V.23, nº 51 - 2025 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
Lícia Cristina Araújo da Hora2 Michelle Freitas Teixeira3
O artigo tem por finalidade levantar questões para reflexão sobre o conceito de experiência, recorrente no debate acerca do processo de escolarização na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Apresenta- se a biografia de John Dewey e de Edward Palmer Thompson para, em seguida, distinguir o conceito de experiência utilizado por ambos em suas obras: no primeiro, evidencia-se a visão liberal do filósofo estadunidense; no segundo, uma concepção materialista histórica, formulada pelo historiador inglês marxista. A análise fundamenta-se em revisão de literatura e em estudos sobre as obras dos autores. Palavras-chave: Experiência. Jonh Dewey. Edward Thompson. Educação de Jovens e Adultos.
Este artículo busca plantear preguntas para la reflexión sobre el concepto de experiencia, un tema recurrente en el debate sobre el proceso de escolarización en la Educación de Personas Jóvenes y Adultas (EJA). El artículo presenta las biografías de John Dewey y Edward Palmer Thompson, y posteriormente distingue los conceptos de experiencia utilizados por ambos en sus obras: el primero destaca la visión liberal del filósofo estadounidense; el segundo, una concepción materialista histórica formulada por el historiador marxista inglés. El análisis se basa en una revisión bibliográfica y estudios de las obras de los autores.
The article aims to raise questions for reflection on the concept of experience, which is recurrent in the debate on the schooling process in Youth and Adult Education (EJA). It presents the biographies of John Dewey and Edward Palmer Thompson and then distinguishes the concept of experience as used by both in their works: in the former, the liberal perspective of the American philosopher is highlighted; in the latter, a historical-materialist conception formulated by the English Marxist historian. The analysis is based on a literature review and studies on the authors' works.
1Artigo recebido em 25/11/2024. Primeira Avaliação em 12/02/2025. Segunda Avaliação em 20/01/2025. Terceira Avaliação em 11/06/2025. Aprovado em 21/07/2025. Publicado em 06/08/2025. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i51.64958.
2Professora da área da educação no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA) - Brasil. Doutora em Educação na Universidade Estadual Paulista (UNESP), São Paulo - Brasil. Email: liciadahora@ifma.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2944471753558299.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6332-9677.
3Professora da área da educação no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão. Doutora em Educação (UFF). Email: michelleteixeira@ifma.edu.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2796487973001588. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8934-092X.
O conceito de experiência aparece com sentido polissêmico no debate do processo de escolarização da Educação de Jovens e Adultos (EJA), com frequência seu sentido é associado a valor individual, subjetivista, como elemento cultural, experiência profissional, validação de saberes tácitos, competências profissionais da experiência, validação do saber acumulado pela experiência de vida, ou ao aprendizado pela experiência.
Neste debate teórico, o presente artigo propõe o levantamento de reflexões em torno do conceito de experiência nos pensamentos de Jonh Dewey e de Edward Palmer Thompson, apontadas como relevantes para o aprofundamento do debate sobre a Educação de Jovens e Adultos no Brasil.
Trata-se de uma aproximação com o campo teórico, cuja argumentação parte do pressuposto de que a experiência, reconhecida como valor formativo humano para a classe trabalhadora, deve estar relacionada à categoria trabalho e inserida na história, em seus movimentos e suas contradições, longe de ser compreendida como uma questão puramente cognoscente que se reduz a uma experiência unicamente sensível (Moraes; Müller, 2003).
Partindo deste entendimento, o texto busca situar as diferenças entre a concepção dos saberes da experiência na visão liberal do filósofo estadunidense John Dewey e a concepção materialista histórica apresentada pelo historiador inglês marxista Edward Palmer Thompson, compreendida na relação experiência-história- trabalho – sem o intento de rejeitar as contribuições de ambos os autores, mas de trazer à tona questões fundamentais dos seus pensamentos para o aprofundamento de nossas reflexões.
Para a organização argumentativa das análises propostas, apresentamos inicialmente os pressupostos do referencial teórico que orienta o desenvolvimento das análises. Em seguida, recuperamos os elementos da vida e obra de Dewey, para em seguida analisar a concepção de experiência em sua teoria. Na segunda parte do texto, refletimos sobre a constituição do pensamento marxista de Thompson e, na sequência, analisamos a sua concepção de experiência relacionada à EJA; para que, enfim, sejam apresentadas as considerações gerais, alcançadas a partir deste estudo.
Há uma vasta literatura no campo da educação, nos estudos do cotidiano, da arte e da cultura que incide em temas sobre a EJA e realizam a discussão sobre a experiência, a partir do viés da micro história, do subjetivismo.
Seguindo um caminho radicalmente oposto, este artigo fundamenta-se na concordância com a argumentação de Thompson (1981), quando este autor – que se debruçou profundamente sobre a análise da experiência na formação da classe trabalhadora – ressalta que os processos sociais não podem prescindir do estudo da experiência humana.
Partindo deste entendimento, defende-se que os estudos sobre os percursos teórico-metodológicos da EJA não deveriam prescindir a experiência humana como uma experiência de classe em si e para si. Ao contrário, é fundamental considerar o movimento histórico de formação das sociedades, as contradições que permeiam este movimento e suas influências diretas na formação do sujeito social.
A categoria experiência em Thompson nos possibilita, portanto, enxergar a realidade concreta, no conjunto de suas determinações materiais e culturais, contribuindo para uma compreensão ampliada de questões como o currículo escolar e a organização do trabalho pedagógico dimensionado aos jovens e adultos da classe trabalhadora.
No que se refere à categoria da experiência, sob o ponto de análise de John Dewey, reforça-se o histórico e amplo debate sobre o seu posicionamento fundamentado na defesa da democracia e do liberalismo. Esses, estabelecidos em suas próprias produções, como pilares que dão estrutura à organização do pensamento pedagógico de sua teoria; determinando, portanto, a relação do pensamento teórico deste autor com o compromisso da manutenção do projeto liberal de sociedade e educação.
Como proposta teórico-metodológica diretamente relacionada à análise do conceito de experiência na teoria dos dois autores centrais, objetiva-se com este artigo ampliar os debates sobre o entendimento desta categoria teórica fundamental para as reflexões sobre o trabalho pedagógico em EJA, de maneira que as análises desenvolvidas neste texto alcancem os processos de formação docente – daí o compromisso inicial em apresentar os autores a partir de seus dados biográficos, que
permitam a aproximação de educadores em formação desde o breve relato em torno da sua vida e obra.
Considerando-se a produção de textos acadêmicos como terreno para a abertura e o aprofundamento de debates, demarca-se que os pontos para a reflexão levantados no presente artigo não ocupam um lugar de neutralidade no campo da produção de conhecimento. Portanto, considerando a opção teórico-metodológica assumida pelas autoras no campo da educação, estabelece-se ao longo das análises o destaque à importância da categoria experiência em Thompson – à luz do materialismo histórico-dialético.
Bem como, da necessidade de disputá-la teoricamente e de diferenciá-la das concepções pragmatistas, sobretudo aquelas que avançaram sob o manto das ideias de Jonh Dewey, que usam indiscriminadamente esse termo para propor inovações no âmbito do espaço escolar, amplamente reconhecidas como único caminho para a construção do trabalho docente em EJA.
Dando início à aproximação dos leitores às análises teóricas de Dewey e Thompson sobre o sentido da experiência na formação humana, apresenta-se um sucinto resgate histórico de suas vidas e obras, para na sequência, abordar suas teorias de maneira objetiva.
A formação acadêmica de John Dewey ocorreu na Universidade de Vermont (1875-1879) e na Johns Hopkins (1882-1883), onde obteve o seu título de doutor, em 1884. A carreira profissional de John Dewey teve início em 1884, na Universidade de Michigan. Anos depois foi transferido para a Universidade de Chicago, lá permaneceu entre 1984 a 1903. Em 1905 iniciou suas atividades acadêmicas na Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque, local em que se aposentou, em 1930. Dewey foi considerado um intelectual de esquerda norte-americana, perseguido pelo Comitê de Atividades Antiamericanas, práticas autoritárias da época que ficaram conhecidas por “macarthismo”, termo vinculado ao senador republicano Joseph Raymond MacCarthy. Dewey foi criado em um ambiente familiar evangélico convencional do tipo mais liberal, como ele mesmo denominou. Em algumas de suas produções ficam registradas estas influências. Isto foi uma característica de sua geração: “patenteiam inquietações religiosas ou teológicas não apenas suas, mas de quase todos os seus
contemporâneos, ainda que se apresentem sob outras roupagens” (Marsden apud Warde, 2013, p. 176). Depois, em uma fase mais segura de sua escrita e reflexão científica, [...] “utilizou-se de um caminho curioso para não defender o cristianismo, mas sim atacar as pressuposições do materialismo” (Warde, 2013, p. 177).
Contudo, é importante acentuar, conforme Warde (2013), a influência do pensamento de Hegel na vida intelectual de Dewey, influenciado pelo contato com Willian Harris. Dewey afirma na obra From Absolutism to Experimentalism que Hegel lhe deixou um sedimento permanente em seu pensamento, mas a partir de 1890 os escritos se afastam do hegelianismo.
John Dewey criou no ano de 1896 a Escola Elementar da Universidade de Chicago (Laboratory School at University of Chicago), também conhecida como Escola-Laboratório. Este espaço foi decisivo para impulsionar a constituição do novo pensamento pragmatista nos Estados Unidos. Antes, porém, é importante observar o que destaca (Soares, 2007), foi William James, professor da Universidade de Harvard nas áreas de fisiologia, psicologia e filosofia, quem proferiu pela primeira vez a palavra pragmatismo a um campo teórico e este influenciou Dewey.
A filosofia pragmatista de Dewey posiciona-se na defesa da democracia e do liberalismo. Estes pilares dão o tom da organização do pensamento pedagógico desta teoria que inspirou muito reformas educacionais no Brasil e no mundo. Entre as obras que influenciaram o pensamento pedagógico brasileiro menciona-se “Liberalismo, liberdade e cultura”, escrito entre 1935 e 1939, dividido em dois ensaios; e “Democracia e educação: introdução à filosofia da educação”, publicada nos Estados Unidos em 1916 e, no Brasil, em 1952. Anísio Teixeira estudou entre 1927 a 1929 com Dewey na Universidade de Columbia e tornou-se o maior divulgador de seu pensamento no Brasil.
O pragmatismo anuncia-se também como portador de uma postura pluralista, versátil, embora preocupado essencialmente com o particular, com o fato isolado e alheado de seus determinantes e da riqueza de sua totalidade. Uma postura anti-teórica, que apela para o presente, para o praticismo (Soares, 2007, p. 21).
Dewey atualizou a filosofia pragmatista no contexto da Revolução Russa, em 1917. A conjuntura em que se deu sua escrita exigiu posicionar-se sobre os acontecimentos e a democracia, tema que aparece em suas obras. Entre outros
assuntos abordados está o movimento a favor do humanismo, o direito ao voto das mulheres, direitos de professores e a paz internacional.
Em 1930 Dewey aposentou-se, mas continuou em atividade intelectual, manifestando-se politicamente sobre os acontecimentos de sua época. No ano de 1937 presidiu a comissão responsável por investigar as acusações de atividades políticas subversivas de Leon Trotsky, comunista russo, sendo inocentado após a realização de inúmeras audiências. Dewey foi um aliado estratégico da esquerda nos Estados Unidos. Contudo, sua posição teórica sempre se colocou como voraz crítica ao pensamento marxista, à concepção materialista histórica de mundo, de sociedade e de homem, caracterizando o marxismo como pensamento que, ao se colocar ser científico, tornou-se anticientífico (Dewey, 1970). Mais adiante nos posicionamos neste artigo sobre as críticas de Dewey ao marxismo, realizando alguns destaques.
Dewey expôs que seu empirismo se diferencia do empirismo vulgar, uma vez que “O método experimental da ciência é a exemplificação do método empírico quando a experiência alcançou maturidade” (Dewey, 1970, p. 185). O pragmatismo é um dos pilares do empirismo, conhecimento advindo da experiência. Em 1925, Dewey reforça essa perspectiva do empirismo no livro intitulado Experiência e Natureza.
John Dewey foi um educador bastante conhecido no mundo e suas ideias ganharam significativa capilaridade em diversos projetos em disputa ao longo da história da educação brasileira. A obra que mais teve repercussão no Brasil foi Democracia e Educação publicada originalmente no ano de 1916.
A centralidade da defesa da democracia liberal, o questionamento da Escola Tradicional e a proposição de uma Escola Nova que se ajustasse aos projetos de modernização das sociedades, são elementos centrais da obra supracitada. Pensamentos que marcaram o movimento pedagógico escolanovista, brasileiro nos anos de 1930, quando o processo de industrialização avançava no país, exigindo um novo perfil de trabalhador, adequado ao projeto de “modernização administrada” (Shiroma et al, 2007, p. 16).
Para o pensador estadunidense, democracia “é mais do que uma forma do governo; é, principalmente, uma forma de vida associada, de experiência conjunta e mutuamente comunicada” (Dewey, 1959, p.93). Tal entendimento é demarcado por
pensadores brasileiros, dentre os quais Paulo Freire e as experiências de educação popular e EJA, desenvolvidas nos anos de 1960. Cuja afinidade argumentativa no âmbito do conceito de democracia pode ser reconhecida na obra Pedagogia do Oprimido, quando, ao refletir o papel dos “sujeitos dialógicos”, o educador defende que “falar, por exemplo, em democracia e silenciar o povo é uma farsa. Falar em humanismo e negar os homens é uma mentira” (Freire, 2013, p. 82).
Entretanto, embora seja possível reconhecer em Dewey e Freire o caráter progressista e a similaridade argumentativa sob a perspectiva epistemológica e pedagógica – em sua relação com a experiência cotidiana e a ancoragem na crítica ao aspecto do tradicionalismo em educação – há entre os autores diferentes perspectivas ético-políticas (Protásio, et al, 2023). Visto que:
John Dewey, apesar de ter várias de suas teses aproveitadas pelos educadores socialistas, não foi o que podemos considerar um pensador coletivista; ele foi, antes, um liberalista social. O educador brasileiro, ao contrário, é um propugnador de ideais por objetivar e subjetivar a libertação dos oprimidos e um abnegado defensor de uma utopia social sem desigualdades materiais entre os sujeitos (Protásio, et al, 2023, p. 14).
Ainda sobre a repercussão do pensamento de Dewey no Brasil, reconhece-se que a sua obra Experiência e Educação impulsionou o debate da noção de Escola Ativa e Criativa, exercendo influência determinante na educação nacional, quando do avanço do projeto neoliberal de educação nos anos de 1990. Do mesmo modo, a obra de Dewey intitulada Arte como experiência também determinou os caminhos do ensino da arte no país, influenciando profundamente na compreensão de experiência estética.
A proposta de uma Escola Nova buscava se distanciar da educação tradicional, ao pressupor a necessidade de dar “consistência qualitativa” às experiências vividas pelos estudantes. Entretanto, é relevante observar que Dewey não trata o conceito de experiência como sinônimo de educação, uma vez que há experiências que podem ser educativas e outras que são deseducativas.
Com base em tais pressupostos, Dewey definiu as reflexões que desenvolveu nas suas obras, como uma filosofia da experiência. Para elaborar suas reflexões tomou inicialmente a Escola Tradicional como fonte de suas críticas e, a partir dela, anuncia a Escola Nova, defendendo que a principal tarefa da escola é transmitir às novas gerações corpos de informação e de habilidades que se elaboraram no
passado, diretamente articuladas a um projeto de futuro que se alinhava aos ditames dos princípios e objetivos liberais.
A teoria de Dewey toma, portanto, como problematização esta relação na discussão da matéria de estudo: “o problema para a educação progressiva é o de se saber qual é o lugar e a significação de ‘matéria’ e de ‘organização’ dentro da experiência” (Dewey, 1976, p. 8).
Dewey criticou as experiências da escola tradicional, tomando-as como negativas, habitualmente más e defeituosas (ao associar o processo de aprendizagem como algo de enfadonho e tedioso), no que acentua que a educação nova se preocupa com a qualidade da experiência, selecionando aquelas que irão influir frutífera e criativamente nas experiências subsequentes, ou seja, a continuidade e interação são elementos constitutivos da experiência que educa. Buscando fugir do maniqueísmo em que o próprio pensador percebe enredar-se por algumas vezes, justifica:
As dificuldades se agravam e as críticas aumentam, quando se supõe que a nova educação é de certo modo mais fácil do que a tradicional. Esta crença é, mais ou menos, corrente. Talvez constitua nova ilustração da filosofia dos dois extremos, isto-ou, nascendo da suposição de que tudo que se exige para a educação nova seja não fazer o que se faz na escola tradicional. Admito, com alegria, que a nova educação é mais simples do que a tradicional. Está em harmonia com os princípios do crescimento, é algo natural, enquanto na organização tradicional há muito de artificial na seleção e arranjo das matérias, e toda artificialidade leva a complexidades desnecessárias. (Dewey, 1976, p.19).
4 Para entender melhor a diferença entre prática social e prática cotidiana, recomendamos consultar a obra de Agner Heller na obra HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 1992. Neste livro é explicado de forma mais extensa a constituição da vida cotidiana. Para Heller, a vida cotidiana é constituída por duas formas de objetivações do gênero humano (objetivações genéricas em-si), e as esferas não-cotidianas, por sua vez, constituem-se por meio de objetivações humanas superiores (objetivações genéricas para-si).
Mesmo que a EJA não tenha ocupado mais diretamente as reflexões de Dewey, reconhece-se que suas ideias possuem uma significativa capilaridade nos debates e na realidade empírica de construção do trabalho docente em EJA no Brasil. Trata-se de um entendimento que se alinha à ideia de liberdade, de controle e simplificação do acesso ao conhecimento, cuja materialização dirige-se à lógica subjetiva e individualista, centrada em questões relacionadas aos métodos de ensino. Uma noção que tende se distanciar da problematização das contradições históricas, sociais e políticas que atravessam a realidade da educação brasileira e que definem a EJA como uma questão social.
Nesse movimento de controle, reside o risco de – em defesa da delimitação do acesso dos sujeitos da EJA aos conhecimentos que superem as “complexidades desnecessárias” – limitar a formação da classe trabalhadora a uma “práxis utilitária imediata, de maneira que o senso comum a ela correspondente coloque o homem em condições de orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas e manejá-las, mas não proporcionam a compreensão das coisas e da realidade” (Kosik, 2011, p. 14).
Para Dewey, a educação é o processo de reconstrução e reorganização da experiência, no qual identificamos mais agudamente o sentido, e com isso nos habilitamos a melhor dirigir o curso de nossas experiências futuras. Neste sentido, destacamos os princípios mais importantes para a formulação da teoria da experiência para este pensador: a) categoria de continuidade – diz respeito à discriminação entre experiências de valor educativas e experiências sem tal valor. O princípio da continuidade consiste no prosseguimento da construção de um conhecimento, na relação da experiência que se estrutura no passado e impulsiona o futuro; b) categoria da interação - diz respeito às condições objetivas e condições internas. O princípio da
5 Como desvelam os estudos de Pinto (1982); Rummert (2000); Hora (2013; 1014); Ventura e Rummert
(2015); Bomfim e Rummert (2017), Teixeira e Rummert (2019), Teixeira (2021), dentre outros desenvolvidos sobre a EJA no Brasil.
interação ocorre na relação das características subjetivas do indivíduo e os condicionantes de seu ambiente.
Dewey é um crítico da educação livresca e enciclopédica, aquela baseada em um conjunto de conteúdos que se distanciam da vida atual dos estudantes. A educação deve estar intimamente vinculada à formação dos indivíduos, às necessidades da atividade social, pois entende que “a educação é para vida social aquilo que a nutrição e a reprodução são para a vida fisiológica” (Dewey, 1959, p. 10). Na sua visão a educação é um processo ativo e construtor, relaciona-se a prática do trabalho partilhado, como um hábito de aprender a aprender.
Alguns princípios são estruturantes para concepção pragmatista de Dewey, o primeiro refere-se a ideia da educação como experiência, ou seja, o conhecimento surge da interação entre o ser humano e seu ambiente. O segundo aspecto que elegemos citar refere-se ao princípio do “aprender fazendo” (learning by doing), em que prevalece a ideia de que o conhecimento é uma construção dinâmica por meio da experimentação de ideias e práticas aplicadas às necessidades das atividades sociais e aos problemas que estão presentes na vida cotidiana.
Esta forma de construir o conhecimento busca romper, segundo Dewey, com o racionalismo contemplativo. Ao descrever a teoria do método de conhecer na concepção pragmatista, assim a caracteriza:
Sua feição essencial é manter a continuidade do ato de conhecer com a atividade que deliberadamente modifica o ambiente. Ela afirma que o conhecimento em seu sentido estrito de alguma coisa possuída consiste em nossos recursos intelectuais – em todos os hábitos que tornam a nossa ação inteligente. Só aquilo que foi organizado em nossas disposições mentais, de modo a capacitar-nos a adequar o meio às nossas necessidades e a adaptar nossos objetivos e desejos à situação em que vivemos, é realmente conhecimento e saber (Dewey, 1959, p. 378).
Dewey reconhece que no processo de elaboração do conhecimento há uma relação entre o particular e o geral. O aprendizado se faz nos anseios de nossas experiências, o conhecimento portanto deve ser útil e adaptado aos objetivos da vida do indivíduo, resultando no que ele mesmo nomina como “o inteligente uso das coisas”. O aprendizado é um processo ativo e interligado a relação do indivíduo com o mundo.
A cada avanço no conceito de experiência, Dewey vai demarcando os limites do entendimento desta categoria e as relações implicadas. Ele parte de uma visão de
experiência humana dentro de uma concepção de sociedade liberal, defende a liberdade de inteligência; ou seja, liberdade de observação e de julgamento com respeito a propósitos intrinsecamente válidos e significativos. Uma noção de liberdade que não alcança a realidade histórica de profundas contradições sociais que se refletem inclusive na negação e/ou no controle de acesso das classes populares a uma educação que garanta o acesso a conhecimentos universalmente produzidos ou que permitam à classe trabalhadora o direito de processos de formação para além do desenvolvimento técnico de suas funções laborais.
Para Dewey, o fim ideal da educação é a formação da capacidade de domínio de si mesmo – autodomínio que equivale à liberdade. Ao discutir liberdade, limita-se a pensá-la no âmbito da escola, como um princípio em que a “a educação nova deve dar ênfase à liberdade do aluno” (Dewey, 1976, p. 10). A educação deve basear-se em experiência – que é sempre a experiência atual de vida de algum indivíduo.
Fundamentado em perspectiva política articulada a um projeto sociedade distinto ao defendido por Dewey – que fundamenta a sua concepção de experiência – o historiador Thompson elabora uma concepção de experiência que se aproxima de outra lógica fundamental: a “práxis crítica revolucionária da humanidade” (Kosik, 2011, p. 22). Inicia-se a análise desta concepção pelo levantamento de dados históricos sobre o autor.
Thompson foi um historiador inglês marxista, cuja obra influenciou de maneira determinante a historiografia após a Segunda Guerra Mundial. Sua trajetória enquanto intelectual esteve profundamente articulada à atuação política, um elemento marcante
6 Sobre a experiência brasileira de significativa representação dos fundamentos do pensador estadunidense, Saviani (2009) problematiza os limites do caráter democrático do movimento escolanovista brasileiro na seguinte reflexão: “[...] hoje nós sabemos, com certa tranquilidade, já, a quem serviu essa democracia e quem se beneficiou dela, quem vivenciou esses procedimentos democráticos no interior das escolas novas. Não foi o povo, não foram os operários, não foi o proletariado. Essas experiências ficaram restritas a pequenos grupos, e nesse sentido elas se constituíram, em geral, em privilégios para os já privilegiados, legitimando as diferenças (p. 44 – 45)”.
em sua teoria, na medida em que “não concebia intelectuais de esquerda desvinculados de movimentos sociais concretos da classe trabalhadora ou de movimentos populares de forma ampla” (Mattos, 2012.a, p. 13).
Engajado na educação de jovens e adultos, formou-se na Universidade de Cambridge no ano de 1946 e atuou no Partido Comunista Britânico até o ano de 1956. Seu debate teórico-metodológico é reconhecido por inúmeros marxistas no mundo e no Brasil. Há divergências com um determinando campo do marxismo e as críticas produzidas ao seu pensamento por discutir os conceitos de experiência e cultura, assim como há inúmeras produções que definem sua identidade como um teórico culturalista, o que refletiu numa versão “domesticada”7 na academia, criando uma espécie de versão light de Thompson, cujo rigor metodológico esvaziou-se e passou a ser associado a outras matrizes teóricas.
Ao contrário desta perspectiva, a obra de Thompson propõe a renovação e ampliação dos debates marxistas, tendo contribuído para o fortalecimento da tradição crítica ativa do materialismo histórico-dialético8. Sob este prisma, sua obra pode ser reconhecida como “uma crítica profunda a qualquer perspectiva determinista e uma teoria da história capaz de informar e formar para o enfrentamento das questões do presente, assim como para a análise do passado” (Mattos, 2012a, p. 9).
Para Thompson, “a história não conhece verbos regulares” (Thompson, 1981, p. 56). Logo, a construção do seu pensamento demarca a importância fulcral da materialidade para a teoria e da teoria para a materialidade. Neste sentido, considerando que o sistema do capital é ajustado, moldado e renovado de modo a postergar o desdobramento e a maturação de suas contradições antagônicas, a teoria de Thompson – que ousa discutir as classes sociais e as contradições que as definem historicamente, articuladas à noção de cultura e experiência – contribui com a renovação da estrutura marxiana.
7 O termo domesticação foi utilizado no artigo do Prof. Marcelo Badaró para explicar como Thompson e Gramsci foram domesticados na Universidade para obter uma melhor difusão e aceitação na formação de leitores de suas obras. Para aprofundamento desta leitura ver: (MATTOS, Marcelo Badaró. “E.P. Thompson no Brasil” in: (Outubro nº. 14. São Paulo, 2006).
8 Nesta corrente teórica marxista, há a introdução no interior do materialismo histórico-dialético, de debates conceituais em torno do problema de classe/da luta de classes, articulados à noção de cultura e experiência. Apresenta-se, então, “a recusa ao marxismo vulgar, que derivava diretamente a consciência e a ação coletiva da classe de seu lugar nas relações de produção, sem qualquer mediação, algo que Thompson procurará superar pela ênfase no conceito de experiência” (Mattos, 2012.b, p. 5).
Tais conceitos discutidos pelo pensador nos remetem à importância de desvelamento do movimento do real para a compreensão dos problemas educacionais, dentre eles os que definem a realidade da educação de jovens e adultos. Sua obra “chama atenção para o fato de a produção intelectual e artística estarem sempre atravessadas pelos conflitos do seu tempo” (Mattos, 2012a, p. 16).
Neste sentido, Thompson buscava ampliar a defesa pelo engajamento de educadores, intelectuais e artistas por meio do fortalecimento da consciência de classe. Como desvela Mattos (2012b, p.8), “seu estudo histórico tratava de explicar como a consciência de classe se constrói historicamente através de formas específicas, conforme as peculiaridades que definem a experiência de classe em cada situação localizada”.
Desse modo, importa determinar o entendimento de classe social como uma categoria central de análise da realidade, que contribui para o entendimento das desigualdades econômico-sociais na sociedade capitalista, analisada por Thompson como um fenômeno histórico, circunscrito nas relações humanas. Portanto, “não podemos entender classe a menos que a vejamos como uma formação social e cultural, surgindo de processos que só podem ser estruturados quando eles mesmos operam durante um considerável período histórico” (Thompson, 2018, p. 9). Neste sentido:
Se determos a história num determinado ponto, não há classes, mas simplesmente uma multidão de indivíduos com um amontoado de experiências. Mas, se examinarmos esses homens durante um período adequado de mudanças sociais, observaremos padrões em suas relações, suas ideias e instituições. A classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, essa é sua única definição (Thompson, 2018, p. 12).
Logo, o entendimento da lógica que circunscreve a existência de distintas classes sociais na contemporaneidade (condição que fundamenta a existência da EJA) não se situa apenas no reconhecimento da dominação instituída sob a égide do capitalismo, mas no fato das relações de classe – determinadas em grande medida pelas relações de produção – estarem “diretamente relacionadas à consciência de classe, à forma como as relações são tratadas em termos culturais” (Thompson, 2018, p. 10). Podendo, dessa maneira, assumir um caráter emancipatório, conforme nos apontam Marx e Engels no conjunto de sua obra e em conformidade com a análise de Mattos (2012, p. 60):
[...] o conceito de classe social surgiu em Marx e Engels como o centro de sua proposta para a análise das sociedades modernas. O ponto de partida dos autores era uma constatação política de que o proletariado constituía uma nova força política, que, acreditavam, teria o papel preponderante na luta pela emancipação.
Sob esta perspectiva, o pensamento de Thompson se alia ao projeto emancipatório e reflete a lógica materialista histórico-dialética que prevê a atuação direta dos movimentos sociais concretos da classe trabalhadora como condição imprescindível para a transformação da realidade. Para tanto, se faz fundamental na construção dos percursos teórico-metodológicos formativos da classe trabalhadora o compromisso com o fortalecimento da consciência de classe, por meio da valorização da experiência dos sujeitos da formação.
No campo de pesquisa Trabalho-Educação, a obra de Thompson é importante para o avanço dos estudos que buscam na produção da educação pública, reconhecida enquanto uma referência teórica de qualidade e que fundamenta a construção de práticas educativas que incluem o debate de classe e experiência, a partir das origens sociais dos sujeitos da EJA e da sua compreensão enquanto uma questão de classe “historicamente forjada e circunscrita no cerne das contradições geradas pelo processo de expropriação e exploração da classe que produz valor pelo capital” (Teixeira, 2021, p. 56).
Antes de aprofundar a análise sobre o entendimento de Thompson sobre a categoria experiência, interessa demarcar que esta é explorada sob diferentes matrizes, aparecendo como sinônimo de: prática, forma de ser, de fazer, uma maneira de viver, ensinamentos que se adquiriu com a prática e com a vida profissional. A categoria experiência, vista sob este prisma, está associada às concepções das “pedagogias do aprender a aprender” (Duarte, 2000), nas quais destacamos uma de suas posições valorativas que a reconhece enquanto “aprendizagens que os indivíduos realizam por si mesmo, nas quais está ausente a transmissão, por outros indivíduos, de conhecimentos e experiências, é tido como mais desejável” (Duarte, 2000, p.34).
Dentre as concepções fundamentais à história da educação brasileira, refecia- se, novamente, aquela defendida pelo educador Paulo Freire, quando este associou
o sentido de prática à experiência e desenvolveu sua proposta teórico-metodológica dos círculos de cultura, desenvolvendo práticas educativas dialógicas, que partem da construção do conhecimento a partir da experiência social dos sujeitos em formação. Um debate que não esteve limitado aos métodos de ensino, trazendo à tona questões de natureza histórico-crítica, apontadas como necessárias à construção das experiências educativas na EJA.
Em algumas passagens do livro Pedagogia do Oprimido, o educador faz menção à experiência existencial. Numa passagem específica desta obra, encontramos referência a Lukács, quando Freire destaca a necessidade de “ativar conscientemente o desenvolvimento ulterior da experiência” (Freire, 2013, p. 43).
É por compreendermos que o conceito de experiência está em disputa, e que não se pode prescindir dele para pensar a formação humana da EJA dentro de uma escola unitária, concepção abordada por Gramsci (2000)9, que enfatizamos sua importância. Por isto se recorrer à concepção de Thompson sobre a experiência e sua práxis histórico-crítica, para pensarmos a educação de jovens e adultos enquanto uma questão que:
[...] se situa no âmago da sociedade como expressão da negação de direitos às frações da classe trabalhadora. Para elas, estão destinadas atribuições no processo produtivo que não requerem acesso pleno ao conhecimento universalmente produzido e, muitas vezes, nem mesmo aos saberes especializados. Adequadas em matéria de mão de obra conformada aos sistemas de superexploração do trabalho. (Teixeira, 2021, p. 106).
Neste sentido, pensar a experiência no âmbito da formação de jovens e adultos no Brasil requer que se reconheça o sujeito da EJA como um frequente “alvo de políticas focais frágeis e passíveis de rápida descontinuidade” (Rummert, 2007, p. 61). Importando que se reconheça, portanto, a persistente negação de políticas públicas de educação que se vinculem às suas necessidades e valorizem suas experiências de classe, reconhecendo-os como seres concretos, situados em condições sociais que refletem suas particularidades, como analisado por Thompson (1981):
Estamos falando de homens e mulheres, em sua vida material, em suas relações determinadas, em sua experiência dessas relações, e em sua autoconsciência dessa experiência. Por ‘relações determinadas’ indicamos relações estruturadas em termos de classe, dentro de formações sociais particulares (Thompson, 1981, p. 111).
9 Esta concepção é desenvolvida e amadurecida por Gramsci nos Cadernos 12, a educação do tipo unitária objetiva por meio da atuação da escola do tipo “Unitária” a formação omnilateral, conjugando criação teórico- científica e profissional, de formação humanística integrada com trabalho manual e intelectual, produção material e ensino.
Na produção de Thompson (2002) o conhecimento de classe social torna-se impossível sem a compreensão das experiências que emergem dos confrontos de classes em função das diferenças entre as várias culturas, políticas, valores e convenções. Neste sentido, Thompson (1978) aprofunda o conceito de experiência sob dois aspectos: a experiência vivida que se remete à consciência do ser social a partir da experiência produzida na condição em que existe, na vida material (experiência I); e a experiência percebida (experiência II), a consciência social ou ideológica.
Experiência – Uma categoria que por mais por imperfeita que seja – é uma categoria indispensável ao historiador, já que compreende a resposta mental e emocional, seja de um indivíduo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repetições do mesmo tipo de acontecimento (...) [Mas] ela é válida e efetiva dentro de determinados limites(...) A experiência surge espontaneamente no ser social, mas não sem pensamento. Surge porque homens e mulheres (e não apenas filósofos) são racionais e refletem sobre o que acontece a eles e a seu mundo (Thompson, 1978, p. 199-200, Grifo no original).
Thompson identifica que, em geral, os sociólogos contemporâneos relacionam suas noções de experiência àquela apontada como experiência II, a experiência percebida. Isto é, movem-se na direção do que Marx denominou consciência social. Como consequência, afirmam que a “experiência I” é um meio imperfeito e falsificador, corrompido por interferências ideológicas. Em seu exercício crítico, Thompson aponta esta identificação como uma limitação dentro do marxismo e analisa que:
[...] as pessoas não experimentam sua própria experiência apenas como ideias, no âmbito do pensamento e de seus procedimentos, ou (como supõem alguns praticantes teóricos) como instinto proletário etc. Elas também experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidades, como valores ou (através de formas mais elaborada) na arte ou nas convicções religiosas. Essa metade da cultura (e é uma metade completa) pode ser descrita como consciência afetiva e moral) (Thompson, 1981, p. 189).
Em sua abordagem sobre experiência humana, este pensador demarca sua posição contrapondo-se ao conceito vulgar de experiência, que estabelece sua equivalência com os conceitos de empiria ou experimentação. Ao fazer isto na obra Miséria da Teoria, o estudioso reivindica a importância do uso do conceito, ao que ele denomina um “termo que falta”, “esse exatamente, o termo que Althusser e seus
seguidores desejam expulsar, sob injúrias, do clube do pensamento com o nome de empirismo” (Thompson, 1981, p. 182).
É a partir do conceito de experiência humana que Thompson avança no conceito de classe social. É nesta relação imbricada de conceitos que o autor dá contribuições importantes às pesquisas na área Trabalho-Educação com interface na abordagem sobre a EJA. Neste sentido, entende-se que compreender o processo formativo dos estudantes da educação de jovens e adultos requer situá-los não somente como experiências individuais do cotidiano, mas buscá-lo na história de suas experiências humanas as explicações que não podem ignorar suas origens e trajetórias de classe, pois:
A experiência não espera discretamente, fora de seus gabinetes, o momento em que o discurso da demonstração convocará a sua presença. A experiência entra sem bater a porta e anuncia mortes, crises de subsistência, guerra de trincheira, desemprego, inflação, genocídio. Pessoas estão famintas: seus sobreviventes têm novos modos de pensar em relação ao mercado. Pessoas são presas: na prisão pensam de modo diverso sobre as leis. Frente a essas experiências gerais, velhos sistemas conceptuais podem desmoronar e novas problemáticas podem insistir em impor sua presença (Thompson, 1981, p. 7).
Uma contribuição importante deste pensador, que pode ser tomada para o debate teórico e metodológico na organização do trabalho pedagógico escolar para Jovens e Adultos, é o entendimento de que a experiência não é algo para ser tomado apenas com ponto de partida. Ao contrário, deve-se respeitar os saberes do senso comum, mas consiste em uma “exploração aberta do mundo e de nós mesmos” (Thompson, 1981, p.189).
Thompson não fez elaborações mais densas em sua obra tomando como objeto a educação ou a escola, mas suas reflexões sobre o conceito de experiência ajudam nas reflexões e elaborações de um trabalho pedagógico assentado na história e nas relações sociais de classe que rompem com o entendimento limitado de experiência adotado por Dewey para pensar o processo de formação do indivíduo na escola.
Na obra Os Românticos, no capítulo em que discute educação e experiência, o pensador marxista apresenta reflexões voltadas para o sujeito da EJA situadas no seu tempo histórico e na realidade da Inglaterra. Entretanto, suas inferências nos ajudam
a refletir o presente, olhando o ser social e a consciência social, à luz das reflexões que seguem:
O que é diferente acerca do estudante adulto é a experiência que ele traz para a relação. A experiência modifica, às vezes de maneira sutil e às vezes mais radicalmente, todo o processo educacional; influencia os métodos de ensino, a seleção e o aperfeiçoamento dos mestres e o currículo, podendo até mesmo revelar pontos fracos ou emissões nas disciplinas acadêmicas tradicionais e levar à elaboração de novas áreas de estudo (Thompson, 2002, p. 13).
Thompson observa que a separação entre educação e experiência foi sendo admitida dentro do processo educacional como algo natural. Ele parte do pressuposto que a classe se forma a partir das relações sociais criadas pelos sujeitos, em suas experiências cotidianas – herdadas ou compartilhadas, na estrutura social e nos vestígios da vida cotidiana contemplando a classe em si e a classe para si. A experiência à qual o autor se refere é situada na história do sujeito, como uma experiência vivida da condição social de classe em que ele ocupa.
Exposto o desafio de investigar o conceito de experiência nas teorias de John Dewey e Edward Thompson, interessa tecer considerações que contribuam como o aprofundamento dos debates sobre a EJA – os fundamentos e compromissos que orientam a materialização de políticas e processos educacionais, bem como as possíveis contribuições das duas concepções para essa modalidade de ensino.
Ao discutirmos a categoria experiência sob a concepção de John Dewey e de Edward Thompson, buscamos distinguir a concepção de sociedade, prática social e os fundamentos que substanciam as concepções de formação humana entre o pragmatismo e a experiência na vida material. Tomando como ponto analítico inicial a concepção de experiência de John Dewey, identificamos os limites da sua referência para a fundamentação para a formação de jovens e adultos trabalhadores.
Reconhecemos as contribuições do pensador estadunidense no âmbito do questionamento do aspecto do tradicionalismo na educação e dos debates suscitados, importantes e necessários quanto ao papel dos sujeitos na construção da experiência educativa, ressaltando a importância da como experiência conjunta e mutuamente comunicada.
Entretanto, importa demarcar a identificação de um limite que se faz intransponível entre a defesa em torno da concepção de sociedade liberal e a viabilidade de materialização dos interesses populares no cerne das experiências educativas. Neste âmbito situamos a EJA, enquanto uma modalidade de ensino que nasce das contradições geradas pelo próprio modelo de sociedade em questão – portanto, um terreno de difícil conciliação de interesses.
Outra questão que emerge das reflexões tecidas, diz respeito ao limite da ideia adequação da experiência educativa aos preceitos do “conhecimento útil e adaptado aos objetivos da vida” que, articulado aos princípios orientadores da face renovada do liberalismo (o neoliberalismo), direciona a acepção de educação aos limites de uma “práxis utilitária imediata”, tomando as palavras de Kosik (2011). O que por sua vez nega à educação a sua condição de experiência capaz de proporcionar uma compreensão crítica e desvelada do real e das contradições que se apresentam.
Seguindo o exercício de aprofundamento da reflexão em torno do conceito de experiência, buscou-se a investigá-lo, à luz de um estudioso que articulou o seu pensamento e trabalho ao projeto diametralmente oposto ao liberalismo de Dewey. Diante da sua importância histórica no âmbito dos estudos marxistas, analisamos a categoria experiência em Thompson, buscando entender o saber na formação da classe trabalhadora como uma cultura profissional nas dimensões macro e microssociais.
É neste sentido que fundamentalmente se diferenciam as duas concepções aqui analisadas. Enquanto Dewey aborda o entendimento de experiência associado a uma noção de liberdade liberal limitada à construção de uma práxis fragmentária dos indivíduos, Thompson busca no terreno social das contradições a construção de uma práxis dialética que parta do real, o investigue e o transforme por meio de caminhos coletivos.
Thompson reconheceu em sua obra como a categoria experiência, termo que exige maior ampliação de debate no marxismo, o ajudou a elaborar o conceito de classe social, pois compreendeu este último construído no processo de desenvolvimento histórico, apreendendo as experiências de lutas de homens e mulheres. Este historiador buscou evidenciar a “história vista debaixo”, e esta perspectiva nos interessa para elaborar compreensões sobre a formação dos estudantes da EJA que estejam assentadas nas suas origens de classe.
Novamente ressaltamos a importância do debate em torno de distintas concepções de sociedade e educação, bem como o reconhecimento da produção científica enquanto um terreno no qual a neutralidade não se faz fértil. Justificando, assim, a definição de identificações conceituais que se materializam a partir das produções acadêmicas e do trabalho docente pautado na rigorosidade necessária para a construção de conhecimento, por meio do exercício reflexivo em torno das teorias existentes, de suas contradições e contribuições para a construção do real.
Enfim, com estas reflexões iniciais objetivamos abrir caminhos para o aprofundamento dos debates no âmbito de estudos, pesquisas e atividades docentes comprometidas em desvelar e compreender a insuficiência, os limites e a potência de referenciais teóricos nos processos de construção e materialização de experiências voltadas para a formação de jovens e adultos trabalhadores.
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