V.23, nº 51 - 2025 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X


O TEATRO DO OPRIMIDO DE BOAL E O “TEATRO DIALÉTICO” DE BRECHT1


Artur Bispo dos Santos Neto2 José Jânio Câmelo Canel3


Resumo

O presente texto tem como propósito perscrutar a relação de interseção existente entre a produção de Augusto Boal e de Bertolt Brecht. Elucidando, primeiramente, a peculiaridade do Sistema Trágico Coercitivo aristotélico. Segundo, buscar-se-á entender, pela mediação das assertivas expressas no Teatro do Oprimido, como Boal representa a continuidade da crítica desenvolvida por Bertolt Brecht ao conceito de catarse. Para abordar as referidas categorias, recorrer-se-á às obras dos referidos dramaturgos e de intérpretes como Jameson (2007), Lunn (1986), Miranda (2011), Zanetti (2015).

Palavra-chave: Catarse; Efeito de distanciamento; Teatro Trágico Coercitivo.

EL TEATRO DEL OPRIMIDO DE BOAL E EL “TEATRO DIALÉTICO” DE BRECHT

Resumen

El presente texto tiene como propósito indagar la relación de intersección existente entre la producción de Augusto Boal y Bertolt Brecht. En primer lugar, se elucidará la particularidad del Sistema Trágico Coercitivo aristotélico. En segundo lugar, se buscará comprender, a través de las afirmaciones expresadas en el Teatro del Oprimido, cómo Boal representa la continuidad de la crítica desarrollada por Bertolt Brecht al concepto de catarsis. Para abordar dichas categorías, se recurrirá a las obras de los dramaturgos mencionados y de intérpretes como Jameson (2007), Lunn (1986), Miranda (2011) y Zanetti (2015).

Palabra clave: Catarsis; Efecto de distanciamiento; Teatro Trágico Coercitivo.

BOAL'S THEATER OF THE OPPRESSED AND BRECHT'S "DIALECTICAL THEATER"

Abstract

The present text aims to examine the intersection between the works of Augusto Boal and Bertolt Brecht. First, it elucidates the peculiarities of the Aristotelian Coercive Tragic System. Second, it seeks to understand, through the assertions expressed in the Theatre of the Oppressed, how Boal represents the continuation of Brecht’s critique of the concept of catharsis. To address these categories, the study will draw on the works of the aforementioned playwrights and interpreters such as Jameson (2007), Lunn (1986), Miranda (2011), and Zanetti (2015).

Keyword: Catharsis; Distancing Effect; Coercive Tragic Theatre.


1Artigo recebido em 08/03/2025. Primeira Avaliação em 15/05/2025. Segunda Avaliação em 19/05/2025. Aprovado em 21/07/2025. Publicado em 06/08/2025.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i51.66870.

2Doutor em Literatura pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL) - Brasil. Pós-doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo (USP) - Brasil. Professor Titular do Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes da Universidade Federal de Alagoas. Professor no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2. Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail. artur.neto@ichca.ufal.br.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/3979204224090102. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4669-096X. 3Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo. Professor substituto do Instituto Federal de Alagoas. E-mail: teco.ontologia@gmail.com. Lattes: https://lattes.cnpq.br/7466745784325932. ORCID: https://orcid.org/0009-0006-0391-0335.

Introdução


Apesar de se apresentar como leitor crítico de Bertolt Brecht (1898-1956) e recusar qualquer filiação com o pensamento marxista ou marxiano, Augusto Pinto Boal (1931-2009) desempenhou posição destacada na profusão do teatro brechtiano no cenário brasileiro e latino-americano. E ele fez isso numa época perpassada pela presença de ditaduras na maioria das economias da América Latina4. Nesse contexto, aplicou de forma singular a proposta brechtiana de antítese ao individualismo burguês, plasmando espaços de produções coletivas que se contrapunham aos preceitos da concentração dos meios de produção artística.

Apesar de adotar uma perspectiva coletiva semelhante ao dramaturgo alemão, uma vez que persegue uma autorreferencialidade coletiva (Zanetti, 2015), Boal buscou, sempre que possível, se afastar da dialética materialista e do pensamento marxista, preferindo flertar com as propostas políticas da esquerda enredadas na tentativa de reformar o capitalismo. Apesar dessa concessão ideológica, ele nunca se deslocou dos movimentos sociais e das tradições populares numa perspectiva anticapitalista.

Não obstante os possíveis desencontros com Bertolt Brecht, vale ressaltar os pontos de conexão do criador do Teatro do Oprimido com o grande dramaturgo alemão, em que o teatro encorpa determinada relevância na constituição da insurgência dos dominados contra os dominadores. Trata-se de uma poética dramática engajada e comprometida com a formação de lideranças comunitárias e populares.

No decorrer deste texto, buscar-se-á explorar bem mais os aspectos que articulam o Teatro do Oprimido com o Teatro Dialético de Bertolt Brecht, do que seus aspectos antitéticos. Particularmente, como toda a crítica de Boal ao teatro aristotélico está associada às análises brechtianas, abordam-se de maneira singular as críticas direcionadas ao conceito de catarse e aos preceitos do Sistema Trágico Coercitivo.


4 Augusto Boal foi preso e torturado pelo regime militar em 1971. Leva sua proposta teatral para o Peru, Argentina, Estados Unidos e Europa (Portugal, França etc.). Retorna ao Brasil no começo da década de 1980, quando cria o Centro do Teatro do Oprimido (CTO) no Rio de Janeiro. É eleito vereador no Rio de Janeiro pelo Partido dos Trabalhadores em 1993 e indicado ao Prêmio Nobel da Paz em 2008.

Influência de Bertolt Brecht sobre Augusto Boal


A contribuição da arte cênica para a realização da tarefa transformadora encontrou seu clímax na produção de Bertolt Brecht, na qual o proletariado ganhou uma forma peculiar de reflexo do mundo, com potencialidade de colaborar na subversão das estruturas sociais assentadas na exploração do trabalho e na espoliação das riquezas pertencentes aos trabalhadores5.

A produção estética de Brecht se plasma como uma espécie de esgrima no combate aos subterfúgios da barbárie orquestrada pelo capital e suas perturbações refratárias expressas no anticomunismo burguês, no nazifascismo e na supervalorização do mundo das coisas em detrimento da relevância dos seres humanos. Essa produção emerge do contato com as vanguardas; nestas, Brecht absorve influências cubistas e construtivistas que foram fundamentais para o seu teatro épico-dialético e a sua “estética da produção”, especialmente as estreitas conexões com as vanguardas alemãs e soviéticas (Piscator, Lacis, Tatlin, Tretiakov, Meyerhold e Tairov, Groz e Heartfield, entre outros).

Ao tornar-se marxista, Brecht entende que a obra de arte deve colaborar no desvelamento dos antagonismos sociais. É nesta etapa que realmente emerge seu novo teatro, em que o protagonismo não pertence à burguesia e, muito menos, à nobreza. Pela primeira vez um dramaturgo elege o proletariado como o protagonista fundamental de suas peças, e isso se estendia também a seus atores fundamentais. Para Brecht (1978, p. 37), o teatro proletário é aquele que “está em condições de tomar a dianteira em relação ao público, em vez de seguir atrás". Tomar a dianteira não significa, porém, eliminar o público de uma participação na produção”.6 O


5 A estética aceita hoje em dia, escreve Brecht (1978, p. 44), “ao exigir um efeito imediato, exige também, da obra de arte, um efeito que supere as diferenças sociais e as restantes diferenças que existem entre os indivíduos. Este efeito de superação dos antagonismos de classes é ainda conseguido atualmente por dramas de dramática aristotélica, se bem que os indivíduos cada vez tenham mais consciência das diferenças de classe. E mesmo quando o antagonismo de classes é o tema destes dramas, ou quando neles se toma posição em favor desta ou daquela classe, tal efeito não deixa de se produzir. Seja qual for o caso, cria-se entre os espectadores um todo coletivo, surgido a partir do ‘humano universal’, comum a todo o auditório, durante o tempo da fruição artística. A dramática não- aristotélica, do tipo de A Mãe, não está interessada na produção deste gênero de coletivismo e, muito pelo contrário, divide o seu público”.

6 Segundo Brecht (1978, p.38-39): “O teatro proletário tem de aprender a conduzir as diversas artes de que necessita para uma livre expansão. Tem de saber orientar-se por argumentos de ordem artística e política e, além disso, não deve dar jamais ao encenador oportunidade de se ‘exprimir’ individualmente”.

fundamento deste teatro proletário é dialético, porque a dialética materialista se constitui como elemento fundamental para desmistificar o sistema do capital.

Escreve Zanetti (2015, p. 133):


O fundamento do “teatro dialético” de Brecht é ser “épico”, só que é um “épico” em relação com o método da dialética materialista, que não quer preservar o status quo social mantido pelo modo de produção capitalista. O trabalho de Brecht, portanto, é a realização do “épico” que se transforma e propõe a transformação do mundo material a partir das relações humanas.


A produção estética de Bertolt Brecht antes de se “parecer” com uma obra engajada politicamente, é uma forma estética que tem no “realismo” o ponto fundamental para a compreensão das vicissitudes da grande obra de arte. A estética brechtiana tem o mérito de devolver à arte “realista” o princípio praxeológico que a estética lukacsiana havia relegado ao “depois da arte”. Nela, “é possível imaginar uma arte didática em que a aprendizagem e o prazer não estão separados entre si” (Jameson, 2007, p. 195). Nesta estética, o realismo não é uma categoria puramente formal, mas cumpre o propósito de orientação da própria relação da obra de arte com o mundo. Brecht defende um conceito amplo de realismo: este não é uma questão de forma, muito menos “uma forma especial de ‘reflexo’ cognoscitivo da realidade” (Lunn, 1986, p. 141). O realismo é, sim, um “elemento prático de construção desta realidade, uma parte constitutiva da atividade produtiva do indivíduo social” (Lunn, 1986, p. 141). A obra de arte não tem um caráter meramente imitativo (mimético), mas uma perspectiva praxeológica revolucionária, porquanto pode colaborar no revolucionamento das relações de produção na perspectiva do proletariado. E, flertando com o cubismo, advoga uma interação com as técnicas literárias modernistas, porque seu tempo histórico é o tempo dos modernistas, e não de Johann

Goethe, Honoré Balzac e Liev Tolstói.

Na concepção brechtiana, qualquer tentativa de se contrapor à desumanização contemporânea pela mediação da representação de personalidades harmoniosas e integradas serve tão somente para “facilitar uma sensação de realização catártica dentro do auditório e tornar desnecessária a ação política” (Lunn, 1986, p. 107). Ao invés de conciliar as contradições, a arte deveria produzir um choque e impor a exigência de que o público pode e deve completar a obra mediante sua práxis transformadora.

A influência do “Teatro Dialético” de Brecht na estética brasileira faz-se presente não apenas na composição musical de Chico Buarque, bem como nos ensaios teatrais de Augusto Pinto Boal, Gianfrancesco Guarnieri, José Renato, Sábato Magaldi, José Celso Martinez Corrêa e tantos outros. Pode-se afirmar que a interferência do teatro de Brecht reverbera na periferia do capitalismo e ocupa papel destacado no Teatro de Arena e no Teatro Oficina, no Teatro do Oprimido (TO) e no “Teatro de Fórum” (TF) de Augusto Pinto Boal, bem como na Companhia do Latão.

O teatro épico-dialético é adaptado à realidade duma economia dependente e recorre à mediação de exercícios, jogos e técnicas teatrais específicas. No cerne desse movimento estético está a necessidade de plasmar-se a socialização dos meios de produção teatral e a configuração de uma nova leitura do mundo na perspectiva da práxis libertadora dos oprimidos. O espectador é convidado a ensaiar na esfera da representação estética a transformação que pretende realizar na vida. Nas palavras de Boal (1977, p. 169): “A ação dramática esclarece a ação real. O espetáculo é uma preparação para a ação”.

Preparação para a ação dos oprimidos e não do proletariado. Nota-se que Boal substitui a classe que se constitui como o sustentáculo de todo o processo de reprodução do capital, em Marx e Brecht, pela categoria de “oprimido”. Com isso, desconsidera o papel essencial que exerce o proletariado no processo de produção de mais-valor, enquanto fundamento ontológico do sistema do capital.

Desse modo, ele renuncia a possibilidade de desvelar as conexões imanentes do sistema do capital e todo processo de produção do valor que se valoriza pela mediação da apropriação do tempo de trabalho excedente forjado pelo proletariado. Este se configura como a única classe revolucionária, devido ao papel desempenhado na urdidura da produção capitalista e não simplesmente pelo fato de ser a classe mais explorada ou sofredora.

A categoria de “oprimido” pode colaborar no desenvolvimento de uma oposição política ao opressor, mas é insuficiente para entender as contradições efetivas que plasmam o processo socioeconômico de subordinação do trabalho ao capital, pois os seres humanos oprimidos pertencem tanto à classe operária quanto às demais classes sociais, tais como os setores intermediários da sociedade (classe média), os trabalhadores assalariados improdutivos de mais-valor, os camponeses, o lumpemproletariado etc.

As categorias de oprimido e opressor não possibilitam entender as contradições imanentes do sistema do capital. A impossibilidade de operacionalização de qualquer espécie de conciliação entre capital e trabalho, entre burguesia e proletariado, perpassa as peças épico-dialéticas de Brecht como “O Sr. Puntilla e seu criado Matti” e “A boa alma de Setsuan”. Para Brecht, o teatro proletário faz parte do projeto estratégico do trabalho contra o sistema do capital; ele é essencialmente classista e revolucionário.

Já o Teatro do Oprimido de Boal resulta muito mais do diálogo estabelecido com a “Pedagogia do Oprimido” de Paulo Freire. É um teatro que toma partido numa sociedade forjada nas desigualdades sociais, na perspectiva humanista de oferecer visibilidade aos dominados. Boal (2005) defende o teatro como uma atividade essencialmente política, um instrumento de luta pela libertação dos setores sociais desfavorecidos (Boal, 2009), e não exclusivamente do proletariado, como Brecht.

Nesse cenário, inscrevem-se as peças “Revolução na América do Sul”, “Arena conta Zumbi” (1967) e aquelas que constituem o livro “Teatro e transformação social” (Teatro Fórum e Agitprop), dedicado especialmente à formação das lideranças dos movimentos sociais no campo. Entre as peças que constam na referida obra, cabe referência a “Alcapeta”, pelo fato de tentar operar aquilo que Brecht denominava de “refuncionalização dos clichês”, mediante a reconfiguração estereotipada do camponês como caipira, ou seja, deste homem vitimado pelas pretensões de superioridade do mundo urbano.

Na tentativa de constituir-se como uma ferramenta importante no desenvolvimento da consciência dos dominados, o Teatro do Oprimido entende que fazer teatro é um ofício, mas ser teatro é ser humano. As pessoas são teatro tendo ou não consciência da linguagem teatral (BOAL, 1977). O teatro é representação do real; pela sua intermediação se pode entender melhor o passado no presente e inventar o futuro (Boal, 1977). De maneira análoga ao teatro de Brecht, o Teatro do Oprimido difundiu suas técnicas e concepções por várias partes e espaços, servindo também como anteparo no tratamento de doentes mentais (“Arco-íris do desejo”) e no processo de recuperação de pessoas encarceradas pelo sistema prisional.

O ponto de inflexão do Teatro do Oprimido não é o despertar da razão e a reflexão iluminista em contraposição ao mundo das sensações e emoções, mas como os sentidos são essenciais na libertação da opressão do ser humano concreto das

relações sociais forjadas pelos dominadores. Desse modo, configura-se um espaço novo para o desenvolvimento do potencial crítico de interpretação e intervenção artístico-cultural na realidade política e socioeconômica marcada pelas ditaduras e pelos autoritarismos das classes dominantes. É preciso nunca esquecer que “a Estética do Oprimido é trânsito; esperança, não conformismo!” (Boal, 2009, p. 167).

Como Brecht, o dramaturgo brasileiro considera que nunca se deve encerrar uma peça de maneira fatalista ou derrotista, mas sempre revelando as possibilidades abertas para a intervenção dos oprimidos e explorados (Boal, 2009). As palavras e os gestos devem despertar sempre a esperança na ação coletiva e organizada dos segmentos sociais oprimidos. Assim, observa-se que o homem não somente é forjado pelo meio em que está lançado, mas pode também alterar seu meio de modo organizado e coletivo.

Em seu “Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas” (1980), Augusto Boal escrutina criticamente os aspectos mistificados da realidade que servem para eternizar e naturalizar a dominação e a desigualdade social. O Teatro do Oprimido plasma-se como uma espécie de “evento teatral” que comporta capacidade de apreender e reconfigurar a vida reificada dos dominados. Boal (2009, p. 72) entende que para que os oprimidos “se libertem das injustiças que sofrem, é necessário criar sua própria lei e assumir o poder que dela emana, poder que só se consegue com a participação ativa na vida social e política, com organização e com o bom uso da força dela decorrente”. A formação da nova consciência passa pela transmutação do espectador passivo em sujeito que intervém politicamente na sociedade.

Observa-se que as peças de Augusto Pinto Boal tentam realizar o ideal brechtiano de um teatro instrutivo sem abdicar do entretenimento, do prazer e da alegria. Ele tem o mérito de fornecer uma forma estética adaptada ao contexto do capitalismo periférico, adotando novas técnicas e formas estéticas, mas faz isso tentando se afastar das proposições políticas mais radicais do representante do Teatro Dialético.


Crítica ao Sistema Trágico Coercitivo aristotélico


Uma das vigas-mestras da poética brechtiana foi sua crítica contundente ao teatro aristotélico. Nesta se inscreve a necessidade da recusa incondicional de identificação do espectador com o herói da peça. O teatro brechtiano se contrapõe ao

teatro aristotélico, primeiro, porque não pretende tratar das relações individuais, mas das relações sociais que envolvem sujeitos coletivos com suas determinações de classe; segundo, porque entende que o homem deve ser aprendido no contexto da totalidade das relações sociais e não de maneira fragmentada como no teatro de ilusões da burguesia (Rosenfeld, 2006).

Para engendrar a crítica à sociabilidade alienada que forja a sociedade capitalista, Boal apresenta de modo determinado os limites do teatro clássico tanto em sua forma quanto em seu conteúdo. Essa crítica tem seu ponto de partida na produção estética do dramaturgo marxista. Na esteira do dramaturgo alemão, o teatro de Boal se contrapõe tanto ao teatro greco-romano e medieval quanto ao teatro burguês.

No seu entendimento, essas formas de manifestações cênicas estão articuladas aos modos de organização da vida material. Isso implica que o teatro clássico não pode escapar da relação orgânica com o modo de produção escravista; assim como o teatro medieval, do processo de exploração do trabalho do servo de gleba. O mesmo acontece com o teatro burguês; este não escapa das relações sociais assentadas na propriedade privada dos meios de produção e dos instrumentos artísticos e estéticos.

A sua crítica não se restringe às formas ideológicas que emanam da forma da acumulação social capitalista, mas envolve toda a tessitura da propriedade privada mediante a crítica ao processo de apropriação dos meios de produção do teatro por parte da classe dominante. O referido sistema, segundo Boal (1980), é a forma que se universaliza no mundo em que predomina a propriedade privada.

A crítica à forma e ao conteúdo do fazer estético, consignado no Sistema Trágico Coercitivo, tem seus pressupostos alicerçados na defesa inexorável da propriedade privada. Desse modo, as manifestações teatrais acabam tendo sua capilaridade na fomentação e na reprodução das relações impostas pela propriedade privada dos meios de produção e dos meios teatrais. A generalização dessa perspectiva no universo teatral se expressa do seguinte modo:


Teatro era o povo cantando livremente ao ar livre: o povo era o criador e o destinatário do espetáculo teatral, que se podia então chamar “Canto ditirâmbico”. Era uma festa em que podiam todos livremente participar. Veio a aristocracia e estabeleceu divisões: algumas pessoas iriam ao palco e só elas poderiam representar enquanto todas as outras permaneceriam sentadas, receptivas, passivas: estes

seriam ·os espectadores, ã massa; o povo. E para que o espetáculo pudesse refletir eficientemente a ideologia dominante, a aristocracia estabeleceu uma nova divisão: alguns atores seriam os protagonistas (aristocratas) e os demais seriam o coro, de uma forma ou de outra simbolizando a massa. (Boal, 1980, p. 2).

O dramaturgo brasileiro indica os fundamentos dos males que acometem o teatro. Este deixa de constituir-se como uma forma livre, consciente e coletiva, para manifestar-se como uma expressão dos complexos valorativos e dos anseios ideopolíticos das classes dominantes. O teatro deixa de assumir uma forma-conteúdo que representa os sentimentos efetivos da vida cotidiana, para enredar-se no processo de estranhamento que interessa aos detentores da propriedade privada. E as classes dominantes não se configuram de maneira homogênea ao longo da história; elas se alteram de acordo com as especificidades dos interesses de cada classe no poder, resvalando nas formas e nos conteúdos que servem para reproduzir a forma das relações sociais que emanam da particularidade dos meios de produção.

Nesse processo, observa-se que todas as classes dominantes têm em comum a necessidade de fomentar uma ideologia que promulgue seus valores como universais. Pela mediação da arte, elas tentam elevar suas formas particulares de existência ao status universal. E nenhuma outra classe social conseguiu fazer isso com tanta habilidade quanto a burguesia. Assim, o teatro deve persuadir as classes dominadas quanto aos preceitos dominantes, pois não bastam somente os mecanismos coercitivos.

Boal (1980) procura concretizar uma forma de teatro que cultive nos espectadores a possibilidade de transcender a preservação do status quo alimentado pelo teatro aristotélico. Enquanto este procura preservar o ordenamento social vigente, o Teatro do Oprimido pretende fortalecer os elementos que possam alterar a vida cotidiana dos dominados.

Isso implica que sua forma teatral se plasma como uma proposta diametralmente oposta, tanto na forma como no conteúdo, ao modelo expresso no teatro tradicional. Enquanto o teatro Trágico Coercitivo tenta reduzir o público à condição de mero ente passivo, o teatro de Boal intenta subverter esse modelo, considerando o público como um sujeito ativo. Ele se contrapõe à lógica da passividade tanto na forma quanto no conteúdo.

Do ponto de vista do conteúdo, Boal (2009) propõe que os temas sejam tratados e modulados com o envolvimento de seus participantes, fazendo com que as

pessoas não se distanciem da peça ou da obra, mas se apresentem na tentativa coletiva de resolução dos problemas. No entendimento de Boal (2009, p. 107), na arte coletiva “não serão os gostos díspares que irão impedir a formação da equipe, desde que exista e seja aceito um bem maior: a consciência da opressão e o desejo de recriar a sociedade”. A arte coletiva é formada pela sinergia entre atores e público. Desse modo, o Teatro do Oprimido não tenta adequar as potencialidades humanas ao ethos que atende às necessidades da reprodutibilidade ideopolítica dominante.


Efeito de distanciamento e catarse


O Teatro Dialético de Brecht é um teatro essencialmente novo, porque não busca cultivar a empatia do espectador como no teatro tradicional, mas promover o “efeito de distanciamento” (Verfremdungeffekt), ou seja, ele incentiva o desenvolvimento do comportamento e da atitude crítica do espectador pela mediação da produção artística.

O “efeito de distanciamento” está relacionado à forma da representação da realidade. Uma mesma realidade pode ser representada de múltiplas maneiras. Trata- se de representar o real na perspectiva de resignificá-lo de maneira crítica e não passiva. Assim, o “efeito de distanciamento” se distingue radicalmente da “técnica de identificação”.

Brecht opera a crítica ao fato de o teatro, fundamentado na teoria aristotélica, ter maximizado não somente as emoções, mas servido como instrumento de manipulação dos sentimentos e, consequentemente, para a obliteração da realidade. Dada a autonomia da arte, essa forma de dramaturgia tenta representar o mundo de maneira distinta de sua efetividade. Com isso, a arte dramática tradicional contribui para afastar os indivíduos da concretude da objetividade e, sobretudo, da apreensão de suas contradições e tensões efetivas. Esse tipo de manifestação estética corrobora no afastamento gradual dos indivíduos do mundo e faz com que os seres humanos busquem na arte uma forma de esquecimento dos problemas vivenciados.

Brecht (1978) propõe um teatro que se desloque do entendimento de que a emoção deve estar articulada ao sentimento de empatia. A arte não deve servir para cultivar as idiossincrasias irracionalistas. Isso não implica que dramaturgo marxista seja contrário aos sentimentos, pois a arte tem como campo de interseção fundamental o mundo das intuições, dos sentimentos e da subjetividade; entretanto,

esses sentimentos não devem ser manipulados, mas desenvolvidos de forma consciente e racional.

As emoções precisam ser deslocadas da empatia com as personagens representadas para o terreno das contraposições. Diante do estado de coisas representado, o espectador é interpelado a dizer: “– Isso é que eu nunca pensaria. – Não é assim que se deve fazer. [...] – Isto é que é arte! Nada ali é evidente. – Rio de quem chora e choro com os que riem” (Brecht, 1978, p. 67). O teatro gestual chinês, por exemplo, é repleto de exemplos de distanciamentos, que também podem ser encontrados em inúmeras manifestações estéticas, como na pintura surrealista.

O espírito reflexivo no espectador é despertado muito mais pela mediação dos gestos do que das palavras7, pois os gestos são menos falsificadores da realidade do que as palavras. Esclarece Benjamin (1987, p. 80):


Em face das assertivas e declarações fraudulentas dos indivíduos, por um lado, e da ambiguidade e falta de transparência de suas ações, por outro, o gesto tem duas vantagens. Em primeiro lugar, ele é relativamente pouco falsificável, e o é tanto menos quanto mais inconspícuo e habitual for esse gesto. Em segundo lugar, em contraste com as ações e iniciativas dos indivíduos, o gesto tem um começo determinável e um fim determinável.

Ao invés de se limitar ao reino das palavras, o teatro brechtiano interrompe o fluxo das palavras e faz com que os gestos se comuniquem mediante atitudes contraditórias. “A palavra assume uma materialidade no palco que não é ilustração da ação, mas é a própria ação do ator que mostra o fluxo vivo no plano das ações sociais” (Zanetti, 2015, p. 130). E quanto mais se interrompe o protagonista de uma ação, “mais gestos obtemos. Em consequência, para o teatro épico a interrupção da ação está no primeiro plano. Nela reside a função formal das canções brechtianas, com seus estribilhos rudes e dilacerantes” (Benjamin, 1987, p. 80).

A teoria que sustenta o “efeito de distanciamento” é essencialmente dialética, já que coloca sob o escrutínio da crítica tudo o que parece natural e perene, obstando cultivar a habitual ternura pelas coisas sensíveis. As peças brechtianas procuram desvelar o fundamento das relações sociais e tentam escapar dos processos de


7 Para Zanetti (2015, p. 131), a matriz dialética da poética materialista de Brecht é essencialmente gestus, “e não as palavras e ações. É por isso que tentar entender a dialética em Brecht significa, antes de tudo, considerar a relação entre palco e público como o centro de onde emanam novas perspectivas de conhecimento sobre o mundo, pois é no fenômeno cênico, não no literário, que o método brechtiano encontra a concretude”.

mistificação e reificação que perpassam o universo estético predominante. Para isso será fundamental a apropriação da dialética marxiana, ou seja, a inversão que a dialética hegeliana experimentou nas mãos de Marx. O “efeito de distanciamento” não apenas nega, mas tenta encontrar na negação uma nova afirmação. Plasma-se, portanto, como negação da negação da realidade constituída pelos capitalistas.

A adaptação da obra de Máximo Gorki, A mãe, para o teatro, constitui uma “peça de aprendizagem” (Lehrstücke)8 por meio da perspectiva “antimetafísica, materialista, não aristotélica” (Brecht, 1978, p. 31). Diferentemente da arte dramática aristotélica, esta nova forma de arte não explora “a tendência que há no espectador para uma empatia por abandono; revela, sim, uma atitude essencialmente diversa em relação a determinados efeitos psicológicos, tal como, por exemplo, a catarse” (Brecht, 1978, p. 31).

Esta forma de arte tenta despertar no espectador um determinado comportamento prático, com vistas à modificação do mundo. Deve suscitar nele uma atitude fundamentalmente diferente daquela a que está habituado” (Brechet, 1978, p. 31). As peças de aprendizagem pretendem fazer com que seus participantes sejam ativos e reflexivos ao mesmo tempo9. Nelas, cumpre desenvolver e aprimorar as experiências assentadas nas práticas coletivas da arte.

O teatro brechtiano entende que os sentimentos e as emoções precisam ser considerados como parte de um sujeito vivo e partícipe de uma realidade que experimenta metamorfoses; diferentemente do teatro aristotélico, que persiste na compreensão estática do mundo. Desse modo, o teatro brechtiano convida o espectador a sair de sua zona de conforto, a penetrar na urdidura da realidade e descortinar suas camadas internas.


8 Brecht procura provocar uma espécie de troca da função do teatro, na perspectiva de transcender sua mera condição de mercadoria estética que precisa ser comercializada com os espectadores mediante a constituição de uma reconfiguração do teatro como espaço de construção participativa da consciência político-estética. A “peça de aprendizagem” se forja como construção coletiva tanto na produção quanto na apresentação, implicando que ela pode subsistir sem um público exterior, pois os partícipes exerceriam as funções de atores e espectadores. Nesse projeto o efeito de estranhamento ocupa papel fundamental.

9 Escreve Benjamin (1987, p. 79): “O teatro épico parte da tentativa de alterar fundamentalmente essas relações. [...]. Para sua representação, o texto não é mais fundamento, e sim roteiro de trabalho, no qual se registram as reformulações necessárias. Para seus atores, o diretor não transmite mais instruções visando a obtenção de efeitos, e sim teses em função das quais eles têm que tomar uma posição. Para seu diretor, o ator não é mais um artista mímico, que incorpora um papel, e sim um funcionário, que precisa inventariá-lo”.

Isso implica que o espectador deve se transformar num cientista social10, num indivíduo com capacidade de escrutinar a capilaridade da realidade e de entender suas contradições. A possibilidade de transformação das coisas somente é possível se subsistir uma contradição interna delas consigo mesmas. A contradição não vem de fora, mas de dentro, do movimento interno da matéria, e revela os limites da realidade estabelecida e a necessidade de sua completa superação (Aufhebung: negação-elevação-conservação).

O efeito de distanciamento permite uma ruptura com a ordem estabelecida e desenvolve a consciência de inconformismo perante a situação dada. O comportamento dos atores em cena deve provocar no espectador não a empatia e o espírito catártico aristotélico, mas o afastamento da realidade representada. O espectador deve entender que há uma alternativa aos problemas mimetizados e que é possível encontrar uma saída. É assim que Brecht encerra sua peça “A boa alma de Setsuan”: “Prezado público, vamos: busque sem esmorecer! Deve haver uma saída: precisa haver, tem de haver!” (Brecht, 1992, p. 185). Há sempre uma saída porque a humanidade nunca coloca problemas que não possa resolver11.

O efeito de distanciamento deve incidir sobre o cotidiano do espectador e levá- lo a questionar e a criticar a naturalização das relações sociais plasmadas na exploração e na desigualdade. Isso não implica que as peças de Brecht comecem com seus atores realizando o completo distanciamento das personagens representadas.

Boal (1980) incorpora esses aspectos em sua crítica à noção de catarse no teatro aristotélico. A tentativa de correção da natureza humana, no entendimento de Aristóteles (1997), pode ser objetivada mediante múltiplos condicionantes e


10 Esclarece Brecht (1978, p. 50, grifo nosso): “Já muitas vezes, ao apontar os incalculáveis serviços que a ciência moderna, devidamente empregada, pode prestar à arte, e, em especial, ao teatro, me contestaram que a arte e a ciência são dois domínios valiosos, mas totalmente diversos, da atividade humana. Tal asserção é, naturalmente, um terrível lugar-comum, e é bom afirmar logo que está, de fato, certa, como a maioria dos lugares-comuns. A arte e a ciência atuam de maneiras muito diferentes, não nego. No entanto, devo confessar, por muito que fira a sensibilidade de alguns, que não me é possível subsistir como artista sem me servir da ciência. É possível que esta afirmação suscite em muitas pessoas sérias dúvidas acerca das minhas aptidões artísticas”.

11 Para Rodrigues (2010, p. 50): “Brecht foi o primeiro a reconhecer que seu teatro épico não apresentava nenhuma novidade e reiterou inúmeras vezes que seu projeto teatral era um experimento, que o processo estava em andamento, que as experiências constantes de encenação o faziam rever e reformular suas ideias, muitas das vezes complementadas pelos companheiros de teatro, atuantes e colaboradores, como a atriz Helene Weigel, o cenógrafo Caspar Neher, o músico Kurt Weill e outros compositores”.

proposições. Nesse processo, a catarse comparece como preceito teleológico fundamental da poética trágica. Esse ideal configura-se como um elemento fundamental das artes cênicas.

A Tragédia, em todas as suas partes quantitativas e qualitativas, existe em função do efeito que persegue: a "catarse". Sobre este conceito se estruturam todas as unidades da Tragédia, todas as suas partes. É o centro, a essência, a finalidade do sistema trágico. Infelizmente, é também o conceito mais controvertido. Catarse é correção; que corrige? Catarse é purificação; que purifica?” (Boal, 1980, p. 30).


Aristóteles (1997) foi o primeiro, em sua obra Arte poética, a adotar o termo catarse (katharsis) para tratar do fenômeno estético como “libertação”, “serenidade” ou “calma” dos sentimentos. Através da catarse opera-se a depuração de duas paixões que os gregos consideravam como negativas, a saber: o medo e a piedade.

Ao produzir temor e compaixão, a tragédia grega representava uma maneira de lidar com as paixões, e a catarse neutralizava a negatividade que decorria desses sentimentos ao produzir uma forma superior de constituição. Pela mediação da catarse sucede uma espécie de subversão dos sentimentos, quando algo fundado no desprazer, como o medo e a piedade, conduz ao prazer. Desse modo, o receptor poderia expulsar suas tendências negativas e subverter suas disposições afetivas duma maneira positiva.

Na perspectiva aristotélica, a catarse deve purificar os indivíduos dos “desvios” de conduta. Nessa linha de raciocínio, a poética tem como função primordial reordenar a vida social. Brecht e Boal contrapõem-se à teoria da catarse, porque esta desenvolve a emoção no espectador na perspectiva de aprofundar suas ilusões com o status quo e com as concepções de mundo dominantes.

A catarse acaba reproduzindo a perspectiva metafísica idealista; à proporção em que parte do entendimento de que a natureza humana tem sua essência determinada de forma a-histórica e transcendental. A consubstanciação da ordem natural – cosmológica ou da natureza humana egoísta – consiste numa função da arte através da catarse e deve extirpar os danos que a essencialidade humana sofre na esfera do mundo prosaico.

Por esse lado,

Podemos agora concluir que, quando o homem falha nas suas ações, no seu comportamento virtuoso em busca da felicidade, através da virtude máxima que é a obediência às leis, a arte da Tragédia intervém para corrigir essa falha. Como? Através da purificação, da catarse, da purgação do elemento estranho, indesejável, que faz com que o personagem não alcance os seus objetivos. Este elemento estranho é contrário à lei, é uma falha social, uma carência política (Boal, 1980, p. 35).

Para Lukács (1966, p. 509), “cada catarse estética é um reflexo concentrado e conscientemente produzido de comoções cujo original pode sempre achar-se na vida mesma”. Ela brota do próprio movimento espontâneo dos acontecimentos e dos fatos que perpassam a vida. O estado de comoção propiciado pela catarse exprime também um sentimento negativo, pelo fato de o receptor “não haver percebido nunca na realidade a própria vida” (Lukács, 1966, p. 507). Aquilo que naturalmente se oferece no nível estético infelizmente não se manifesta de forma clara na cotidianidade; é por isso que não se percebe na vida aquilo que se oferece naturalmente na arte.

A experiência catártica reflete traços essenciais que brotam da própria vida. No entanto, na vida a questão é sempre posta numa perspectiva ética. No nível da regulamentação da cotidianidade, a catarse se configura como um caso episódico, sendo apenas uma possibilidade existente no contexto das inúmeras decisões prováveis, já que na vida as grandes decisões éticas não carecem de nenhuma comoção catártica. Na esfera da ética, as comoções e os êxtases não ocupam papéis de destaque, pois a essência da ética é superior ao entusiasmo, por mais sincero e honesto que este possa ser. É importante observar que a ética sempre desconfia do entusiasmo e dos exageros emocionais (Lukács, 1966).

Para Boal, o Teatro do Oprimido procura ultrapassar a catarse aristotélica – pois ela “repõe” nos indivíduos a necessidade de “continuidade” na sua realidade social. Assim,


Para que se compreenda bem esta Poética do Oprimido deve-se ter sempre presente seu principal objetivo: transformar o povo, "espectador'', ser passivo no fenômeno teatral, em sujeito, em ator, em transformador da ação dramática. Espero que as diferenças fiquem bem claras: Aristóteles propõe uma Poética em que os espectadores delegam poderes ao persona para que este atue e pense em seu lugar; Brecht propõe uma Poética em que o espectador delega poderes ao personagem para que este atue em seu lugar, mas se reserva o direito de pensar por si mesmo, muitas vezes em oposição ao personagem. No primeiro caso, produz-se uma "catarse"; no segundo, uma "conscientização". O que a Poética do Oprimido propõe é a própria ação! (Boal, 1980, p. 126).

A filiação com o projeto brechtiano é reconhecida por Augusto Boal, em que o Teatro do Oprimido tem como leitmotiv subverter a perspectiva estética que conduz ao apassivamento das massas. Ao invés de delegarem poderes às personas e conduzir à catarse, o novo teatro tem como propósito desenvolver a consciência das massas oprimidas. Para isso, é fundamental que todos os grupos teatrais “revolucionários” transfiram “ao povo os meios de produção teatral, para que o próprio povo os utilize, à sua maneira e para os seus fins. O teatro é uma arma e é o povo quem deve manejá-la! (Boal, 1980, p. 127).

O teatro como uma arma é uma assertiva claramente brechtiana, a afirmar que é necessário que a classe trabalhadora assuma o comando; para isso, é fundamental desenvolver a “conscientização”, pois o teatro deve cumprir função relevante no processo “revolucionário”, uma vez que inexiste “prática revolucionária sem teoria revolucionária”.

Em contraposição àqueles que propugnam a autonomia absoluta da arte perante a realidade e o complexo da política, como fizeram no passado os representantes da “arte pela arte”, Boal (1980) acentua a dimensão política como aspecto essencial do fazer artístico, desnudando as postulações hipostasiastes que tentam afirmar a neutralidade da arte e do fazer artístico.

O dramaturgo brasileiro parte do preceito de que fazer arte é tomar partido do lado dos oprimidos, é assumir uma determinada posição em meio aos embates sociais, é falar a verdade, pois a tarefa do artista é mostrar o que está escondido, o que não é óbvio e é invisível aos olhos e aos sentidos. Escreve Boal (2009, p. 57): “No teatro, os artistas (cidadãos) devem fazer-nos ver o que está diante do nariz e não vemos, entender o que é claro e nos aparece escuro”.

Demonstrar a natureza política do fazer estético não implica reduzi-lo aos preceitos pragmáticos e utilitários do universo político recorrente numa sociedade hedonista, senão adotar uma postura crítica perante os embates cotidianos e aceitar o desafio de constituir uma forma de arte que transcende as formas de vida submetidas aos imperativos da reificação e da alienação perpetrada. Em verdade, Boal (2009) advoga uma forma artística que apresenta propostas libertadoras para a subjetividade-objetivada suprassumida no interior de uma realidade historicamente caracterizada pela dominação.

Apesar de não fazer coro à radicalidade revolucionária do teatro brechtiano, Boal tem o mérito de colocar sua produção estética a serviço dos oprimidos e explorados do Brasil e da América Latina. Ele buscou o desenvolvimento de uma consciência coletiva pela mediação do Teatro do Oprimido; para isso, apela aos gestos corporais, à interrupção da ação e a múltiplas formas de narrativas gestuais, discursivas e não discursivas dos atores, visando interagir com o público. E como Brecht12, o dramaturgo brasileiro recorre aos dispositivos da montagem e aos inúmeros mecanismos técnicos e instrumentos científicos no terreno cenográfico, a fim de desenvolver a consciência crítica tanto dos atores quanto do público.

Conclusão


Na esteira de B. Brecht, observa-se que a produção dramática de Augusto Boal é muito mais do que mera teoria pela teoria; constitui-se, de fato, como uma teoria profundamente inserida na realidade dos oprimidos. Seu pensamento é essencialmente prático. A produção teórica de Boal, assim como a de Brecht, deriva das experiências vivenciadas no interior das práticas teatrais em contextos políticos adversos. Ambos viveram em “tempos difíceis” e tiveram de enfrentar governos nazistas e ditaduras militares, que eram radicalmente contrapostos aos seus estilos e modelos estéticos.

A análise desenvolvida por Boal se configura como uma compreensão verdadeira e contundente a respeito da peculiaridade da obra de arte no contexto do capitalismo dependente. Ele direciona sua crítica às formas de arte que se coadunam com o status quo. De certa forma, pode-se dizer que Boal fomenta e propõe um debate que ressalta a necessidade de uma arte engajada, na perspectiva libertadora ou “democrática”, na qual as pessoas exploradoras e as oprimidas possam participar efetivamente do mundo cênico de forma consciente.

Boal se coloca como crítico tanto das relações de desigualdades existentes na sociedade capitalista quanto das formas artísticas servis ao processo de reprodução das relações sociais que intensificam a exploração dos oprimidos. A crítica versa não apenas sobre as condições de produção artística ou acerca do produto estético em si,


12 Escreve Brecht (1978, p. 63): “No teatro épico, o efeito de distanciamento era provocado não só através dos atores, mas também da música (coros, canções) e da decoração (legendas, filmes etc.). O principal objetivo deste efeito era dar um caráter histórico aos acontecimentos apresentados”.

mas também em torno da impossibilidade de os oprimidos terem acesso ao universo estético.

Por fim, Brecht e Boal forjam uma práxis cenográfica que intenta romper com os imperativos da propriedade privada dos meios estéticos, mediante a vivência de experiências coletivas e que fomentam a organização da classe trabalhadora e dos oprimidos do mundo inteiro. É nesse contexto que se inscrevem as críticas contundentes endereçadas à natureza mercadológica da obra de arte que predomina nos tempos hodiernos.


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