V.23, nº 50 - 2025 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
ESCOLAS PARTICULARES E O INGRESSO DE ALUNOS NEGROS:
UMA ANÁLISE PSICOSSOCIAL1
Giovanna Santiago Costa2
Julia Palacce Pini3
Márcio Farias4
Resumo
Este artigo analisa criticamente as experiências de racismo vivenciadas por estudantes negros em escolas
particulares da elite paulistana utilizando observação participante e intervenções escolares. Combina a sociologia
crítica das relações raciais e a psicologia sócio-histórica para discutir o "novo negro", o "movimento negro
educador" e o "fracasso escolar". Aborda ainda a relação dessas instituições com as Leis 10.639/03 e 11.645/08,
os desafios da educação antirracista, a mobilidade social da população negra e as estratégias do movimento
negro para transformar a educação brasileira.
Palavras-chave: Educação antirracista; Novo negro; Fracasso escolar; Relações raciais; Escolas particulares.
LAS ESCUELAS PRIVADAS Y LA ADMISIÓN DE ESTUDIANTES NEGROS: UN TÍTULO DE ANÁLISIS
PSICOSOCIAL
Resumen
Este artículo analiza críticamente las experiencias de racismo vividas por estudiantes negros en escuelas
privadas de élite en São Paulo utilizando observación participante e intervenciones escolares. Combina la
sociología crítica de las relaciones raciales y la psicología sociohistórica para discutir el "nuevo negro", el
"movimiento de educadores negros" y el "fracaso escolar". También aborda la relación entre esas instituciones y
las Leyes 10.639/03 y 11.645/08, los desafíos de la educación antirracista, la movilidad social de la población
negra y las estrategias del movimiento negro para transformar la educación brasileña.
Palabras clave: Educación antirracista; Nuevo negro; Fracaso escolar; Relaciones raciales; Escuelas privadas.
PRIVATE SCHOOLS AND THE ADMISSION OF BLACK STUDENTS: A PSYCHOSOCIAL ANALYSIS
Abstract
This article critically analyzes the experiences of racism experienced by black students in elite private schools in
São Paulo using participant observation and school interventions. It combines critical sociology of race relations
and socio-historical psychology to discuss the "new black", the "black education movement" and "school failure".
It also addresses the relationship of these institutions with Laws 10.639/03 and 11.645/08, the challenges of
anti-racist education, the social mobility of the black population and the strategies of the black movement to
transform Brazilian education.
Keywords: Anti-racist education; New black; School failure; Race relations; Private schools.
4Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( PUC-SP), São Paulo - Brasil.
Professor do Departamento de Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
E-mail: marcio@pucsp.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9144214632871327.
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-3942-9862.
3Aluna do 5º ano da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), São Paulo - Brasil.
E-mail: julia.palacce.pini26@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2497464284922865.
ORCID: http://orcid.org/0009-0001-6537-1027.
2Aluna do 5º ano da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), São Paulo - Brasil.
E-mail: gsantiagocosta@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3645920090501134.
ORCID: http://orcid.org/0009-0009-8913-0373.
1Artigo recebido em 11/12/2024. Primeira Avaliação em 28/03/2025. Segunda Avaliação em 21/02/2025.
Aprovado em 13/03/2025. Publicado em 09/04/2025. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i50.66539.
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Introdução
Este artigo tem como objetivo debater criticamente as situações de racismo
vivenciadas por estudantes negros em escolas particulares frequentadas pela elite
paulistana. Para tanto, parte de experiências de observação participante e
intervenção em algumas instituições escolares com esse perfil e tem como
arcabouço teórico as contribuições da sociologia crítica sobre relações raciais e da
psicologia sócio-histórica. Nesse sentido, relaciona essas experiências
contemporâneas com as categorias novo negro, movimento negro educador,
produção do fracasso escolar e análise psicossocial do racismo dentre outras.
Em síntese, busca-se nesse trabalho refletir sobre as movimentações para
uma educação antirracista em escolas particulares de São Paulo, a relação dessas
instituições com os marcos da Lei 10.639/03 e 11.645/08 que amplia o currículo
para inclusão das diretrizes curriculares das Relações Étnico-Raciais e para o
ensino de História e cultura Afro-Brasileira e Africana no caso da primeira, e da
história e cultura indígena para a segunda, e as preocupações dessas instituições
em modificar a sua cultura institucional frente a agenda antirracista.
Relações raciais em São Paulo e o novo negro
O tema das relações raciais no Brasil se apresenta enquanto um continuum
histórico de longa duração. Deste modo, ao mesmo tempo, suas formas de
manifestação conciliam dimensões estruturais e conjunturais. Por sua vez, as
formas de mitigação e enfrentamento ao racismo se caracterizam pela capacidade
que a sociedade civil organizada teve de fazer um diagnóstico do seu tempo
presente e apresentar, assim, propostas e ações. Levando em consideração um país
de características continentais e com uma diversidade territorial significativa. As
características regionais pautaram a maneira pela qual essas determinações mais
gerais se manifestaram. Nesse sentido, o caso da cidade de São Paulo é
emblemático. Experimentou um processo de urbanização acelerado a partir do final
do século XIX, impulsionado pela imigração europeia e pelo declínio da escravidão.
Autores como Florestan Fernandes (1965) analisam a forma como o legado da
escravidão influenciou a inserção da população negra na sociedade, evidenciando a
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perpetuação das desigualdades sociais e econômicas. Ainda que amplamente
criticada posteriormente pelos estudiosos das relações raciais5, alguns dos aspectos
debatidos por Florestan permanecem com validade de análise para o entendimento
da dinâmica das relações de classe e raça no Brasil. No livro Brancos e negros em
São Paulo: ensaio sociológico sobre aspectos da formação, manifestação atuais e
efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana (1955) escrito com Roger
Bastirdes na década de 1950 e depois no artigo Relações de raça no Brasil:
Realidade e Mito (1968) o autor fez uso da categoria novo negro para elucidar a
dinâmica que envolvia as pessoas negras que conseguiam ter alguma mobilidade ou
ascensão social em sociedade capitalista em que a raça era um elemento definidor,
na maior parte das vezes, da sua condição de classe que, no caso da população
negra era, via de regra, entre os setores mais pauperizados da classe trabalhadora.
O conceito novo negro surgiu no início do século XX, especialmente na
década de 1920, durante o movimento do Renascimento do Harlem6. Esse termo foi
popularizado pelo intelectual afro-americano Alain Locke em sua antologia The New
Negro: An Interpretation (1925). Na introdução do livro, Locke indica que havia um
novo momento das relações raciais nos EUA da época e que essa representava
uma nova identidade negra naquele país, marcada pela busca de autonomia, na
afirmação do orgulho racial, cultural e intelectual e no engajamento político na luta
por direitos civis.
No Brasil, o termo novo negro apareceu, em discussões sociológicas sobre a
identidade racial, mobilidade e a ascensão social da população negra, como foi o
caso de Florestan. Assim sendo, o termo foi utilizado para compreender a dinâmica
de ascensão social e racialização da classe média negra, observando como se
comportavam setores da população negra que conquistavam maior acesso à
educação e a empregos qualificados, mas que ainda assim enfrentavam em seu
cotidiano o racismo e a discriminação. Essas discriminações se apresentavam como
6 O Renascimento do Harlem foi um movimento cultural e intelectual que ocorreu durante as
décadas de 1920 e 1930, principalmente no bairro do Harlem, em Nova York. Representou uma
explosão da produção artística, literária e musical da comunidade afro-americana, marcando um
momento de grande valorização da identidade negra nos Estados Unidos.
5 Alguns dos principais estudos críticos da produção de Florestan sobre relações raciais. SLENES,
Robert W. Na senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil
Sudeste, século XIX. Campinas, Unicamp, 2011; MOURA, Clóvis. Brasil: as raízes do protesto negro.
São Paulo: Global, 1983. BENTO, Maria Aparecida Silva. “Branqueamento e branquitude no Brasil”.
In Carone, Iray; Bento, Maria. Aparecida. Silva. (Org.). Psicologia social do racismo. Petropolis:
Vozes, 2002.
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uma espécie de “emparedamento” para os indivíduos desse grupo que estavam
distantes das experiências comungadas pela maior parte da comunidade negra, em
geral, subsumidas entre os setores mais pauperizados da classe trabalhadora, mas,
por outro lado, esses mesmos indivíduos não eram plenamente integradas no
“mundo dos brancos”, como se referiu Florestan Fernandes aos espaços de
prestígio social ocupados predominantemente pela branquitude (Fernandes, 1972).
No Brasil contemporâneo, os desafios da mobilidade social de pessoas
negras permanecem. Apesar dos avanços e de conquistas no enfrentamento às
desigualdades, o racismo estrutural continua limitando o acesso da população negra
a posições de prestígio, gerando tensões sobre pertencimento e identidade.
Novo negro, movimento negro educador e o fracasso escolar
Historicamente, o novo negro sempre se viu emparedado. Tanto as pessoas
que conseguiram alguma ascensão social ou tiveram ao menos mobilidade e acesso
à espaços em que a implicação de raça e classe naturalizou como espaço social
branco, não eram reconhecidas pela sua comunidade de origem, como também não
eram reconhecidas nos novos espaços de circulação e vivência. Não é uma
característica exclusiva da particularidade histórica e social brasileira. C.L.R. James
em Jacobinos Negros descreve com bastante acuidade a composição e a correlação
de forças políticas que explicam a revolução haitiana. De um lado, a massa
escravizada, cuja posição de classe a dinâmica cultural e religiosa indicam as
condições objetivas e subjetivas para a tomada de consciência revolucionária frente
a escravidão. De outro lado, um setor de profissionais liberais e intelectuais
“emparedados” pela mácula da cor que os impedia de plena integração nos círculos
sociais correspondentes a sua posição de classe. A radicalização desse setor médio
encontra uma comunidade de origem comum, os africanos escravizados e seus
descendentes, que passam a partilhar uma experiência, mas sobretudo um
horizonte de visibilidade comum.
Dinâmica social análoga experimentada e debatida pelo movimento negritude
francês ao longo da primeira metade do século XX e que é o objeto de reflexão de
Frantz Fanon em seu livro Pele Negra, Máscara Branca (1952). Ali a classe média e
elite da ex-colônia, vai à metrópole e por é barrada pela sua condição negra.
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Fanon descreve o processo psicossocial que envolve a dinâmica entre mobilidade e
emparedamento do novo negro de matriz francófona. Essa classe média estudada
por Fanon foi forjada em escolas de elite na Martinica a partir dos cânones franceses
e ocidentais. Mimetizavam a classe média e a elite francesa, no entanto, eram
negros e foram interpelados pela discriminação racial vivenciada cotidianamente na
metrópole.
Essas experiências geoespaciais distintas ratificam a noção de que o mundo
moderno é pautado pela racialização das relações sociais, portanto, um modus
operandis do processo de produção e reprodução da vida no mundo capitalista
(Prashad, 2022).
No caso brasileiro, a experiência do emparedamento racial vivenciado pela
população negra é anterior à mobilidade e à ascensão social. Como bem
caracterizado por Silvio Almeida (2018), o racismo estrutural no Brasil se manifesta
como uma forma de organização social em que as desigualdades raciais estão
enraizadas nas instituições, práticas e costumes. Deste modo, o racismo não é
apenas um conjunto de ações de discriminações e preconceitos individuais, mas um
sistema que estrutura as relações sociais, econômicas e políticas. Engendrado no
processo histórico de formação nacional, está integrado às dinâmicas de poder,
sendo reproduzido por meio de instituições como a polícia, o sistema judiciário e a
educação.
Deste modo, quando se observa o papel da escola nessa dinâmica de
exclusão da população pobre e negra em São Paulo, como bem demonstra Maria
Helena de Souza Patto, essa foi a instituição que por excelência conformou os aptos
ao mando e os aptos à exploração e à exclusão. Se analisarmos a relação entre o
movimento negro e a educação na cidade de São Paulo, desde o período
pós-abolicionista, a população negra enfrentou barreiras no acesso à educação
formal, resultado de políticas de segregação veladas e da falta de investimentos em
escolas para a população pobre.
Para Patto (2005) essa situação está ligada à condição socioeconômica e
racial em que as crianças das escolas públicas estão inseridas, levando em conta a
sociedade brasileira dividida em classes. Entende que a raiz da concepção de
fracasso escolar no Brasil tem origem com o fim da escravidão e o advento da
república:
5
(...) É nesta época, portanto, que se encontra uma das raízes
nacionais da maneira dominante de explicar as diferenças entre as
raças e grupos e, por extensão, as diferenças de rendimento escolar
presentes entre as classes sociais: a crenças que abolido o trabalho
escravo e inaugurada a categoria social do trabalho livre numa
sociedade capitalista criam-se condições para que a distribuição
social dos indivíduos seja pautada apenas por suas aptidões naturais
(Patto, 2005, p. 78).
A maior parte da produção acadêmica no Brasil, no que diz respeito à
dificuldade de aprendizagem das crianças pobres, se foca no indivíduo que, dentre
outras coisas, não tem aptidão para aprender.” Em outras palavras, as maneiras
dominantes de pensar a educação escolar das classes populares, (...) giravam em
torno da crença, cada vez mais implícita, na inferioridade intelectual do povo, o que
certamente contribui para a ineficiência da escola” (PATTO, 2005, p.141)
Frente a este cenário, o novo negro em seus dispositivos políticos, ao fazer o
diagnóstico do enfretamento ao racismo na moderna sociedade competitiva e
aberta, elegeu a educação como uma das suas principais estratégias. Essas
estratégias foram debatidas por Lina Lino Gomes a partir da noção de movimento
negro educador. O conceito diz sobre a atuação histórica e política do movimento
negro como um agente pedagógico no Brasil. Deste modo, segundo a autora, o
movimento negro, ao lutar pela erradicação da desigualdade racial, do racismo
estrutural, a favor da identidade positiva e da cultura e história afro-brasileira, estaria
também contribuindo para o conjunto da sociedade brasileira. Isso porque, a agenda
de enfrentamento ao racismo se intersecciona com as questões sociais. O debate do
movimento negro educador, pressupõe três elementos que compõe as contribuições
deste segmento da sociedade civil para o conjunto da população: Produção de
conhecimento, práticas educativas transformadoras e impactos nas instituições, em
especial a escolar.
Do ponto de vista histórico, ao longo do século XX, especialmente a partir das
décadas de 1930 e 1940, organizações como a Frente Negra Brasileira passaram a
reivindicar melhores condições educacionais e a criar espaços próprios de ensino.
Nos anos 1970 e 1980, com o fortalecimento do movimento negro contemporâneo,
grupos como o Movimento Negro Unificado (MNU) passaram a denunciar o racismo
estrutural na educação e a exigir políticas públicas voltadas para a inclusão da
história e cultura afro-brasileira nos currículos escolares (Domingues, 2007).
6
Essas lutas resultaram em conquistas importantes, como a implementação da
Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira
nas escolas. Atualmente, o movimento negro em São Paulo segue atuando na
defesa da educação antirracista, na ampliação do acesso ao ensino superior por
meio de cotas e na luta contra a evasão escolar da juventude negra.
Nesse sentido, diante desse complexo dispositivo analítico para o
enfrentamento ao racismo, uma série de ações foram projetadas com fins de
reverter aspectos centrais da estrutura racista e a educação, na acepção ampla
proposta por Lina Lino Gomes, é lócus estratégico do movimento negro educador.
Contemporaneamente, projetos de ações afirmativas em escolas de alto
padrão na cidade de São Paulo têm ganhado destaque nos últimos anos, buscando
promover a inclusão e a diversidade no ambiente escolar. Essas iniciativas
envolvem, principalmente, programas de bolsas para alunos de baixa renda, cotas
raciais e socioeconômicas, além de políticas de acolhimento e suporte pedagógico.
Algumas escolas também investem em formações antirracistas para professores e
alunos, visando a construção de um espaço mais igualitário e consciente das
desigualdades estruturais. Portanto, projetos que envolvam a inclusão de pessoas
negras em espaços de prestígio, que visam promover a representatividade positiva e
tencionar o estatuto social do privilégio branco vem sendo implementados. Apesar
dos avanços, esses projetos ainda enfrentam desafios, como a resistência de
algumas famílias e a necessidade de maior suporte institucional para garantir a
permanência e o sucesso dos alunos beneficiados. Diante disso, na próxima seção
discutiremos aspectos do campo de análise institucional e das relações em meio a
comunidade escolares em que atuamos, seja por meio de supervisão de estágio
obrigatório para a formação em psicologia, ou pelo acompanhamento de instituições
a partir de assessorias técnicas.
Escolas particulares e o ingresso de alunos negros: uma análise psicossocial
Conectando as noções de novo negro - o sujeito negro urbano, escolarizado e
ascendente socialmente e como ele se choca com as dinâmicas de produção do
fracasso escolar em escolas particulares de alto padrão, partindo da perspectiva
do Movimento Negro Educador, tal como proposto por Lina Lino Gomes,
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passaremos a discutir como a estrutura dessas instituições, muitas vezes
racialmente homogêneas e marcadas por um currículo eurocentrado, pode dificultar
a experiência educacional de alunos negros, reforçando estereótipos, isolamento e
dificuldades na construção de identidade, tanto de alunos negros como a de alunos
brancos.
É importante salientar nosso objetivo com o presente artigo, que visa ser útil
como instrumento de registro para instituições educacionais que se propõe a pautar
as relações raciais como fator de análise. Tal posicionamento perpassa por repensar
suas práticas. A diferença entre a teoria e a prática é o que marca essas instituições,
trabalhar o antirracismo de forma interdisciplinar, com representatividade e debates
é essencial, porém tornar esse espaço seguro, exige tempo e abertura, o que pode
ser limitado para os alunos. O antirracismo, ao ser instituído como diretriz de uma
instituição, usando o conceito de Pereira (2000), sem contemplar movimentos
instituintes no processo, perdem conteúdos que podem ser de extrema importância
para a formação de conceitos para as crianças. A relação entre os conteúdos se dá
de forma dialética, o “isso” e o “aquilo”, cujo encontro gera uma tensão, Pereira
(2000) diz “[...] o instituinte transmitindo uma característica dinâmica, mutável e
mutante e o instituído portando uma característica estática, assentada”. A primeira
tem forma de transformação e questionamento, em oposição com o segundo que se
coloca como uma lei posta previamente e não aberta a mudanças. Na escola
nota-se a resistência em colocar a instituição no movimento instituinte ao falar sobre
casos de racismo com os alunos, cerceando potenciais movimentos transformadores
pela pouca abertura para cruzar o que foi instituído, não dando alternativas além da
repetição de um discurso sistematizado.
[...] renunciar à psicologia na hora de elaborar um sistema educativo
significaria renunciar a toda possibilidade de explicar e fundamentar
cientificamente o próprio processo educativo, a própria prática do
trabalho pedagógico. [...]. Significaria prescindir dos alicerces na hora
de construir a educação e prescindir de um elo de conexão entre as
múltiplas e variadas disciplinas metodológicas e pedagógicas.
Falando claramente, renunciar à psicologia significa renunciar à
pedagogia científica (VYGOTSKY, 1982/2003, p. 150).
Gostaríamos de felicitar a aplicação de programas antirracistas em escolas e
a preocupação em criar maior awareness nas crianças sobre suas identidades, a
dos colegas e os fatores sociais implicados na dinâmica interracial. Entendemos
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esta como uma atitude ousada dentro dos padrões de ensino em escolas
particulares e corajosa na atitude de propor-se a instruir e alterar o grande número
de pessoas envolvidas no funcionamento da instituição escolar. Além da extensa
preparação na mudança curricular, instrução aos pais, criação e aplicação dos
modelos de bolsa com remodelação do escopo de profissionais em atuação em toda
a instituição que aumentassem a representatividade negra no dia a dia do meio
escolar -não apenas no campo das ideias. Tais mudanças produziram frutos
notáveis no conhecimento e letramento acerca do campo racial nos alunos. Neles,
os alunos demonstraram pensamento crítico acerca das estruturas sociais e
estatais, além da curiosidade em entender debatendo sobre o tema, através da
observação foi visto como a mudança no currículo teve impacto positivo para essa
discussão no espaço escolar, onde o contexto histórico é considerado ao pensar
sobre questões sociais, principalmente práticas que se liguem ao antirracismo e o
justifique socialmente. Os espaços direcionados ao diálogo se mostraram como um
espaço potencial (WINNICOTT, 1967) para produção de conhecimento sobre o tema
proposto. Polity define este conceito como espaço para o:
surgimento de um “eu” que se relaciona com o “não-eu”, em vez de
combatê-lo, (ocorre) a derrota da onipotência como instrumento de
administração do mundo, embora não como instrumento de
aperfeiçoamento desse mundo, é o início do ser propriamente
humano, com toda a dignidade e todo o risco que isto implica.
(POLITY, 2002 – p. 23).
Esta habilidade de abdicar da onipotência a partir da relação com o outro faz
muito sentido ao ser intencionalmente praticada no ambiente escolar, por ser capaz
de criar ambiente para que as trocas interpessoais aconteçam. Por isso acreditamos
que os debates éticos propostos neste ambiente podem ser muito positivos inclusive
para afrouxar os impedimentos existentes entre os alunos sobre como interagir entre
si, aprendendo a deixar os conhecimentos raciais como segundo plano e interagir
entre si sem que o “não-eu” seja entendido como ameaça, principalmente se
tratando de crianças brancas para com crianças negras (pretas e pardas).
Os conhecimentos vastos com os quais tiveram contato, como saber nomear
a diferença de uma situação vivida entre um homem branco e um negro, exemplos
atuais de racismo, as condições sociais e direitos da população negra, demonstram
um saber que é expresso por alguns como posicionamento político de indignação. O
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antirracismo se apresenta claro nessa forma, como uma indignação que aponta para
a ação. Ainda assim, uma apreensão ao falar sobre o racismo, seja para explicar
os projetos antirracistas ou debater sobre essa violência. Tal fenômeno na dinâmica
entre os alunos, indícios dos efeitos que este cenário tem criado em suas formas
de subjetivação, expressando ansiedades relacionadas ao tema. Ao se tratar de
sujeitos ainda construindo seu letramento racial, entendemos esse processo como
indicativo de uma insegurança que, se excessiva, pode aumentar a tensão nas
relações interraciais dentro e fora do colégio, demonstrando congelamento que
dificulta o processo de repensar as estruturas cognitivas e de comportamento, o que
pode ser prejudicial para a convivência entre os alunos. Vale ressaltar que a escola é
apenas um dos ambientes sociais frequentado por essas crianças, que também
frequentam e convivem em outros espaços de socialização e, ao que tudo indica,
frente a característica do racismo à brasileira, também permeados por racismo.
Nessa circunstância, ainda acontecem muitos casos de racismo nesses
espaços, os quais são cuidados de acordo com o protocolo escolar, entretanto, essa
tensão nas relações raciais, uma vez que o projeto foi imposto (se opondo a um
problema de complexidade que permeia de forma subjetiva, estruturalmente e
institucionalmente em todos os âmbitos sociais) e não uma construção gradativa em
conjunto com os que ocupam a escola, abrindo mais a possibilidade para a
discussão de ideias e opiniões que por vezes podem aparecer sim em forma de
racismo, que se trata de uma construção que teve e continua tendo algumas
barreiras impostas. A principal delas é a impossibilidade de falar, expressa em
atitudes de barrar falas de alunos antes que eles concluam o que iriam dizer, em
nome de um discurso repetitivo e mecânico, interrompendo o processo de
elaboração que causaria ocasionalmente o erro, que faz parte do processo de
aprender e lapidar os conhecimentos na medida que compartilhados e refletidos,
fundamentando-se nas ideias de construção de um pensamento antirracista,
passando pela discussão necessária para enfim se apropriarem de um discurso
coerente, estruturado e crítico.
Apostamos, dessa forma, na possibilidade de que as crianças sejam vistas
como possíveis aliadas em seus processos de ensino. Acreditamos na abertura de
espaços de diálogo para realmente ouvi-los acerca de suas subjetividades, para
expressar, questionar e debater sobre o próprio letramento racial, ao qual são figuras
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altamente ativas. Claro que levamos em conta a dificuldade de tempo para inserção
de atividades extracurriculares, afinal muitos assuntos a serem tratados e
programas a serem cumpridos. O que buscamos propor é que o tempo disponível
seja mais bem articulado com o que os alunos têm a dizer e contribuir sobre os
temas, prezando por dar ouvidos para falas que dêem indícios daquilo que tem sido
emergente no contexto social e interpessoal que eles vivem no colégio.
[...] renunciar à psicologia na hora de elaborar um sistema educativo
significaria renunciar a toda possibilidade de explicar e fundamentar
cientificamente o próprio processo educativo, a própria prática do
trabalho pedagógico. [...]. Significaria prescindir dos alicerces na hora
de construir a educação e prescindir de um elo de conexão entre as
múltiplas e variadas disciplinas metodológicas e pedagógicas.
Falando claramente, renunciar à psicologia significa renunciar à
pedagogia científica (VYGOTSKY, 1982/2003, p. 150).
O distanciamento social, marcado pelas classes, também é um fator para que
essas escolas, acabem por reproduzir essa violência. Alunos de baixa-renda, que
frequentam esses espaços através de bolsas, com programas de inclusão por meio
da raça, apresentam uma realidade completamente diferente dos colegas pagantes,
e mesmo para colegas negros pagantes, ainda permeia o racismo contra esses,
principalmente o racismo recreativo. É importante também falar sobre o processo de
subjetivação tendo a raça como um signo ou determinante social nesses espaços,
Kaës (2009) apresenta o conceito de alianças inconscientes, geradas através do
contrato narcísico secundário, que se dá através de grupos e instituições aos quais o
sujeito pertence ou pertencerá, e Kaës (2009) continua “Ele requer também que
esse discurso, que inclui os ideais e valores, que transmite a cultura e as palavras
de certeza do conjunto social, seja retomado por sua própria conta pelo sujeito.”, ou
seja, é necessário além da identificação física, neste caso, pensar em espaços que
esses sujeitos se apropriem dessa identidade negra para entender possíveis
desdobramentos ligados ao racismo, além de subjetivar os processos ligados a sua
identidade racial.
Com o projeto de escolas particulares se prontificando a dar bolsas para
alunos negros e indígenas, é importante pensar em amparar essas crianças no
aspecto subjetivo, visto que eles também têm coisas a aprender dentro deste
processo de convivência relacional e, devido ao momento atual de tensão e ataques
racistas, podem estar se sentindo sem lugar no ambiente escolar. Por ser esta uma
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questão de cunho institucional, entendemos o amparo emocional com caráter grupal
como uma oportunidade que pode ser extremamente proveitosa por poder unir a
escuta com mecanismos de identificação entre os alunos. Broide destaca que o
trabalho grupal deve ser pensado enquanto instrumento clínico (BROIDE, P. 52) à
medida que o coordenador do grupo se permita ser suporte daquilo que os
integrantes do grupo lhe manifestarem e possa trabalhar em uma linha dialética,
com as múltiplas transferências que serão depositadas. Em leitura de Graciela
Jasiner (2007), Broide diz: “o coordenador de grupos trabalha por meio de
assinalamentos e interpretações, a elaboração dos obstáculos presentes no grupo e
que impedem a realização da tarefa a que o grupo se propõe” (BROIDE, P. 52). Este
trecho caracteriza a tarefa do coordenador de um grupo operativo, que é
multifacetada e difícil em diversos aspectos, mas que tem potencial de produzir
bem-estar tanto no âmbito individual, quanto grupal e institucional.
Considerações finais
Em outros termos, o novo negro contemporâneo na cidade de São Paulo vem
enfrentando os desafios de superar o fracasso escolar, não somente em meio ao
histórico projeto de estrangulamento do potencial das escolas públicas, mas também
em ambientes escolares com infraestrutura, projeto político pedagógico e toda uma
gama de condições que favorecem o processo de ensino e aprendizagem. No
entanto, diferente do que grande parte da bibliográfica analisou sobre o negro em
condição de acesso e ascensão em São Paulo ao longo do século XX, esse novo
negro contemporâneo são crianças e adolescentes em pleno processo de
desenvolvimento. O custo emocional do tornar-se negro exige atenção e cuidado na
implementação dessas políticas afirmativas.
Como sugestão de intervenção para a instituição, vemos como importante
criar ambiente de mais abertura dos alunos na construção contínua do projeto
antirracista. Fazer grupos operativos é entendido por nós como mais interessante
como atividade extracurricular, visando acomodar maior tempo para discussões.
Uma formação conjunta para os alunos bolsistas compartilharem suas vivências
dentro da escola seria de extrema valia para validar seus sentimentos e
perspectivas, sendo esse um investimento também nas relações interpessoais. Uma
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maior participação de pessoas de fora da escola ou trazer instituições externas para
conduzirem dinâmicas seria interessante para mostrar realidades diversas e trazer
um olhar terceiro quanto ao que se apresenta.
Referências
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