V.23, nº 51 - 2025 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
UMA ANÁLISE DAS CATEGORIAS MARXIANAS HISTÓRIA E IDEOLOGIA NA SOCIOLOGIA DA ARTE DE ARNOLD HAUSER1
Érica Zavanella Navarro2 Arthur Guilherme Monzelli3
O objetivo deste estudo é compreender como as categorias marxianas história e ideologia foram apropriadas pela sociologia da arte hauseriana. Assim, o problema de pesquisa se expressa nesta questão: a sociologia da arte de Arnold Hauser oferece contribuições para a crítica da preponderância do subjetivismo nas produções artísticas atuais? Para responder tal pergunta parte-se da hipótese de que a sociologia hauseriana permite a análise do desenvolvimento histórico das produções artísticas enquanto resultado do trabalho humano coletivo, carregando em si a objetivação da subjetividade humana.
El objetivo de este estudio es comprender cómo la sociología hauseriana se ha apropiado de las categorías marxianas de historia e ideología. Así, el problema se expresa en esta pregunta: ¿ofrece la sociología del arte de Hauser contribuciones a la crítica de la preponderancia del subjetivismo en las producciones artísticas actuales? Para responder a esta pregunta, partimos de la hipótesis de que la sociología de Hauser permite analizar el desarrollo histórico de las producciones artísticas como resultado del trabajo humano colectivo, llevando en sí la objetivación de la subjetividad humana.
The aim of this study is to understand how the Marxian categories of history and ideology have been appropriated by Hauser's sociology of art. Thus, the research problem is expressed in this question: does Arnold Hauser's sociology of art offer contributions to the critique of the preponderance of subjectivism in current artistic productions? To answer this question, we start from the hypothesis that Hauser's sociology allows us to analyze the historical development of artistic productions as the result of collective human work, carrying within it the objectification of human subjectivity.
1Artigo recebido em 19/02/2025. Primeira Avaliação em 23/05/2025. Segunda Avaliação em 27/05/2025. Aprovado em 21/07/2025. Publicado em 06/08/2025.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i51.66673
2Mestre em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), São Paulo - Brasil. Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação Escolar pela UNESP. Professora da Educação Básica do Município de Araraquara. E-mail: erica.zavanella@unesp.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8904764811400949. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3614-5685. 3Doutor em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), São Paulo - Brasil. Professor de Educação Básica II do estado de São Paulo. E-mail: arthurmonzelli.agm@gmail.com. Lattes: https://lattes.cnpq.br/4460985682530860. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9461-9338.
O presente artigo tem como objetivo analisar como as categorias história e ideologia, desenvolvidas por Karl Marx e Friedrich Engels n’A ideologia alemã (2007), são concebidas na sociologia da arte do filósofo húngaro Arnold Hauser, a partir da análise das obras A arte e a sociedade (1984) e Teorias da arte (1978). Ademais, busca-se também investigar se tais categorias podem se tornar princípios metodológicos para um estudo tanto objetivo quanto subjetivo das produções artísticas humanas. Dessa forma, o problema de pesquisa deste artigo se expressa na seguinte pergunta: a sociologia da arte hauseriana contribui para a crítica da preponderância do subjetivismo nas produções artísticas contemporâneas? Nesse sentido, partiu-se da hipótese de que a história social da arte proposta por Hauser, pautada em alguns princípios do materialismo histórico-dialético, analisa as obras de arte como produtos do trabalho humano e, portanto, carregam em si a objetivação da subjetividade humana, ao mesmo tempo que estão determinadas pelas condições materiais que fundamentam essa objetivação.
Posto isso, o presente estudo trata-se de uma pesquisa teórico-conceitual que se desenvolve a partir de revisão bibliográfica proveniente de duas teses de doutorado, uma delas em andamento, e a outra já concluída, ambas, por sua vez, se fundamentam teórica e metodologicamente no materialismo histórico-dialético. Uma dessas pesquisas investiga o papel da história social da arte na formação dos professores histórico-críticos e a outra pesquisa investiga histórica e criticamente a proletarização docente nas escolas da rede pública de ensino estadual de São Paulo.
Em razão disso, se conclui parcialmente que as categorias história e ideologia são assumidas como princípios teórico-metodológicos pela sociologia da arte hauseriana para a investigação tanto objetiva quanto subjetiva da atividade artística humana, bem como sua variação no tempo.
Para cumprir com o objetivo de pesquisa apresentado, a exposição do texto se organiza em três seções: a primeira delas analisa a categoria história como um princípio determinante na análise sociológica marxista da arte. A segunda seção, por sua vez, busca apresentar uma discussão sobre a categoria ideologia e a sua relevância para a compreensão da produção artística na história social da arte. E, por fim, a última sessão discorre sobre a importância da história social da arte hauseriana como expressão de uma sociologia da arte marxista.
Como já foi mencionado, as contribuições da sociologia da arte de Arnold Hauser se ancoram em alguns princípios do pensamento marxiano e engelsiano, o que implica uma análise tanto subjetiva quanto objetiva das produções artísticas humanas. Levando isso em consideração, é preciso ressaltar que, para Marx e Engels (2007, p. 40),
a história nada mais é do que o suceder-se de gerações distintas, em que cada uma delas explora os materiais, os capitais e as forças de produção a ela transmitidas pelas gerações anteriores; portanto, por um lado ela continua a atividade anterior sob condições totalmente alteradas e, por outro, modifica com uma atividade completamente diferente as antigas condições.
Essa concepção sobre a categoria história pode ser entendida como a forma de “desenvolver o processo real de produção a partir da produção material da vida imediata e […] conceber a forma de intercâmbio conectada a esse modo de produção e por ele engendrada” (Marx; Engels, 2007, p. 40). Entretanto, tal categoria, segundo Marx e Engels (2007, p. 62), é dinâmica e a força de seu movimento é estabelecida pela contradição social, uma vez que “todas as colisões na história têm sua origem na contradição entre as forças produtivas e a forma de intercâmbio”.
Aliás, quando Marx e Engels (2007) afirmam que a história é mobilizada pela relação das forças produtivas com as formas de intercâmbio, em outras palavras, eles estão dizendo que é a relação entre a atividade de transformação da natureza pelos indivíduos e as formas de troca e/ou distribuição socialmente desenvolvidas a partir dessa atividade é quem dita a dinâmica histórica. Ademais, “a forma fundamental dessa atividade [humana de transformação da natureza] é, naturalmente, material, e dela dependem todas as outras formas de atividade, como a espiritual, a política, [a artística], a religiosa etc.” (Marx; Engels, 2007, p. 68).
Além disso, “as condições sob as quais os indivíduos intercambiam uns com os outros, enquanto não surge a contradição, são condições inerentes à sua individualidade e não algo externo a eles […] são, portanto, as condições de sua autoatividade e produzidas por essa autoatividade” (Marx; Engels, 2007, p. 68).
No entanto, durante o percurso da história é possível e provável que as relações de intercâmbio encontram entraves para se reproduzir dentro do atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas. Assim, em lugar de uma forma “anterior de
intercâmbio, que se tornou um entrave, é colocada uma nova forma, que corresponde às forças produtivas mais desenvolvidas e, com isso, ao avanço do modo de autoatividade dos indivíduos; uma forma que, à son tour4, torna-se novamente um entrave e é, então, substituída por outra” (Marx; Engels, 2007, p. 68).
Entretanto,
no desenvolvimento das forças produtivas [geralmente] advém uma fase em que surgem forças produtivas e meios de intercâmbio que […] causam somente malefícios e não são mais forças de produção, mas forças de destruição […] e ligada a isso surge uma classe que tem de suportar todos os fardos da sociedade sem desfrutar de suas vantagens e que, expulsa da sociedade, é forçada à mais decidida oposição a todas as outras classes; uma classe que configura a maioria dos membros da sociedade e da qual emana a consciência da necessidade de uma revolução radical (Marx; Engels, 2007, p. 41).
Enfim, neste estudo se defende que essa é a concepção histórica que fundamenta metodologicamente a sociologia da arte hauseriana. Portanto, isso quer dizer que o artista, segundo a história social da arte, elabora suas obras, mas não apenas segundo os ditames de sua subjetividade, para além disso, ele responde às determinações históricas concretas de sua época, ao mesmo tempo que pode interferir de forma relativa sobre elas. A título de exemplo, um(a) artista plástico(a) só pode expressar sua subjetividade em tons de azul, a partir do momento que as forças produtivas, e as técnicas de extração e fabricação de pigmentos, permitiram a sintetização da cor azul.
4 Expressão francesa que significa “por sua vez”.
5 Segundo Monzelli (2025), a categoria proletariado, concebida em seu sentido ampliado, tal como foi defendido por Ricardo Antunes, se expressa enquanto a classe-que-vive-do-trabalho. Essa categoria engloba tanto trabalhadores(as) produtivos(as) quanto improdutivos(as). Ademais, como ressalta Antunes (2009, p. 103-104), fazem parte da classe-que-vive-do-trabalho os “assalariados do setor de serviços […] o proletariado rural […] o proletariado precarizado, o subproletariado moderno, part time, o novo proletariado dos McDonald’s, […] os trabalhadores terceirizados e precarizados das empresas liofilizadas […] os trabalhadores assalariados da chamada ‘economia informal’ […] além dos trabalhadores desempregados”, entre outros. Em síntese, a noção ampliada de proletariado pode ser entendida como todas as pessoas que precisam vender sua força de trabalho para sobreviver, inclusive, os professores do ensino público. Mais informações consultar as obras do sociólogo brasileiro Ricardo Antunes (2009; 2020).
Ademais, era necessário um grande dispêndio financeiro dos(as) artistas para adquirir o pigmento azul, que era muito raro e difícil de ser sintetizado.
Originalmente, esta cor era feita pela trituração de uma pedra semipreciosa, o lápis-lazúli, e purificada por um processo complexo e difícil, removendo-se assim toda a pedra cinza com a qual era associada. […] Seu uso na Europa como pigmento teve seu início no século XII; sempre foi um dos materiais de pintura mais caros e preciosos […] foi substituído pelo azul ultramar artificial (Mayer, 2015, p. 54-55).
Nesse sentido, nas próprias palavras de Hauser (1984, p. 24),
tal como nenhuma consciência, em si, é pensável, mas apenas uma consciência de algo, de um ser, também não se pode imaginar uma espontaneidade artística livremente esvoaçando, que se movimente a si própria e se inflame a si própria, mas apenas uma que está delimitada, condicionada e influenciada por uma realidade material e exterior.
Em suma, as determinações históricas e materiais que fundamentam a atividade artística, o que implica também não estarem imunes às influências ideológicas que se desenvolvem em cada um dos períodos da história. A seguir, busca-se adentrar mais atentamente na análise da relação entre arte e a categoria ideologia.
Como já foi discutido, a produção artística não paira no ar, em vez disso ela está ancorada na relação entre as forças produtivas e as formas de intercâmbio histórico concretas estabelecidas pelos indivíduos. Para Hauser (1984, p. 27), “a obra de arte não é nenhuma forma meramente óptica ou organizada acusticamente, mas [ela é] simultaneamente a expressão de uma visão de mundo condicionada socialmente”. Assim, “pode-se dizer que qualquer imagem, independentemente da sua ‘qualidade’, é uma obra ‘ideológica’” (Hadjinicolaou, 2024, p. 44).
Além disso, as ideias dominantes em uma dada época da história, as quais coincidem com os interesses das classes dominantes dessa mesma época, determinam o conteúdo e a forma das obras de arte, pois “a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante” (Marx; Engels, 2007, p. 47). Nesse sentido, vale a pena retomar a categoria ideologia
no pensamento marxiano e engelsiano a fim de compreender mais minuciosamente a sua relação com a arte.
Antes de qualquer coisa, é preciso entender que “as ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como idéias, portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação” (Marx; Engels, 2007, p. 47). Por exemplo, em uma sociedade estamental medieval, a noção de desigualdade natural e sua reprodução em discursos proferidos em cerimônias religiosas, nas iluminuras6 dos livros e pergaminhos ou em afrescos7 nas paredes das igrejas e monumentos públicos são expressões ideológicas dos interesses, ideias e valores das classes dominantes que são reproduzidos concretamente através de produtos culturais e artísticos.
No entanto, nunca é em vão reforçar a compreensão de que por mais imaterial que seja a forma de expressão da ideologia em uma época, ela sempre está fundamentada em relações materiais de produção e intercâmbio. Mantendo o exemplo supracitado, só era possível reproduzir nas obras de arte medievais e nas cerimônias religiosas as ideias de que as pessoas nasciam em estamentos desiguais, porque, antes de mais nada, havia, por um lado, ou melhor, do lado dominante, nobres e membros eclesiásticos dotados de grandes propriedades de terras e, por outro lado, isto é, no lado dominado, refugiados que sobreviveram ao declínio da Antiguidade e estavam desesperados o suficiente a ponto de aceitar se sujeitar à servidão nas terras desses nobres e sacerdotes para sobreviver.
Posto isso, a primeira das três características imanentes da categoria ideologia em Marx e Engels, é a tendência de universalizar como se fosse um interesse, valor
6 Segundo o Dicionário Oxford de Arte (1996, p. 267), “iluminuras, manuscritos com. Livros escritos a mão e decorados com pinturas e ornamentos de diferentes tipos. A palavra ‘iluminura’ vem do uso do verbo latino illuminare em conexão com o estilo oratório ou narrativo, onde tem significado de ‘adornar’. […] Embora manuscritos maravilhosos fossem produzidos no século XV, a iluminura já então tendia a seguir as convenções próprias da pintura, e com a invenção da imprensa os livros com iluminuras gradualmente saíram de moda”.
7 Segundo o Dicionário Oxford de Arte (1996, p. 6), “Afresco (it., fresco = ‘fresco’). Método de pintura mural que consiste na aplicação de pigmentos puros, misturados somente com água, sobre uma base de gesso ou nata de cal úmida. […] A técnica em si é extremamente antiga. As pinturas murais da civilização minóica e da Grécia eram provavelmente feitas em afresco; as de Pompéia o eram com certeza, e o escritor romano Vitrúvio descreve um método muito semelhante ao empregado durante a Renascença européia. O afresco é também encontrado em países não-europeus, como, por exemplo, na China e na Índia. […] O procedimento tornou-se menos comum no século XVIII […] O método foi retomado no século XIX […] No século XX, os maiores expoentes da pintura em afresco foram os muralistas mexicanos”.
ou moral de todos os indivíduos, as ideias específicas da classe dominante. É por ação da ideologia que, por exemplo, “durante o tempo em que a aristocracia dominou[,] dominaram [também] os conceitos de honra, fidelidade, etc., enquanto durante o domínio da burguesia dominaram os conceitos de liberdade, igualdade, etc.” (Marx; Engels, 2007, p. 48).
Contraditoriamente, no entanto, a universalização de uma particularidade, não é apenas um elemento constitutivo da ideologia enquanto expressão das ideias dominantes. Na realidade, sempre que uma classe social dominada enfrenta as relações dominantes em sua época é necessário que seus interesses e sua luta sejam interpretados como representantes dos anseios de toda a sociedade, do contrário não consegue respaldo social e consistência suficientes para se contrapor às forças dominantes. Toda classe revolucionária, segundo Marx e Engels (2007, p. 48-49), “é obrigada a dar às suas ideias a forma da universalidade, a apresentá-las como as únicas racionais, universalmente válidas". A classe revolucionária, por já se defrontar desde o início como uma classe, surge não como classe, mas sim como representante de toda a sociedade […] diante da única classe dominante”.
Nesse sentido, quando os fundadores do materialismo histórico-dialético elaboraram a categoria ideologia eles não analisaram apenas o conjunto das ideias da classe dominante, que visava salvaguardar sua dominação, mas também se preocuparam com as ideias da classe revolucionária, que insurgiu contestando a perpetuação das classes que existiam no poder. Esse movimento também se faz presente na concepção e produção das obras de arte ao longo da história, pois existem tanto artistas que dão vazão a tendência de universalizar as ideias da classe dominante, quanto àqueles que procuram expressar princípios revolucionários como ideias universais em contestação com a mesquinhez das ideias dominantes de sua época. Sobre esse último aspecto da arte, Hauser (1978, p. 15) afirma que,
por vezes, só em alturas de relativa segurança ou de alienação social dos artistas, ela [a arte] se afasta do mundo e pretende ser indiferente a fins práticos, declarando existir por si e por amor do Belo. Mas mesmo neste caso, desempenha uma importante função social munindo os homens de um meio de expressão do seu poder e da sua “conspícua ociosidade”. Na verdade, consegue muito mais do que isso, promovendo os interesses de uma certa camada social pela simples representação pictórica e o reconhecimento implícito dos seus padrões de valores morais e estéticos.
Um exemplo clássico do caráter ideológico da arte pode ser observado na literatura. Algumas obras literárias reproduzem aspectos da ideologia dominante da época em que foram produzidas, este é o caso do romance Robinson Crusoé (1719), de Daniel Defoe (1660-1731). Analisando especialmente o quarto capítulo dessa obra, quando Crusoé precisou sobreviver após o naufrágio em uma ilha aparentemente deserta, a personagem principal recorrentemente voltava aos destroços do navio naufragado para tentar salvar alguma coisa que lhe fosse útil. Segundo Crusoé:
E depois de muito procurar, encontrei o baú do carpinteiro […]
Em seguida, ocupei-me em obter um pouco de munição e armas. Havia duas ótimas espingardas de caça no camarote principal e duas garruchas; estas logo recolhi, com algumas bolsas de pólvora e um pequeno saco de balas de chumbo, bem como duas espadas velhas e enferrujadas. […]
Além disso, recolhi todas as roupas masculinas que pude encontrar […]
Fazia então treze dias que eu estava naquela costa, e visitara onze vezes o navio encalhado, trazendo tudo que um par de mãos pudesse transportar […] Mas preparando-me pela décima segunda vez para ir a bordo, […] descobri um baú com gavetas […] achei trinta e seis libras em dinheiro, algumas moedas europeias, algumas do Brasil, alguns dobrões de oito, um pouco de ouro e um pouco de prata.
Sorri para mim mesmo ao ver o dinheiro.
— Ó droga! — disse, em voz alta. — Para que serves? Não tens valor para mim, não, não vales sequer o trabalho de te apanhar do chão; […] não tenho para ti nenhuma utilidade; […]
No entanto, pensando melhor, apanhei o dinheiro […], embrulhando tudo num pedaço de lona […] também, encontrei três Bíblias em ótimo estado, trazidas da Inglaterra, por mim incluídas na minha bagagem (Defoe, 2021, p. 78-101).
Por que salvar dinheiro, armas de fogo e um livro religioso em uma ilha deserta? Justamente porque Defoe considerava que esses três itens eram “naturais” a qualquer forma de organização social, quando, na realidade, consistem em elementos próprios do modo de produção capitalista – representações do sistema monetário, do Estado e do cristianismo.
Em contrapartida, a literatura também pode contestar e/ou ironizar a ideologia dominante, mostrando sua decadência ou suas contradições. Isso pode ser observado em diversas passagens do romance Dom Quixote (1605), de Miguel de Cervantes (1547-1616). Analisando mais especificamente o capítulo XXXV desta obra, é possível destacar uma situação em que a ideologia medieval é exposta de forma caricatural, mostrando sua superação pela ideologia burguesa que, na época de elaboração desse romance, se mostrava revolucionária. Esse capítulo começa com Sancho
Pança desesperado em busca de ajuda, pois Dom Quixote aparentemente travava mais uma de suas batalhas imaginárias:
— Vinde depressa, senhores! Socorrei meu senhor, que está metido na mais renhida e cruenta batalha […] ele deu uma cutilada no gigante inimigo da senhora princesa Micomicona […] — Raios que me partam – disse o estalajadeiro nesse ponto – se Dom Quixote ou dom Diabo não atacou algum de meus odres de vinho tinto que estavam à cabeceira da sua cama! Deve ser o vinho derramado o que este bom homem achou que era sangue. […] — Maldito segundo e hora condenada em que entrou em minha casa esse cavaleiro andante: melhor seria nunca ter posto os olhos nele, pois me custa caro. Na primeira vez, se foi sem pagar o preço de uma noite, do jantar, da cama, da palha e cevada, para ele e para seu escudeiro, mais o pangaré e o jumento, dizendo que era cavaleiro em busca de aventuras (que má ventura Deus lhe dê em dobro e a quantos aventureiros haja no mundo), e que por isso não tinha obrigação de pagar nada, que assim estava escrito no regulamento da cavalaria andante. […] E por fim, para arrematar tudo, estropiaram meus odres e derramaram meu vinho (Cervantes Saavedra, 2012, p. 442-445).
Na exposição de Cervantes é possível compreender a sofisticação da ironia do realismo fantástico ao mostrar como a ideologia dominante na Idade Média, ancorada nas ideias de honra, cavalaria, prestígio social etc., cujas bases materiais já haviam sido arruinadas no século XV, época de elaboração da obra Dom Quixote, pelo avanço da burguesia e, por isso, não podia mais se sustentar fora da cabeça delirante da personagem principal desse romance.
Ademais, há uma segunda característica da categoria ideologia que é a inversão da dinâmica e da estrutura da realidade social na consciência dos sujeitos, pois, a ideologia não se expressa apenas universalizando as ideias particulares de uma classe, para além disso, ela precisa obliterar toda e qualquer possibilidade de os sujeitos compreenderem seu suporte material. Três passos são necessários para o desenvolvimento desse aspecto da categoria ideologia, sendo eles:
[I] deve-se separar as ideias dos dominantes – que dominam por razões empíricas, sob condições empíricas e como indivíduos materiais – desses próprios dominantes e reconhecer, com isso, a dominação das ideias […] [II] deve-se colocar uma ordem nessa dominação das ideias, demonstrar uma conexão mística entre as ideias sucessivamente dominantes, o que pode ser levada a efeito concebendo-as como “autodeterminações do conceito” […] [E, III] a fim de eliminar a aparência mística desse ‘conceito que se autodetermina’, […] [pode-se desenvolvê-lo] numa série de pessoas, que representam ‘o conceito’ na história, nos ‘pensadores’, nos ‘filósofos’, nos ideólogos, concebidos como os fabricantes da história (Marx; Engels, 2007, p. 50).
É diante desse segundo aspecto da categoria ideologia que a filosofia da história hegeliana e boa parte da historiografia burguesa atuaram, ou seja, como se os filósofos e suas teorias pudessem produzir a realidade, em vez de serem por ela determinados.
Por fim, o terceiro elemento constitutivo da categoria ideologia se desenvolve do segundo e pode ser entendido como um processo de distorção da dinâmica histórica. Dito de outra maneira, a ideologia, depois de universalizar um interesse, valor, ou pensamento de uma classe e após tentar ocultar suas bases materiais, procura defender que há uma finalidade predeterminada e evolutiva do movimento da história. Portanto, em vez de explicar o presente a partir dos movimentos históricos desenvolvidos no passado, a ideologia inverte o processo, explicando a transição do passado para o presente como se fosse a realização necessária de uma finalidade definida a priori no próprio processo histórico.
Ancorado nos pressupostos e escritos marxianos e engelsianos, pode-se afirmar que a relação entre história, arte e ideologia é, sem dúvida, um tanto quanto delicada e complexa, assim, é possível afirmar que a sociologia da arte hauseriana8 traz contribuições para uma análise histórica e material das produções artísticas no desenvolvimento da humanidade.
Nesse sentido, faz-se necessário destacar os avanços e limitações da sociologia da arte no processo de compreensão do modo como a ideologia se manifesta historicamente na arte. Para tanto, utiliza-se neste artigo duas das principais obras do filósofo húngaro Arnold Hauser, a saber as obras: Teorias da arte, originalmente publicada em 1958, e Arte e sociedade, publicada pela primeira vez em 1973.
De início é preciso pontuar que a sociologia da arte hauseriana não tem como intenção se colocar como um único e definitivo método de investigação que seja aplicável como solução a todas as questões e problemas da produção artística ao longo da história humana. A esse respeito, entende-se que “a sociologia não possui nenhuma pedra filosofal, não opera milagres nem resolve todos os problemas”
8 Entende-se que Hauser desenvolve uma análise sociológica da arte fundamentada teórica e metodologicamente no materialismo histórico-dialético de Karl Marx e Friedrich Engels.
(Hauser, 1978, p. 27), mas amplia as possibilidades de se identificar as relações essenciais e as contradições existentes entre a realidade concreta e a produção artística ao longo da história da humanidade.
Tanto a sociologia marxista9 como a história social da arte, permitem aos(às) pesquisadores(as) interpretarem as produções artísticas como resultados de totalidades históricas determinadas, permeadas por contradições sociais. Levando em consideração a relação íntima e complexa existente entre arte e sociologia, para a história social da arte o essencial reside na compreensão de que a arte é produto do movimento da história humana, afirmação esta que se afasta da leitura e compreensão que os sociólogos e estetas, tanto idealistas quanto românticos, fazem acerca do processo de produção artística.
Como afirma Hauser (1978, p. 280), “a história não é como o ‘tornar-se’ Hegeliano; não é para ser comparada a uma espécie de rio arrastando os acontecimentos e os seus resíduos, tudo na mesma velocidade e na mesma direção”. De um ponto de vista idealista, muitas vezes inspirado em epígonos do pensamento hegeliano, as produções artísticas são concebidas como resultado direto da imanência do espírito, como uma mera expressão e/ou efusão da alma do sujeito singular. Essa concepção idealista/subjetivista, nega, por sua vez, que a obra de arte esteja condicionada pela realidade material e social em que ela é produzida.
Indo ao encontro da crítica hauseriana ao subjetivismo preponderante na concepção idealista de arte, Hadjinicolaou (2024, p. 45) aponta que “ninguém pode negar que a história da arte como disciplina ‘científica’ foi dominada; desde as suas origens, pela ideologia burguesa”. Ademais, também afirma que uma das três principais características ideológicas da disciplina história da arte se manifesta justamente na compreensão das obras de arte como resultado de supostos gênios- criadores, os quais representam homogeneamente uma época e parecem estar imunes de toda e qualquer determinação social ou histórica (Hadjinicolaou, 2024).
Contrapondo-se a tal concepção subjetivista de arte entende-se que uma sociologia da arte marxista não tem como pretensão elaborar um esquema teórico dedutivo sobre a história da arte a partir de uma ideia superior, nem mesmo de aglutinar todos os movimentos e períodos artísticos passados e futuros em um
9 Entende-se por sociologia marxista toda investigação sociológica fundamentada teórica e metodologicamente no materialismo histórico-dialético de Karl Marx e Friedrich Engels.
esquema universal e unitário, ignorando as contradições do movimento da história humana. Reiterando tal afirmação, escreve Hauser:
o método sociológico é tão indispensável na história da arte como na história de outras criações espirituais da humanidade. […] em história, tudo é realização de indivíduos; os indivíduos encontram-se sempre numa determinada posição definida no tempo e no espaço. […] Isto é, de fato, o núcleo da concepção dialética dos acontecimentos históricos (Hauser, 1978, p. 8).
A história social da arte, portanto, encontra raízes no próprio pensamento de Marx e Engels (2007, p. 94), para os quais
não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência. […] Esse modo de considerar as coisas não é isento de pressupostos. […] Seus pressupostos são os homens, não em quaisquer isolamento ou fixação fantásticos, mas em seu processo de desenvolvimento real, empiricamente observável, sob determinadas condições.
Posto isso, Hauser aponta as contribuições e o potencial que uma sociologia marxista tem de aprofundar os estudos sobre as determinações sociais e históricas do pensamento e da produção artística de um ou mais indivíduos. Nesse sentido, surgiram diversas críticas à história social da arte, acusando-a de ser uma espécie de sociologismo, ou seja, que produziria uma análise demasiadamente objetivista das obras de arte e de seus artífices. Entretanto, o esforço da análise dos fundamentos históricos concretos das obras de arte, levado a cabo por Hauser à luz das categorias marxianas-engelsianas história e ideologia, não inviabiliza a influência da subjetividade dos artistas durante o processo de trabalho artístico. Nas próprias palavras de Hauser (1978, p. 29), “o indivíduo nos seus motivos e finalidades permanece inconsciente de que está a racionalizar, a maior parte dos membros de um grupo social permanece também inconsciente do fato de que o seu pensamento está condicionado pelas condições materiais”.
Por isso, tais críticas geralmente se “recusam a admitir a [importância da] sociologia [e] exageram as suas deficiências para não terem que se tornar conscientes dos seus preconceitos ideológicos” (Hauser, 1978, p. 27).
Enfim, a história social da arte, de Arnold Hauser, enxerga na sociologia de base marxista um caminho para analisar as produções artísticas, escapando a todo subjetivismo e objetivismo, isto é, que seja capaz de abarcar dialeticamente tanto a dimensão subjetiva quanto objetiva das produções artísticas ao longo da história. A história social da arte afasta-se, portanto, de toda e qualquer noção de “arte pela arte”, ou arte enquanto produção de um gênio artístico desprovido de determinações sociais.
Empreender uma investigação sociológica das produções artísticas, a partir das contribuições da história da arte hauseriana, evita que sejam reproduzidas aberrações pós-modernas como ocorreu recentemente, por exemplo, na exposição invertida da obra New York City I, produzida pelo pintor modernista holandês Piet Mondrian, que foi exposta de ponta cabeça por cerca de setenta e cinco anos (Aventuras da história, 2022). A preponderância do modismo pós-moderno na análise da arte, que considera tão somente sua dimensão subjetiva, culminaram na exposição invertida do quadro de Mondrian supracitado. Em razão do estudo historiográfico de Susanne Meyer-Büser, historiadora alemã que recuperou fotos de Mondrian elaborando o quadro New York City I, permitiu a ela concluir que o quadro exposto no Museu de Arte Moderna (MoMA) estava, de fato, de ponta cabeça. Além disso, por ter sido exposta de forma equivocada por muitos anos, a tentativa de colocar a obra na posição concebida originalmente por seu artista, acarretaria a sua deterioração definitiva.
Nesse sentido, a partir da história social da arte, de Hauser, que analisa as produções artísticas em suas dimensões objetiva e subjetiva, é possível compreender que mesmo na moderna arte abstrata, cuja principal proposta é transitar da representação artística figurativa para uma representação abstrata e subjetiva da realidade, ainda assim, há determinações objetivas, como, por exemplo, a posição em que o pintor produziu a sua obra originalmente.
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