V.23, nº 50 - 2025 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X


AS CULTURAS BRASILEIRAS EM ALFREDO BOSI: AFINIDADES E DISTANCIAMENTOS COM OS ESTUDOS CULTURAIS BRITÂNICOS1



Resumo

Rogério Martins Marlier2 José Wilson Assis Neves Júnior3

Fabio Lanza4

Este artigo analisa o conceito de Culturas Brasileiras exposto no livro Dialética da Colonização de Alfredo Bosi, comparando-o com contribuições dos Estudos Culturais. Em paralelo, revisitou-se as principais definições de Bosi sobre cultura brasileira e o dilema da padronização imposto pela lógica mercadológica capitalista, que explora e silencia a Cultura Popular Brasileira. Além das similaridades, evidenciou-se as diferenças conceituais entre Bosi e os pesquisadores dos Estudos Culturais.

Palavra-chave: Pensamento Social Brasileiro; Dialética da Dependência; Cultura Popular; Cultura Acadêmica; Marxismo Ocidental.


LAS CULTURAS BRASILEÑAS EN ALFREDO BOSI: AFINIDADES Y DISTANCIAS CON ESTUDIOS CULTURALES BRITÁNICOS


Resumen

Este artículo examina el concepto de Cultura Brasileñas presentado en el libro Dialéctica de la Colonización de Alfredo Bosi, que és comparado a las contribuiciónes de Estudios Culturales. En paralelo, fueron revisitadas las principales definiciónes de Bosi sobre cultura brasileña y el dilema de la estandarización impuesto por la lógica capitalista del marketing, que explora y silencia la Cultura Popular Brasileña. Además de las similitudes, fueron evidentes las diferencias conceptuales entre Bosi y los investigadores de Estudios Culturales.

Palabra clave: Pensamiento Social Brasileño; Dialéctica de la Dependencia; Cultura Popular; Cultura Académica; Marxismo Occidental.


BRAZILIAN CULTURES IN ALFREDO BOSI: AFFINITIES AND DISTANCES WITH THE BRITISH CULTURAL STUDIES


Abstract

This paper analizes the concept of Brazilian Cultures in Alfredo Bosi’s Dialectic of Colonization comparing it with contributions from Cultural Studies. In parallel, the paper reviwed Bosi’s main definitions of Brazilian culture and padroniztion dilema, imposed by the captalist marketing logics, wich explores and silence Brazilian Popular Culture. In addition to the similarities, the conceptual differences between Bosi and Cultural Studies researchers were evidenced.

Keyword: Brazilian Social Thought; Dialectics of Dependency; Popular Culture; Academic Culture; Ocidental Marxism.


1Artigo recebido em 18/07/2024. Primeira Avaliação em 03/02/2025. Segunda Avaliação em 07/02/2025. Aprovado em 09/03/2025. Publicado em 09/04/2025. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i50.63762.

2Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná - Brasil. Docente de Sociologia do Instituto Federal do Paraná (IFPR) - Brasil.

E-mail: rogerio.marlier@ifpr.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2764262473869101. ORCID: https://orcid.org/0009-0006-8815-0418.

3Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), São Paulo - Brasil. Assistente Administrativo do Escritório Regional de Apoio à Pesquisa e Internacionalização da Universidade Estadual Paulista. E-mail: nevesjr1991@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7721726000249083.

ORCID: http://orcid.org/0000-0003-0692-0740.

4Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Professor Associado no Departamento de Ciências Sociais, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (M e D), do Programa de Mestrado Profissional em Rede Nacional de Ensino de Sociologia vinculados à Universidade Estadual de Londrina. Coordenador do Laboratório de Estudos sobre as Religiões e Religiosidades da UEL e do Práxis Itinerante (PROEX UEL). E-mail: lanza@uel.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/672308591760194.

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2807-9075

Introdução


O objetivo deste trabalho é analisar o capítulo “Cultura Brasileira e Culturas Brasileiras”, do livro de Alfredo Bosi (1992) Dialética da Colonização, e traçar um princípio de comparação entre as suas teorias e as da escola britânica de Estudos Culturais. A teoria cultural desenvolvida por Bosi apresenta algumas semelhanças com as teorias desenvolvidas pelos estudos culturais, principalmente no que tange ao entendimento de Raymond Williams da “cultura como algo comum”. A cultura comum se manifesta nas experiências comuns do povo e se caracteriza pelo “[...] fato de que a seleção se faz e se refaz, em comum e livremente. O cultivo é um processo comum, fruto de decisões comuns que, por serem comuns, englobam variações reais da vida e as reais variações de crescimento” (Williams, 1969, p. 346).5

Natural de São Paulo, Alfredo Bosi (1936-2021) graduou-se em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), assumindo, posteriormente, a cadeira de literatura brasileira no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. No ano de 2003, Alfredo Bosi ocupou a Cátedra Brasileira de Ciências Sociais “Sérgio Buarque de Holanda” da Maison de Sciences de l’Homme (França). Evidencia-se, assim, o reconhecimento internacional de suas contribuições para a interpretação da realidade social brasileira, reforçando a pertinência da proposta, aqui apresentada, de abordar suas ideias a partir da perspectiva de análise do Pensamento Social Brasileiro.

No livro Dialética da Colonização, Bosi (1992) dá voz a cultura popular, dominada e silenciada, desde o período colonial, pela cultura dominante, mas que se manifesta frequentemente no grito expressivo do oprimido em seu cotidiano. Por outro lado, existem diferenças notáveis entre esses autores, principalmente com relação às influências teóricas. Enquanto na perspectiva dos Estudos Culturais, as principais influências são o culturalismo e o estruturalismo francês, na perspectiva de Bosi há uma predominância da Escola de Frankfurt, principalmente com relação às considerações sobre a cultura de massas, a indústria cultural e a ideologia enquanto estrutura fundamental que dá sustentação às representações que


5 É pertinente, ainda, reforçar que, erigida nos parâmetros de sociabilidade das realidades industriais e democráticas modernas, “uma cultura comum não é, em nenhum nível, uma cultura igual. Mas pressupõe, sempre, a igualdade do ser, sem a qual a experiência comum não pode ser valorizada” (Williams, 1969, p. 326).

consolidam a legitimação da sociedade burguesa. Dessa forma, analisar o texto de Bosi pode contribuir com o entendimento da cultura popular para a democratização cultural no Brasil e iniciar um diálogo com os Estudos Culturais acerca, principalmente das relações entre ideologia e cultura.

As contribuições de Bosi (1992) são abordadas, neste trabalho, a partir da matriz lukácsiana de análise do pensamento, na qual as ideologias são apreendidas como manifestações complexas da capacidade de prévia ideação, que caracterizam as formas de organização típicas da humanidade. Neste sentido, entende-se ideologia como uma das maneiras possíveis de organização das ideias que, edificadas a partir das particularidades conjunturais da realidade material concreta em que estão inseridas, viabilizam o direcionamento das ações cotidianas dos sujeitos singulares a partir de determinados objetivos, vinculados aos interesses de classes/grupos política e socialmente organizados, que tendem a ser compartilhados e internalizados como supostamente comuns ao todo social, potencialmente dirimindo conflitos inerentes ao antagonismo de classes (Lukács, 2018a; 2018b).

O texto, deste modo, encontra-se dividido em três momentos. Primeiramente, é realizada a análise de matriz lukácsiana do pensamento e das ideias de Bosi, a partir dos elementos componentes da realidade concreta em que o intelectual se encontrava inserido, assim como de sua capacidade de apreensão das dimensões complexas que perpassam esta realidade. Em um segundo momento, são abordadas as semelhanças dos Estudos Culturais britânicos com as formulações de Bosi. Por fim, são exploradas as implicações analíticas da mobilização de suas proposições teóricas para a compreensão dos fenômenos culturais na realidade social.


Apreensão da cultura brasileira nos parâmetros do capitalismo dependente


O livro Dialética da Colonização, foi escrito por Alfredo Bosi em diferentes momentos a partir dos anos 1970, quando ele começou a ministrar aulas sobre Cultura Brasileira na USP. O capítulo analisado, escrito entre 1979 e 1980, conclui a obra e tenta dar uma interpretação sobre o conceito de cultura no Brasil. Para Bosi (1992), é difícil entender a cultura brasileira no singular, mesmo porque, a unidade pretendida na expressão não existe em nenhuma sociedade moderna. No Brasil houve uma tendência baseada na Antropologia Cultural, capitaneada por Gilberto

Freyre e que pretendia fazer uma separação das culturas por critérios raciais. Bosi, no entanto, parte por um outro caminho, se aproximando das definições culturalistas do marxismo alemão e entendendo que existem na sociedade brasileira, a cultura erudita universitária, a cultura criadora extrauniversitária, a indústria cultural/cultura de massas e a cultura popular (Bosi, 1992, p. 309).

Assim, para o intelectual brasileiro, a cultura erudita universitária estaria ligada às instituições tecnoburocráticas da classe dominante, enquanto a cultura popular teria como base as produções materiais e simbólicas de uma população iletrada, rústica, sertaneja ou suburbana. Dessa forma, teríamos de um lado a cultura erudita e de massas nas instituições tecnoburocráticas da sociedade capitalista e do outro a cultura popular e a cultura criadora, fora das instituições. Como explica Bosi, no Brasil existem duas formas de processos culturais, “(...) sistemas culturais organizados para funcionar sempre como instituições (a Escola, uma Empresa de Televisão, por exemplo) e manifestações mais rentes à vida subjetiva ou grupal: um poema; uma roda de samba; um mutirão…” (Bosi, 1992, p. 310).

Bosi (1992) ressalta que a cultura universitária no Brasil se estruturou com apoio do Estado e das classes dominantes, afirmando que ocorreram diversas transformações feitas pelo Estado, principalmente no período da ditadura militar, que foram gradualmente suprimindo os estudos humanísticos das grades e inserindo cursos ligados à ideologia tecnoburocrática. Entende-se que este processo de tecnocratização do Ensino Superior brasileiro se relaciona diretamente com a via de desenvolvimento prussiano-colonial, que caracteriza a inserção do país no complexo de complexos do capitalismo internacional, modelo no qual um Estado, majoritariamente autocrático, tende a impor limites ao cultivo do pensamento crítico na maior parte da população – visto que o processo favoreceria a derrocada, ou questionamento, do modelo de superexploração da força de trabalho, necessário à manutenção desta forma de dupla subordinação da classe trabalhadora, responsável pela produção de mais valia tanto para a burguesia interna quanto para a externa (Marini, 2017).

Em continuidade à análise proposta, Bosi indica que a cultura letrada no Brasil depende exclusivamente da universidade e, por fim, acaba embasando o debate das classes dominantes sobre política, cultura e economia, que dão corpo ao sistema de comunicação dominante da cultura de massas, nas palavras do autor:

Abram-se as revistas e os suplementos dos jornais mais informados: as suas seções de cultura alimentam-se de artigos, entrevistas, resenhas e reportagens escritas pelos intelectuais, ou sobre os intelectuais, das maiores universidades do país (...) A cidade já não mais promove aquele tipo de vida cultural e literária tangível até os anos 40, quando a Universidade apenas começava a se implantar e não tinha ainda absorvido profissionalmente os intelectuais. Hoje, a divisão social do trabalho parece ter especializado também a vida do espírito que encontra vias privilegiadas nas instituições de ensino superior (Bosi, 1992, p. 319).


Por outro lado, a cultura fora da universidade é difusa e moldada com o modo de viver do povo em cada localidade do Brasil. Dessa forma, a cultura, a arte, os bens culturais são vividos e pensados, mesmo que sem abstração intelectual (Bosi, 1992, p. 320). A cultura é, assim, apreendida nas contribuições de Bosi como um produto da capacidade ideativa humana, que não somente se constrói a partir das condições materiais da vida social (com tendência à adequação às especificidades de seu meio), mas, também, perpassa um processo dinâmico de transformações e adaptações às mudanças que podem ocorrer, de forma orgânica ou impositiva, nestas múltiplas realidades sociais (pensando as inter-relações complexas que se estabelecem entre o local, regional, nacional e internacional).

Segundo Amin (2006), com o final da Segunda Guerra (1939-1945), os países do Terceiro Mundo passaram a vivenciar a intensificação dos processos de pressão impositiva, explícitos ou velados, para uma transformação mais dinâmica de suas culturas, que favorecesse o alinhamento na disputa entre Estados Unidos (liderando os países capitalistas, que representavam o Primeiro Mundo) e União Soviética (líder internacional do socialismo, proposto enquanto opção de um Segundo Mundo). Determinado embate, pela conquista do alinhamento internacional, é classificado por Ridenti (2022) como Guerra Fria cultural, fenômeno que englobava o financiamento das mais diversificadas formas de produções culturais (tanto comerciais de produções artísticas quanto trabalhos científicos e acadêmicos) e que tinha como uma de suas principais ferramentas de atuação a indústria cultural. Deste modo, com o aprimoramento da indústria cultural, os bens simbólicos passam a ser consumidos enquanto mercadorias, através dos meios de comunicação de

massa, formando assim, uma sociedade de consumo. Indicando que:


O homem da rua liga o seu rádio de pilha e ouve a música popular brasileira ou, mais frequentemente, música popular (ou de massa) norte-americana. A empregada doméstica liga o seu radinho e ouve

a radionovela ou o programa policial ou o programa feminino. A dona de casa liga a televisão e assiste às novelas do horário nobre. O dono da casa liga a televisão e assiste com os filhos ao jogo de futebol (Bosi, 1992, p. 320).


A produção dessas mercadorias culturais leva em conta padrões de comportamento esperados e que fortalecem um vínculo psicológico, reforçando que “os processos psicológicos envolvidos nesses programas são, em geral, os de apelo imediato: sentimentalismo, agressividade, erotismo, medo, fetichismo, curiosidade” (Bosi, 1992, p. 321).

Bosi mostra que muitas discussões foram fomentadas na academia sobre o papel da indústria cultural e da cultura de massas. Ele assume a desconfiança dos pesquisadores da Escola de Frankfurt mostrando o efeito alienador influenciado pelas críticas de Adorno, Marcuse e Horkheimer. Mas, por outro lado, salienta que é necessário perceber que existe um caráter socializador dos meios de comunicação que teriam a tendência, conforme o conteúdo produzido, de instruir e formar cidadãos críticos. Porém, como afirma o autor, “não se deve esperar da cultura de massas e, menos ainda, da sua versão capitalista de indústria cultural, o que ela não quer dar: lições de liberdade social e estímulos para a construção de um mundo que não esteja atrelado ao dinheiro e ao status” (Bosi, 1992, p. 322).

A despeito da aparência paradoxal, as percepções de Bosi expressam a complexidade de seu pensamento frente à interpretação do processo de intensificação das mudanças culturais que começavam a tomar forma na realidade brasileira dos anos 1970 e 1980. Em primeiro lugar, é pertinente evidenciar que, apesar de reforçar o caráter alienante e, por vezes, incompatível da reprodução acrítica de construtos teóricos importados, o intelectual brasileiro enfatiza a necessidade de traçar análises comparativas entre estas teorias estrangeiras e as particularidades da realidade investigada, que possibilitem identificar os elementos passíveis de refutação para as especificidades enfrentadas – em outras palavras, Bosi adverte que a refutação acrítica de uma teoria é tão nociva ao conhecimento científico quanto a reprodução teórica acrítica.

Em continuidade a esta forma complexa de apreensão da realidade, Bosi propõe uma abordagem analítica que supere tendências a dicotomias e simplificações interpretativas. De modo que a indústria cultural, independentemente de suas tendências alienantes, não pode ser analisada sem a consideração de suas

potenciais contribuições para uma transformação qualitativa das realidades em que se insere. Neste sentido, por exemplo, seria simplório denunciar a forma como a indústria cinematográfica estadunidense favoreceu a consolidação da hegemonia política, econômica e cultural do país em nível internacional se a análise ocultasse, intencional ou inconscientemente, o papel que esta mesma indústria exerceu no fortalecimento de pautas identitárias e democratizantes em países do Terceiro Mundo, no decorrer do século XX.

Apreende-se, assim, na construção do pensamento de Alfredo Bosi sobre o tema da cultura, a existência de elementos que expressam a consciência do autor acerca do caráter complexo que permeia o processo de consolidação das configurações conjunturais da cultura de uma sociedade (entendida enquanto um complexo de complexos que vai do local ao internacional). Em outras palavras, Bosi reconhece que os construtos do pensamento (as formas de significar a realidade que nos cerca) se edificam a partir das condições materiais de existência disponíveis em uma época (nelas implícitas as ideias, ferramentas, tecnologias, relações dos indivíduos entre si e com a natureza, entre outras).

Ademais, as contribuições de Bosi trazem relevantes problematizações sobre as formas de intervenção cultural, explícita ou velada, nas concepções culturais populares, que sofrem pressões ao alinhamento de um suposto projeto compartilhado de desenvolvimento da sociedade ocidental. Projeto este produzido, principalmente, por potências capitalistas (objetivando a manutenção e expansão de seus interesses políticos e econômicos) e reproduzido por um modelo de cultura universitária que apresenta tendências a um gradual processo de supressão do que é entendido como tradicional à cultura popular, em prol do que é favorável ao progresso nos parâmetros da ciência ocidental.


Afinidades e assimetrias da teoria cultural de Bosi com a corrente britânica dos Estudos Culturais


A cultura para as massas e a cultura universitária são estruturadas pelo Estado e pelas empresas com a finalidade de administrar a produção e circulação de bens simbólicos. Mas, observando o conceito antropológico de cultura, Bosi compreende que grande parte dos fenômenos culturais são encontrados no seio do mundo vivido e de um imaginário formado por uma diversidade de processos

culturais, provenientes dos rincões do país. Na cultura popular, as instituições são espontâneas e não obedecem a uma lógica burocrática e nem econômica. E, apesar dos sujeitos estarem expostos à cultura dominante, seja acadêmica ou a de massas, eles expressam a cultura de diversas maneiras, das festas do Divino ao samba-de-roda (Bosi, 1992, p. 323).

Essa observação mais antropológica, feita por Bosi, se assemelha com o desenvolvimento da teoria da cultura, proposto pelos autores dos Estudos Culturais. Hall (2003), destaca que o entendimento sobre o conceito de cultura proporcionado por Hoggart, Williams e Thompson parte do pressuposto da relação entre Cultura e Sociedade, isto é, a cultura deriva de representações que são importantes para compreender a realidade social (Hall, 2003, 133). A cultura está imbricada na sociedade e nos intensos processos de socialização. A cultura, neste sentido, é definida como a “soma das descrições disponíveis pelas quais as sociedades dão sentido e refletem as suas experiências comuns” (Hall, 2003, p. 135).

Assim, a cultura é pensada como um amplo processo social, ou seja, está generalizada como algo comum e não como o extrato do “melhor”, idealizado pelas elites culturais. A cultura, dessa forma, não pode se desvincular de outras relações sociais que formam o processo histórico como o sistema produtivo, as relações políticas, a desigualdade social, as relações familiares, entre outras – nessa primeira acepção, ela é concebida enquanto superestrutura da sociedade. Uma segunda teorização de Williams (2012) entende a cultura enquanto práticas sociais e está mais associada a uma definição antropológica. Se o conceito de cultura está definido enquanto práticas sociais que geram um modo de vida global, se aproximando da definição atribuída pela Antropologia, a "Teoria da Cultura" é um estudo sobre essas relações. Dessa forma, a cultura se observa em todas as relações sociais, como afirma Hall, "a cultura é esse padrão de organização, essas formas características de energia humana que podem ser descobertas como reveladoras de si mesmas..." (Hall, 2003, p. 136).

Tanto Bosi, quanto os autores dos Estudos Culturais britânicos, se empenham em ampliar o conceito de cultura para a dimensão das relações sociais e formar um movimento para romper com os estudos etnocêntricos que apreendiam a “cultura’ como o topo de uma torre de marfim, isolada das classes sociais desfavorecidas e apreciada pelas classes que conseguissem escalar os degraus de status social.

Para analisar a cultura, portanto, é necessário estudar os padrões que são formados nas inter-relações das práticas culturais (como arte, comércio, política, produção, tradições familiares) e como eles são vividos e experimentados como um todo inserido num determinado contexto histórico (Hall, 2003).

Segundo Bosi, no Brasil, existiria uma tendência evolucionista nos estudos sociológicos que define as manifestações culturais populares como “residuais”, entendendo essas expressões como “sobrevivência”. Em sua interpretação, determinado posicionamento, menospreza o processo de criação cultural: “Certa vertente culta, ocidentalizante, de fundo colonizador, estigmatiza a cultura popular como fóssil correspondente a estados de primitivismo, atraso, demora, subdesenvolvimento” (Bosi, 1992, p. 323). Essa estigmatização dos estudos evolucionistas têm por finalidade compreender esse processo imaginando a integração dos sujeitos na cultura de massas ou na cultura escolar e visualiza o consequente “desaparecimento” da cultura arcaica ou folclore.

Existe uma outra vertente denominada por Bosi de romântico-nacionalista que procura idolatrar o folclore e toma os valores transmitidos pela ação cultural como eternamente válidos, como se essas culturas estivessem isoladas identificando-as com o “espírito do povo” ou com a “Nação”.

Bosi indica que essas duas tendências de análise são equivocadas para compreender a dinâmica da cultura popular, principalmente as relações que ocorrem nas culturas institucionalizadas como a cultura de massas (Bosi, 1992, p. 324). Para superar esses paradigmas, ele propõe uma teoria da aculturação, que visa compreender as relações que se estabelecem entre a cultura popular e os outros tipos de expressão cultural. Dessa forma, para estudar o fenômeno da cultura é necessário entender o cotidiano dos sujeitos, as formas como eles se expressam e como simbolizam a realidade em que vivem. As existências material e espiritual são imbricadas quando se estuda a cultura popular:

Cultura popular implica modos de viver: o alimento, o vestuário, a relação homem- mulher, a habitação, os hábitos de limpeza, as práticas de cura, as relações de parentesco, a divisão das tarefas durante a jornada e, simultaneamente, as crenças, os cantos, as danças, os jogos, a caça, a pesca, o fumo, a bebida, os provérbios, os modos de cumprimentar, as palavras tabus, os eufemismos, o modo de olhar, o modo de sentar, o modo de andar, o modo de visitar e ser visitado, as romarias, as promessas, as festas de padroeiro, o modo de criar galinha e porco, os modos de plantar feijão, milho e

mandioca, o conhecimento do tempo, o modo de rir e de chorar, de agredir e de consolar… (Bosi, 1992, p. 324).


É desse processo que se extrai uma concepção fundamental dos Estudos Culturais, que consiste em apreender “a cultura como algo que se entrelaça a todas as práticas sociais; e essas práticas, por sua vez, como uma forma comum de atividade humana, como a atividade através da qual homens e mulheres fazem história” (Hall, 2003, p. 141-142). Ou seja, os processos históricos formam estruturas que condicionam os indivíduos, através de tradições e práticas sociais que são incorporados, ao passo que estes lutam pelas suas condições de sobrevivência, sendo a cultura o resultado deste processo (Hall, 2003, p. 142).

Williams (2012) chega a essa conclusão a partir da busca por compreender melhor o processo dialético e se esquivar do determinismo econômico que rondava as produções marxistas do século XX. No livro The Long Revolution, Williams (2012) critica o determinismo econômico decorrente de uma interpretação vulgar do marxismo – que compreende a superestrutura como extensão da infraestrutura sem uma efetividade social própria. Para substituir este tipo de interpretação, Williams se apropria de um "interacionismo radical" que compreende a interação dialética entre infraestrutura e superestrutura sem a existência de uma determinação causal.

A práxis surge então para decodificar esse processo dialético entre pensamento e ação, superando a noção de prática e evidenciando a ação humana como fruto de um processo tensionado que se liga com as estruturas da sociedade. Nesta perspectiva, “os padrões subjacentes que distinguem o complexo das práticas numa sociedade específica em determinado período são ‘formas de organização’ características que embasam a todas e que, portanto, podem ser traçadas em cada uma delas” (Hall, 2003, p. 137).

Williams (1971), dessa forma, compreende que existe certa convergência entre as suas considerações e a de autores que também estavam trabalhando com a noção de superestrutura como Lucien Goldmann.6 O estruturalismo genético de Goldmann ajudou Williams a explicar melhor a relação dialética entre estrutura e experiência observando as práticas sociais inseridas nas totalidades. Logo, a práxis é um movimento que dá sentido ao fazer humano, não estando dissociada das


6 O processo de reconhecimento, por parte de Raymond Williams, do caráter qualitativo de contribuições sobre o tema da cultura, por parte de um conjunto de autores marxistas (dentre os quais se destaca Lucien Goldmann), encontra-se registrado no artigo “Literature and Sociology: in memory of Lucien Goldmann” publicado em 1971 na New Left Review.

relações sociais estruturadas que impulsionam o indivíduo a reproduzir as relações de produção.

Dentro deste escopo, Raymond Williams é levado a repensar a determinação econômica e política através do conceito de hegemonia de Gramsci (Hall, 2003, p. 139). A infraestrutura aparece com mais convicção no ensaio “Base and Superstructure in Marxist Cultural Theory”, no qual, Williams (2005 [1973)7 leva em consideração as práticas culturais dominantes, residuais e emergentes que entram em conflito dentro de uma perspectiva de luta de classes. (Hall, 2003, p. 139). Os tons que Williams trabalhava o conflito, mais atenuados e generalistas, dão lugar ao conceito de hegemonia gramsciano,8 a partir do qual o intelectual britânico enfatiza:

Temos de deixar claro que a hegemonia não é algo unívoco; que, de fato, suas próprias estruturas internas são altamente complexas, e têm de ser renovadas, recriadas e defendidas continuamente; e que do mesmo modo elas podem ser continuamente desafiadas e em certos aspectos modificadas. É por isso que ao invés de falar simplesmente de “a hegemonia”, ou em “uma hegemonia”, eu proporia um modelo que permitisse a variação e a contradição, com seu conjunto de alternativas e processos de mudança (Williams, 2005, p. 216).

Contudo, na concepção de Bosi esse fenômeno está mais próximo do que ele denomina de “materialismo animista”, isto é, a forma como ideia e matéria se confundem no mundo vivido, no cotidiano empobrecido da população brasileira, seja ela urbana ou rural (Bosi, 1993, p. 325). O materialismo de Bosi observa a pobreza material enquanto riqueza cultural, o homem e a mulher das classes mais empobrecidas lidam com o trabalho para garantir a sobrevivência, processo que gera uma sabedoria popular baseada no realismo e na praticidade – servindo como mecanismo de defesa contra a pobreza material, a desigualdade racial, os desastres naturais, a violência criminal e policial, entre outras. (Bosi, 1993). No entanto, Bosi adverte que esse materialismo animista não é desencantado, no sentido weberiano:

Há, na mente dos mais desvalidos, uma relação tácita com uma força superior (Deus, a Providência); relação que, no sincretismo religioso, se desdobra em várias entidades anímicas, dotadas de energia e intencionalidade, como os santos, os espíritos celestes, os espíritos


7 O ensaio foi originalmente publicado pela New Left Review no ano de 1973, sendo que para este trabalho utilizou-se a versão traduzida para o português publicada pela Revista USP (2005).

8 Segundo Anderson (1989), o conceito gramsciano de hegemonia, diz respeito ao domínio sobre as instituições culturais pelo qual os indivíduos constituem sua visão de mundo e legitimam a estrutura da sociedade. A construção da hegemonia estaria em disputa, como afirma Anderson (1989), evidenciando a guerra de posições que é comum dentro das instituições culturais.

infernais, os mortos; e assimila ao mesmo panteão os ídolos provindos da comunicação de massa ou, eventualmente, as pessoas mais prestigiadas no interior da sociedade (Bosi, 1993, p. 325).


Assim, o materialismo animista evidencia uma dialética do mundo vivido na cultura popular brasileira, na qual espírito e matéria se unem no mundo da vida dos sujeitos das classes populares. Essa forma de interpretação e simbolização mágica das relações materiais não é exclusividade das classes populares, isto é, pode ser encontrada em outras classes sociais (Bosi, 1993, p. 325).

O materialismo animista possui uma determinação secular, que remonta ao período colonial brasileiro, período no qual a vida urbana quase inexistia. As formas de vida rural proporcionaram a este saber um entendimento complexo da relação do ser humano com a natureza, atribuindo significado aos fenômenos naturais, sejam eles físicos (como as chuvas e as secas) ou biológicos (como as doenças e a gestação).

A visão cíclica da História conjugada com a visão cíclica da Natureza, são outra característica do materialismo animista que compreende a existência enquanto um processo de idas e voltas num movimento incessante. Dessa forma, Bosi compreende que as principais características da cultura popular são: “materialismo, animismo, visão cíclica da existência (ou reversibilidade). Fica implícito, no termo popular, que essa cultura é, acima de tudo, grupal e supraindividual, ela é a garantia de sua perpetuação, que resiste à perda de elementos individuais (Bosi, 1992, p. 326).

Indica-se, deste modo, que a percepção teórica de Bosi, acerca da pertinência e construção de um pensamento complexo que apreenda as múltiplas especificidades da realidade social brasileira (sem deixar de considerar o potencial das contribuições teóricas estrangeiras), direcionam suas análises para uma construção analítica que podem ser comparada com as contribuições da corrente britânica dos Estudos Culturais, mas que, ao mesmo tempo, se preocupa com a identificação das particularidades do local/nacional, demandando a superação de pressupostos teóricos.

A formação da cultura popular brasileira é apreendida como fenômeno complexo e multifacetado, que permeia dinâmicos processos de transformação condicionados por suas situações configuracionais. Determinada acepção, traz como uma de suas implicações o reconhecimento da necessidade de uma

abordagem teórico-metodológica que esteja adequada às especificidades complexas de seu objeto de análise.


Implicações do conceito de cultura em Alfredo Bosi


O rigor dialético leva Bosi a compreender as relações entre cultura de massas e cultura popular como um processo, um movimento dinâmico de visões antagônicas de mundo. A cultura de massa invade a vida privada do trabalhador rural e do trabalhador urbano, principalmente pela onipresença dos aparelhos de televisão e, atualmente, pelos aparelhos celulares e internet. Essa ocupação das horas de lazer, aparentemente mostra a força da indústria cultural que formaria a vida cultural, homogeneizando as relações sociais (Bosi, 1992, p. 326). A indústria cultural também explora a vida popular, com reportagens popularescas, de diversas maneiras: na promoção do assistencialismo; na exposição da humilhação desumana nos programas policiais; nas reportagens de turismo, onde a vida popular se transforma em mercadoria; entre outras. Contudo, ao mesmo tempo que são receptores dos processos culturais voltados para as massas, os sujeitos interpretam ao seu modo esses produtos, como explica Bosi:

Há um filtro, com rejeições maciças da matéria impertinente, e adaptações sensíveis da matéria assimilável. De resto, a propaganda não consegue vender a quem não tem dinheiro. Ela acaba fazendo o que menos quer: dando imagens, espalhando palavras, desenvolvendo ritmos, que são incorporados ou re-incorporados pela generosa gratuidade do imaginário popular (Bosi, 1992, p. 329).


Para Martín-Barbero (1997), o reconhecimento do popular está atrelado ao entendimento do povo enquanto sujeito e não meramente um objeto exterior à compreensão. Essa transformação induz a relacionar o universal com o particular, a cultura institucional com a cultura cotidiana. Dessa forma, as pressões exercidas pela cultura de consumo, fazem as sociedades periféricas se reinventarem. Martín-Barbero (1997) cita os exemplos do artesanato e do turismo como elementos da cultura de massas institucionalizada que exerce pressões sobre a cultura popular. O artesanato se encontra diante das pressões pela padronização dos produtos e diante do processo da divisão do trabalho capitalista, organizado numa rotina de exploração ou auto-exploração do trabalho (Martín-Barbero, 1997, p. 262). Ao mesmo tempo que existe essa força transformadora da cultura de massas da

sociedade capitalista que empurra essas comunidades para os seus processos desiguais de produção, a cultura popular opera pela “apropriação transformadora”, como afirma Martín-Barbero,

A festa é o espaço de uma produção simbólica especial, na qual os rituais são o modo de apropriação de uma economia que lhes agride, mas ainda não pôde suprimir nem substituir sua peculiar relação com o possível e o radicalmente diverso - que é o sentido da mediação que os objetos sagrados e os ritos efetuam entre memória e utopia (Martín-Barbero, 1997, p. 264).


A cultura é um processo no qual, ao mesmo tempo em que se transforma em mercadoria (sendo consumida diuturnamente pelos sujeitos), se reinventa como prática cultural significante, uma cultura viva com significados próprios, como pode ser observado nas afirmações de Martín-Barbero e Bosi. Nesse sentido, Alfredo Bosi advoga contra o entendimento de que a indústria cultural pode acabar com a cultura popular, para ele, a cultura está em constante remodelação, a cultura seria um ato de trabalho contínuo que se refaz pela ação popular.

O processo de reformulação constante, a dialética do Universal ao particular, também está presente na relação entre Cultura Popular e Cultura Erudita. Para Bosi, a cultura erudito-universitária tem dois momentos distintos, um que ignora as manifestações culturais populares, evidenciando a marca da distância entre os dois polos, ou observa de maneira simpática a espontaneidade da cultura popular (Bosi, 1992, p. 330).

O contato da cultura erudita com a cultura popular produz sentidos diferentes, por um lado, pode ser observado uma visão demagógica e populista proporcionada pelo elitismo das classes dominantes, e por outro, a relação entre cultura erudita e popular pode elaborar obras de arte que procuram compreender e reelaborar criticamente os significados da cultura popular (Bosi, 1992, p. 330).

O artista culto só consegue perceber as relações vivenciadas pela população, sem redundar em preconceito ou estereotipia, quando mergulha profundamente no universo da cultura popular, gerando uma relação empática entre as duas culturas. Ou seja, é necessário um enraizamento sincero e prolongado para que os preconceitos não aflorem (Bosi, 1992, p. 331). Esse exercício próprio da Antropologia é uma das características comuns encontradas nos Estudos Culturais (Hall, 2003).

A cultura erudita já produziu inúmeras interpretações preconceituosas da cultura popular no Brasil. Isso começa na primeira fase da colonização quando os conquistadores portugueses e as classes dominantes simplesmente ignoraram a cultura indígena e africana no Brasil, desvinculando em muitos casos esses sujeitos da humanidade, com o fim de poder escravizar esses povos (Bosi, 1992, p. 331). Somente a partir da Independência começam a surgir sistemas ideológicos que exaltavam as culturas nativas, com profunda influência do positivismo e nacionalismo europeus. O índio, o negro e o mestiço eram vistos com simpatia, mas, também, eram tidos como inferiores ao homem branco, nos ensaios de folcloristas como Sílvio Romero e João Ribeiro (Bosi, 1992, p. 332).9

Martín-Barbero (1997) concorda que a cultura erudita e elitizada enxerga o popular como um "outro", distante e primitivo, ao qual é negada a existência cultural. A interpretação etnocêntrica sobre os povos indígenas influenciou uma compreensão preconceituosa sobre a cultura popular, rural e urbana. Tanto a intelligentsia de direita quanto de esquerda, erram ao interpretar o popular, principalmente por conta do distanciamento da análise (Martín-Barbero, 1997, p. 266).

No Brasil, o modernismo compreende essa relação de maneira mais complexa, como a ideia de cruzamento de culturas que aparece no nacionalismo estético de Mário de Andrade e o antropofagismo de Oswald de Andrade. Mesmo com uma compreensão mais complexa, o modernismo produz sentidos e gera ideologias que denotam um etnocentrismo na visão sobre a relação entre Brasil e Europa. Como afirma Bosi,

Ambas as teses, apesar de tão distintas na sua formulação, podem avizinhar-se enquanto postulam uma assimilação de códigos europeus por um presumido caráter (ou não-caráter) nacional brasileiro, que se explicaria por uma combinação de mentalidade pré-lógica (a expressão era tomada a Lévy-Bruhl) e formas civilizadas sobrepostas por motivos históricos: colonização, catequese etc (Bosi, 1992, p. 333).


O etnocentrismo no movimento modernista e, também, no tropicalismo procura compreender a espontaneidade popular de maneira irracional/natural,


9 "Os Sertões", de Euclides da Cunha, é outra obra mobilizada por Bosi (1992, p. 332) para ilustrar produções que se utilizam de estereótipos para compreender a cultura de um povo. Neste caso, Bosi indica a ênfase grande sobre os aspectos biológicos e naturais da população sertaneja do Nordeste, como um indício de uma visão etnocêntrica sobre esta cultura.

reelaborando elementos culturais europeus considerados superiores, produzindo algo novo que não escapa desses elementos ideológicos, como afirma Bosi:

Nesse processo, o risco mais comum é repetir, talvez sem as riquezas da fantasia estética modernista, o fenômeno ideológico e psicológico da projeção, de que os modernistas, aliás, não escaparam: projeção de neuroses, desequilíbrios, preconceitos, recalques e desrecalques do intelectual na matéria popular assumida como válvula de escape da subjetividade pequeno-burguesa (Bosi, 1992, p. 334).


Ao compreender a deformação do modernismo na interpretação da cultura popular, Bosi se aproxima das interpretações psicanalíticas do culturalismo alemão da Escola de Frankfurt e revela o quão próximo essa interpretação está da escola francesa do estruturalismo, que influenciou sobremaneira os Estudos Culturais britânicos. Porém, o estruturalismo utiliza a corrente lacaniana da psicanálise que estende a estrutura da linguagem para uma teoria do assujeitamento, na qual as estruturas ideológicas da sociedade impactam decisivamente na ação dos indivíduos. Essa teoria do sujeito se distancia da compreensão frankfurtiana que busca adaptar a própria metapsicologia de Freud, compreendendo o sujeito dentro de uma autonomia constitutiva, mas, de certa forma, cindido pelo inconsciente (Anderson, 1989, p. 118).

É a partir daí que os marxismos alemão e francês se encontram, mas ao mesmo tempo se distanciam, pois, a interpretação da cultura está sujeita ao entendimento do funcionamento da ideologia marcada no inconsciente, sendo que este é estruturado pela linguagem no estruturalismo e pós-estruturalismo, enquanto o inconsciente, para os alemães, está associado a uma teoria do sujeito concomitante a uma teoria da ação.

Bosi, mantendo essas prerrogativas frankfurtianas, continua sua crítica à cultura erudita sobre o confronto com as manifestações folclóricas, na qual, longe das tentativas mais robustas e complexas do modernismo, há simplesmente a tentativa de desqualificar essas manifestações culturais (Bosi, 1992, p. 334). Na visão de Bosi, esse processo é atribuído ao esforço dos intelectuais brasileiros em se adequar a um estilo internacional de vida, que profundamente arraigado na cultura universitária tecnicista, acaba distanciando-os da cultura popular, influenciados também pelas barreiras de classe e de cor. Nas palavras de Bosi,

No seu culto, tantas vezes involuntário, da autoridade (afinal, o elitismo quer-se, pelo menos, liberal), o intelectual, consumidor alto, introjetou tão profundamente um esquema de dominação que já não se apercebe dele. Na sua alienação, consegue excluir do seu universo a existência concreta do dominado. Conhece-o de citação. Senta-se na poltrona requintada feita pelo artífice que ele nunca verá. Recebe os emolumentos, ou honorários, que provêm dos impostos de uma população de poucas letras, com a qual não tem tempo nunca de conversar. Mas pouco se inquieta com isso. Ele prossegue firmemente na sua carreira e nas suas mais íntimas convicções que são exatamente as mais públicas e correntes da ideologia pseudo-racional dominante (Bosi, 1992, p. 335).


Ao passo que Bosi explica como a cultura popular é compreendida pela cultura erudita, ele também compreende o caminho inverso. Desde a colonização se conhece exemplos de hibridismo cultural observado na reinterpretação da cultura aristocrática para a cultura popular, como as cavalhadas nordestinas, o Carnaval ou o Candomblé, que ressignificaram padrões culturais europeus e os traduziram em expressão da cultura africana, mestiça, cabocla, indígena, entre outras (Bosi, 1992, p. 337). Baseado em Melville Herskovits e Roger Bastide, Bosi compreende o fenômeno da reinterpretação cultural, na qual a cultura dominante tem uma forte tendência de ser absorvida e descodificada pelos sujeitos pertencentes às camadas populares, principalmente motivado pelo desejo de “aprender os dons e os poderes de seus patrões” (Bosi, 1992, p. 337). Como exemplo de reinterpretação cultural, Bosi cita a literatura de cordel:


Veja-se essa coisa complexa e surpreendente que é a literatura de cordel: o cantador, homem que domina o alfabeto e está nos confins da cultura escolar e da cultura de massas, volta-se para um público, muitas vezes iletrado ou semianalfabeto, para explorar conteúdos e valores do homem rústico, já não em estado puro, mas em permanente contacto com a vida urbana. Ele também, de certo modo, reinterpreta em termos mágicos ou religiosos os acontecimentos exteriores à esfera estritamente sertaneja, e que vão desde a chegada do homem à Lua até a descida de Roberto Carlos no inferno. Remeto aqui os interessados aos belíssimos estudos de Mário de Andrade sobre as danças dramáticas do Brasil e sobre os cruzamentos culturais da arte do Aleijadinho (Bosi, 1992, p. 337).

A análise de Bosi atinge um ponto que a distância das análises baseadas no marxismo ocidental, em especial nos Estudos Culturais. Ele entende que não basta apenas a análise crítica da cultura brasileira, defendendo ser urgente e necessária a formulação de um projeto político que pense a saída da encruzilhada dos processos culturais no Brasil. Como forma de superação do avanço da sociedade de classes,

caracterizada por um Estado que oscila historicamente entre o liberalismo e o autoritarismo. A partir disto, Bosi propõe a democratização das culturas brasileiras, processo que estaria atrelado a uma proposta libertadora de educação, baseada em Paulo Freire. Não seria apenas a multiplicação de escolas que geraria uma educação culturalmente democrática, mas uma educação lastreada no mundo vivido das pessoas, que é rico em significados.

A teoria da cultura, dessa forma, teria o papel não apenas de criticar agudamente as relações culturais no Brasil, mas, também, propor transformações (Bosi, 1992, p. 341). No projeto educacional, a cultura erudita deveria centralizar os seus esforços para compreender as dinâmicas da cultura do povo e incentivar produções culturais nesse sentido – em outras palavras, a cultura de cima deveria se voltar para a cultura de baixo, por meio de projetos políticos educacionais. Assim, numa direção, a Escola/Universidade seria lugar de acolhimento e compreensão da cultura popular, enquanto, em outra direção, ela teria o papel de crítica e controle da indústria cultural. Dentro desta perspectiva, formar uma consciência crítica seria a principal responsabilidade dos sistemas de ensino.

A crítica às culturas dominantes e contemporâneas, concomitantemente com a inserção das práticas culturais brasileiras está no cerne do que Bosi entende por filosofia da educação brasileira. A escola precisaria, então,

Educar para o trabalho junto ao povo, educar para repensar a tradição cultural, educar para criar novos valores de solidariedade; e, no momento atual, mais do que nunca, pôr em prática o ensino do maior mestre da Educação brasileira, Paulo Freire: educar para a liberdade (Bosi, 1992, p., 342).


Por fim, essa luta para ultrapassar as barreiras ideológicas, que separam a cultura dominante da cultura dominada, é também descrita na criação cultural individualizada, isto é, na obra de arte brasileira, onde são numerosos os esforços contemporâneos para uma produção crítica (Bosi, 1992, p. 343). Na criação cultural existem dois tempos distintos, o tempo corporal que está ligado à sensibilidade e a imaginação e o tempo social que está ligado às relações de trabalho na sociedade capitalista. A linguagem do criador é tensionada nesses dois tempos, gerando a expressão pessoal e a comunicação pública.

Para se aproximar da linguagem popular é necessário transpor barreiras ideológicas e sociais. Autores da literatura (como Mário de Andrade, Graciliano

Ramos, João Cabral de Melo e Neto, Dalton Trevisan, José Lins do Rêgo, Érico Veríssimo e Rubem Fonseca), músicos (como Adoniran Barbosa, Chico Buarque, Gilberto Gil, Clementina de Jesus) e autores do teatro (como Guarnieri, Boal, Oduvaldo Viana Filho, Plínio Marcos e Ariano Suassuna), são alguns exemplos que descrevem obras críticas importantes para repensar o Brasil e suas desigualdades (Bosi, 1992, p. 343).


Considerações finais


A percepção de Alfredo Bosi sobre os processos culturais no Brasil, concebida na obra Dialética da Colonização, reflete a complexidade do tema. Dessa forma, o conceito de cultura é entendido no plural e pode ser observado no âmbito da cultura erudita, da cultura erudita extrauniversitária, da cultura popular e da cultura de massa. Essa última é guiada pelos impulsos econômicos da sociedade capitalista que foram intensificados depois da Segunda Guerra Mundial pela indústria cultural e se sobressai diante das demais pelas tecnologias de comunicação de massa. Bosi, no entanto, propõe uma abordagem analítica que evite simplificações e considere tanto os aspectos alienantes quanto os contributivos da indústria cultural. Ele reconhece a complexidade da cultura, que se forma a partir das condições materiais de existência, e problematiza as intervenções culturais que buscam alinhar as culturas populares a projetos de desenvolvimento ocidentais, muitas vezes em detrimento das tradições locais.

O entendimento do conceito plural de cultura e da valorização da cultura popular é remetido usualmente à escola dos Estudos Culturais, em especial pela disseminação no Brasil dos autores britânicos. Apesar disso, observou-se que a elaboração conceitual de Alfredo Bosi, ainda que heterogênea, chega a contornos adjacentes com os Estudos Culturais. Cabe ressaltar que a heterogeneidade é um dos pressupostos que se assemelham nas definições sobre cultura dos autores em tela – visto que nem Bosi (1992), Hall (2003) ou Martín-Barbero (1997) entendem que este conceito esteja completamente definido. Ele passou por diferentes reformulações, que tocam num ponto em comum: a tentativa de superar uma visão acadêmica elitizada sobre cultura, que observa a cultura popular de fora, por citações, sem ter uma proximidade acolhedora com a realidade do povo.

Pôde-se observar que o que motivou o esforço para incluir o popular em conceitos elitizados como cultura e arte, foi a metodologia baseada no marxismo ocidental, desenvolvido na Europa do séc. XX. Segundo Anderson (1989), esse marxismo é marcado pelo fracasso do projeto revolucionário na Europa e, junto com a Revolução Russa, com o crescimento do movimento nazifascista europeu e o consequente banho de sangue da Segunda Guerra Mundial, levou a maior parte dos pesquisadores a se instigar com os elementos complexos que geravam uma legitimidade duradoura do sistema capitalista. A maior parte dos autores marxistas europeus do séc. XX se voltaram a compreender, então, o papel da superestrutura nas sociedades e em especial a forma como a cultura faz parte da maquinaria sofisticada da sociedade industrial.

Os Estudos Culturais britânicos estão inseridos neste contexto, assim como, o estruturalismo e pós-estruturalismo francês, o neo-hegelianismo alemão da Escola de Frankfurt e de Antonio Gramsci na Itália. Esses estudos chegam ao mesmo ponto, na relação entre Cultura e Ideologia, mas de diferentes formas. Os conceitos de Cultura de Massas, Indústria Cultural, Hegemonia, Cultura Popular, entre outros, surgem das discussões desses autores. Bosi apresenta preferência pela escola alemã, mas compreende os seus limites, se apropriando criticamente de conceitos da Antropologia Cultural. Por outro lado, os Estudos Culturais, ficam no limiar entre o Culturalismo e o Estruturalismo/Pós-estruturalismo, dando preferência para a escola francesa e para a teoria de Gramsci, mas com influência dos estudos antropológicos.

A inserção da Antropologia fez os autores alargarem a noção de Cultura que começou a fazer parte do conceito de socialização e das relações sociais como um todo, transitando pelas relações econômicas, políticas, artísticas, religiosas etc. Assim, para Bosi, a Cultura Popular engloba todos esses fenômenos, que passam a ter significados e expressões próprias. Por outro lado, observa a Cultura Erudita como cultura da classe dominante que busca a hegemonia nos processos culturais. E a Indústria Cultural surge como consequência da sociedade industrial, transformando as expressões culturais em mercadorias padronizadas, cujo efeito ideológico é a alienação, que foi intensificado nos países do terceiro mundo com a Guerra Fria cultural com base na imposição da cultura dominante americana no Brasil.

Apesar deste processo ser incisivo, ele não é determinante, pois os sujeitos ao mesmo tempo que recebem a carga ideológica da padronização da cultura voltada para as massas, também ressignificam esses padrões. Aqui temos o movimento dialético entre Infraestrutura e Superestrutura, que é importante para Bosi e para os autores da escola de Estudos Culturais. Apesar das expressões culturais padronizadas terem um papel ideológico deformador, a capacidade criativa do povo humilde gera expressões culturais cotidianas que dão novo significado ao movimento ideológico da sociedade ocidental.

Examinando essas similaridades, mesmo com construções teóricas diferentes, cabe ressaltar o aspecto que destoa Alfredo Bosi dos Estudos Culturais e das vertentes marxistas ocidentais: a elaboração de um projeto político educacional que visa superar os processos alienadores da cultura voltada para as massas. Segundo Anderson (1989), o marxismo ocidental, com exceção de Gramsci, é caracterizado pelo pessimismo, no qual as análises chegam a mostrar o caráter irresistível da dominação burguesa na sociedade capitalista não enxergando uma proposta que tente visualizar possíveis mudanças no âmbito político. Por outro lado, Bosi, baseado em Paulo Freire, propõe a democratização das culturas brasileiras pela reforma da educação básica e universitária.

Na proposta de Bosi, a Cultura Erudita, a Cultura de Massas e a Cultura Popular se relacionariam horizontalmente com a valorização da Cultura Popular nos currículos escolares e universitários, destoando, assim, da verticalização que favorece, sobretudo, a Cultura Erudita. A educação, dessa forma, estaria atrelada ao cotidiano do mundo vivido, à noção da cultura como algo comum e geraria as condições para a aprendizagem voltada para a liberdade. O engajamento político de Bosi o aproxima de autores da Sociologia Brasileira que viam a necessidade de conjugar a teoria com a prática e o engajamento político. Portanto, a concepção de práxis se torna um elemento fundamental na análise deste teórico da Cultura Brasileira.

Referências


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