografias.
Tem as coreografias que estão
dezenas de anos e que as pessoas
continuam aprendendo e dançando.
Aliás, o dia em que você estiver aqui no
Brasil, faço o convite para a gente ir
à Madureira...
Simba Sitói - Eu acho que podíamos
continuar a conversar num outro dia ou
podemos marcar para amanhã ou...
também estou interessado nesta
conversa, certo?
William Ribeiro - Estou à disposição,
vamos marcar sim para continuar e
trocar contato também. Eu acho que se
você me permitir eu vou passar para
Laís o meu contato de WhatsApp, para
a gente permanecer em contato e
vamos continuar essa conversa.
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continuidades e descontinuidades na cultura Hip-Hop: o caso de
Moçambique. Entrevista com Simba toi, artista de Hip-Hop
moçambicano. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura, Niterói/RJ, Ano 15, n. 28, p.305-320, mar. 2025.
www.periodicos.uff.br/pragmatizes - ISSN 2237-1508
(Dossiê "Hip-Hop no Brasil: a produção de sentidos e as
transformações da cultura")
Simba Sitói - Eu Concordo. Eu posso
mesmo, posso ligar também para ti,
certo.
William Ribeiro - Prazer, muito
obrigado pela disponibilidade.
Simba Sitói - Continuemos
conversando...tchau... valeu pessoal.
Obrigado.