V.23, nº 51 - 2025 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
ANÁLISE CULTURAL MATERIALISTA: ARTE, CULTURA E DETERMINAÇÃO EM MARX, ENGELS, LUKÁCS E WILLIAMS1
Alexandre Irigiyen Vander Velden2
O presente artigo expõe criticamente contribuições de autores marxistas no campo da estética e da cultura, visitando conceitos e proposições para uma leitura cultural materialista da sociedade. Para isso, esse trabalho parte de Karl Marx e Friedrich Engels, retomando como esses compreendem as “determinações” sócio-históricas e suas relações com a cultura. Em seguida, observo as elaborações de György Lukács, em seu itinerário da “teoria do reflexo” às “refigurações” de sua Estética. Por fim, visito em Raymond Williams a cultura e a arte como “prática”, bem como a proposição cultural materialista denominada “estrutura de sentimento”.
El presente artículo expone críticamente contribuciones de autores marxistas en el campo de la estética y la cultura, revisando conceptos y proposiciones para una lectura cultural materialista de la sociedad. Para ello, este trabajo parte de Karl Marx y Friedrich Engels, retomando cómo comprenden las "determinaciones" sociales e históricas y su relación con la cultura. En seguida, se observan las elaboraciones de György Lukács, en su itinerario desde la “teoría del reflejo” hasta las “refiguraciones” de su Estética. Por último, se aborda en Raymond Williams la cultura y el arte como “práctica”, así como su proposición cultural materialista denominada “estructura de sentimiento”.
This article critically presents contributions from Marxist authors in the field of aesthetics and culture, exploring concepts and propositions for a materialist cultural reading of society. To that end, the work begins with Karl Marx and Friedrich Engels, revisiting how they understand social and historical “determinations” and their relationship with culture. It then examines György Lukács’s developments, from the “theory of reflection” to the “refigurations” found in his Aesthetics. Finally, it explores Raymond Williams’s view of culture and art as “practice,” as well as his materialist cultural proposition known as the “structure of feeling.”
1Artigo recebido em 30/03/2025. Primeira Avaliação em 28/05/2025. Segunda Avaliação em 26/05/2025. Aprovado em 19/07/2025. Publicado em 06/08/2025.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i51.66928.
2Doutor em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF) - Brasil. Pesquisador em arte e cultura no Brasil moderno e contemporâneo.
Email: alexandrevelden@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9700015177570856. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0812-3606.
Em uma brochura de bolso para a batalha das ideias intitulada Dialética do Marxismo Cultural (2020), Iná Camargo Costa enumera uma diversidade de militantes e intelectuais que sob a influência do marxismo contribuíram para a crítica da cultura, tais como Antonio Gramsci, György Lukács, Walter Benjamin, Jürgen Habermas, Theodor Adorno e os frankfurtianos, Raymond Williams, entre muitos. Artistas também não faltam em sua lista, os quais produziram obras artísticas engajadas e humanizadoras diante da barbárie que o capitalismo produz. Entretanto, o termo “marxismo cultural” teria sido lavrado historicamente pelo inimigo, em Mein Kampf, ao falar nos “produtos doentios de loucos degenerados” do bolchevismo. Assim também, ao longo da história a “ameaça vermelha” fora resgatada diversas vezes pelo inimigo sempre a serviço da perseguição de militantes de esquerda e a fim de mobilizar e justificar a violência contra as lutas e as organizações de trabalhadores. Se essa “verdade-histórica” sobre o nascimento do “marxismo cultural” se deve a Hitler, Costa aponta uma segunda “verdade desafio” a encarar:
[...] transformar a incriminação em arma de luta no front cultural, definindo a nossa própria pauta, que dialeticamente pode tomar o próprio resultado do rastreamento como ponto de partida, com o objetivo de resgatar para o nosso time as incontáveis vítimas das primeiras aparições do fantasma. (Costa, 2022, p.13-4).
Se Karl Marx, Friedrich Engels e seus companheiros da Liga Comunista não aceitaram o fantasma anticomunista brandido pela Santa Aliança e redigiram O Manifesto Comunista, definindo em seus termos o que era o comunismo, Costa aponta que caberia aos “marxistas culturais” fazerem o mesmo com tal termo em nosso tempo.
Além disso, lembremos que em nosso momento histórico, jornais e veículos midiáticos hegemônicos dissertam sobre uma suposta expansão nefasta do “marxismo cultural”, assim como a extrema direita propaga inusitadas conexões entre o materialismo histórico e o “fim da sociedade ocidental”. Apesar da crise estrutural do capital (Mészáros, 2011, p.129-134) adensar a crise social e climática, bem como ser evidente o acirramento das disputas imperialista e da luta de classes, o materialismo histórico e dialético como forma de crítica mantêm-se marginalizado nas universidades e na crítica cultural. Nesses ambientes, o marxismo como ciência e crítica social é compreendido como “economicismo” e “sociologia positivista” e, enquanto política, é visto como sinônimo de “autoritarismo” e “vanguardismo”.
Em outro sentido, buscando combater essa ofensiva política e ideológica do capital e seus aparelhos de hegemonia, e compreendendo o perigo que a crítica a sociedade de classes representa a ordem do capital, esse artigo toma as trilhas do “marxismo cultural” para demonstrar a atualidade da crítica cultural materialista da sociedade. Nesse sentido, tendo em vista que o materialismo histórico observa a sociedade a partir da “totalidade”, retomo primeiramente como Marx e Engels compreendem as determinações sociais e históricas, e sua relação com o campo da arte e da cultura. Em um segundo momento, visitaremos a contribuição central do filósofo György Lukács à estética marxista, em seu itinerário de uma “teoria do reflexo” à ideia de refigurações presente em sua Estética [1963]. Por fim, traremos ao debate as contribuições do “marxismo britânico renovado” de Raymond Williams, o qual observa a cultura como “prática” e a arte como “objeto” e “prática”, bem como sua “hipótese cultural” da “estrutura de sentimento”. Ao trazer os escritos e itinerários de tais autores, esse artigo espera contribuir ao debate sobre possibilidades de análise cultural materialista da sociedade, assim como demonstrar que a realidade observada como “síntese de múltiplas determinações” não guarda relação com nenhum “determinismo economicista”.
Comecemos por Marx e Engels e o debate central das ciências humanas e sociais que é a “determinação” e os “condicionantes” que envolvem indivíduo, sociedade e história. Forjando uma dialética em confronto com a história “autodesenvolvida” de Hegel, o idealismo dos neo-hegelianos e o “materialismo contemplativo” de Ludwig Feuerbach, esses autores apontam em A Ideologia Alemã que o “modo de produção” ou a “fase industrial” das sociedades encontram-se sempre “ligados a um determinado modo de cooperação ou a uma determinada fase social” e que, portanto, “a ‘história da humanidade’ deve ser estudada e elaborada sempre em conexão com a história da indústria e das trocas.” (Engels; Marx, 2007, p.32). A questão da “determinação” aparece ainda na conhecida passagem de O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte, na qual Marx comenta:
Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. (Marx, 2011b, p.25).
Como observamos nessas passagens, as elaborações de Marx e Engels, em um sentido materialismo, situam que os indivíduos ao se relacionarem em sociedade assentem formas de cooperar para produzir e reproduzir sua própria vida, as quais são pressupostas historicamente, mas não permanentes para as gerações posteriores. Nessa definição, há relação entre a “história da humanidade” e suas formas de “indústria” e “trocas”, mas não uma determinação exclusiva e mecânica entre indivíduo e “modo de produção”.
Marx retomaria a questão da determinação em seus estudos sobre economia política dos anos de 1857, em especial, a partir de duas formulações reverberadoras na tradição e na crítica ao materialismo histórico. Em “Introdução” à Contribuição a Crítica da Economia Política3 Marx escrevia que o “método científico correto” deveria buscar os conceitos abstratos e chegar às determinações mais simples para depois retornar do abstrato ao concreto, dessa vez não como “representação caótica”, mas como “síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade" (Marx, 2011a, p.54). Já em seu Prefácio de Contribuição à Economia Política, o filósofo argumenta sobre uma “base real”, a partir da qual se eleva uma “superestrutura”:
A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. (Marx, 2008, p.47).
De diferentes formas, essas duas passagens são citadas nas ciências humanas em trabalhos que dissertam sobre arte, cultura e classes sociais, podendo dar margem a proposições distintas sobre o que constitui a “realidade social”: uma “síntese de múltiplas determinações”; uma determinação unívoca que parte das “relações de produção” para a “superestrutura”; ou ainda, uma variação mais restritiva dessa, na qual a economia determina a sociedade, sua “cultura” e suas “ideias”.
3 Em português esse trabalho encontra-se como “Introdução à Contribuição à Crítica da Economia Política” na publicação Contribuição à Crítica da Economia Política da editora Expressão Popular (2008) e, também, sob o título “Introdução” na publicação Grundrisse (Boitempo Editorial, 2011a).
Convêm ressaltar que o debate sobre “determinação” na obra de Marx e Engels encontra-se imbricado na proposição de uma leitura dialética como método de observação da história da humanidade. Nesse sentido, a dialética de Marx parte da crítica a dialética idealista de Hegel, observando no lugar do “auto-desenvolvimento” de um “Espírito absoluto” - abstrato e ideal -, a história como desenvolvimento da vida real, da produção e das relações sociais concretas, ou seja, da “existência social concreta”. É também parte da dialética como método a crítica a aparência imediata (fenômeno), sendo necessário buscar as estruturas e relações de produção a partir de um desvendar das contradições do capitalismo, movimento crítico que observamos nas diversas obras de Marx e Engels que visitamos aqui. Além disso, caro ainda a obra de Lukács e Williams, que visitaremos a frente, a ideia da realidade como uma totalidade formada por múltiplas determinações (econômicas, políticas, ideológicas, sociais, etc) é central no método materialista dialético de Marx, como visitado na citação anterior.
Retomando o debate sobre a determinação, lembremos que Engels já observava, no desenvolvimento do materialismo histórico em sua própria época, leituras mecânicas e pouco dialéticas sobre o tema, como na conhecida carta de Engels a Bloch (21 de setembro de 1890), na qual aponta:
o fator que em última instância determina a história é a produção e a reprodução da vida real. [...] Se alguém o tergiversa, fazendo do fator econômico o único determinante, converte esta tese numa frase vazia, abstrata, absurda. (Marx; Engels, 2010, p.103-4).
No campo dos estudos estéticos e literários desenvolveu-se longos debates sobre como as ideias e as produções culturais “refletem” a base material da sociedade. Em relação ao termo “reflexo”, Eagleton (2011, p.90) argumenta que Marx não utilizou essa metáfora, embora em A Sagrada Família critique o romance de Mystères de Paris de Eugene Sue como “não fiel” à vida de sua época, e Engels observe em Homero ilustrações diretas do sistema de parentesco na Grécia primitiva em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado.
Já a ideia de que a arte “reflete” ou “reproduz” a realidade far-se-ia presente no Realismo Socialista uma vez que este trabalha com a ideia da literatura como “espelho da sociedade”, a qual deveria esclarecer e ensinar atitudes políticas. Nesse sentido, para Eagleton (2011, p.82-3) uma “teoria do reflexo” primária e mecânica seria parte constitutiva do Realismo Socialista, o qual, apesar de se colocar como naturalmente
descendente de Marx e Engels, apresentaria como precursores os críticos democrático-revolucionários russos do século XIX4, que viam a literatura como análise e crítica social e o artista como “esclarecedor” social. Além disso, o Realismo Socialista incorporaria a partir da tradição de V. Belinski e G. Plekanov5 a ideia da literatura como “tipificadora” e “espelho da sociedade”.
Sob outra perspectiva, mas no interior do “reflexionismo”, Eagleton (2011, p.93) chama atenção para a “a forma mais respeitável da teoria reflexionista” encontrada em G. Lukács. Cabe ressaltar que os estudos do filósofo húngaro no campo da estética e da crítica literária possui um itinerário particular, com uma primeira fase marcada por influências diversas como o neokantismo, o romantismo, o idealismo e o hegelianismo. Nesse momento, a arte é vista como tentativa de dar sentido a experiência caótica da vida (A Alma e as formas, 1911). Já a epopeia clássica, expressão da totalidade da sociedade antiga, é contraposta ao romance moderno, forma alienada e própria a fragmentação do mundo e ao distanciamento dos indivíduos da experiência social (Teoria do Romance, 1916). Sob impacto da Primeira Guerra e da Revolução de Outubro de 1917, Lukács se aproxima do marxismo em uma nova fase intelectual, sendo um marco de seu pensamento o debate sobre “dialética”, “consciência de classe” e “totalidade”, publicados em História e consciência de classe (1923). Ao longo das décadas de 1930 e 1940, agora a partir do materialismo dialético, Lukács escreverá diversos textos sobre o “reflexo” nas artes, ao mesmo tempo em que combate o “marxismo vulgar”. Já ao final da década de 1950 e início dos anos 1960, as reflexões estéticas “maduras” de Lukács tem como marcos a publicação de Introdução a uma estética marxista [1963] e Estética [1963]6, sendo
4 Entre os mais conhecidos democratas-revolucionários estão Vissarion Belinsky (1811-1841) e Nikolai Chernyshevsky (1828-1889), críticos literários e publicistas que em meados do século XIX defendiam ideais liberais na Rússia, assim como uma concepção de literatura e arte socialmente e moralmente empenhadas.
5 Guiorgui Valentinovitch Plekhanov (1856-1918) filósofo e revolucionário, fez parte do movimento
populista revolucionário e da organização Terra e Liberdade antes de fundar o movimento social- democrata russa e ser aliado dos mencheviques. Fez parte da primeira geração marxista russa e escreveu A arte e a vida social (1912), uma das primeiras tentativas de elaboração estética a partir do materialismo histórico-dialético.
6 Ao iniciar a escrita de sua Estética, na segunda metade da década de 1950, Lukács haveria sentido a necessidade de uma "introdução" para a obra. Para o autor, devido a importância de seus temas, a
que o artigo presente se detém nos escritos de Lukács a partir de sua conversão ao “materialismo histórico” e de sua busca por uma “estética marxista”.
Retomando a fase da estética materialista de Lukács, em texto de 1945 o filósofo argumentava então que “o materialismo histórico identifica na base econômica o princípio diretor, a lei determinante do processo histórico”. Já a literatura e arte seriam parte da superestrutura, sendo que:
Desta constatação fundamental, o materialismo vulgar parte para a conclusão, mecânica e errônea, distorcida e aberrante, de que entre base e superestrutura só existe um mero nexo causal, no qual o primeiro termo figura apenas como causa e o segundo aparece unicamente como efeito. [...]. A dialética nega que possam existir, em qualquer parte do real, relações de causa e efeito puramente unívocas: ela reconhece até mesmo nos dados mais elementares da realidade complexas interações de causas e efeitos. E o materialismo histórico acentua com particular vigor o fato de que, num processo tão multiforme e estratificado como o é a evolução da sociedade, e o processo total do desenvolvimento histórico-social só se concretiza em qualquer dos seus momentos como uma intrincada trama de interações. (Lukács In: Marx; Engels, 2010, p.13).
Ademais, nesses anos o filósofo esclarecia em diversos textos que o “reflexo artístico” não é comparável ao “reflexo fotográfico” ou algo similar, pois:
Ao mesmo tempo em que coloca o realismo no centro da teoria da arte, a estética marxista combate firmemente qualquer espécie de naturalismo, qualquer tendência à mera reprodução fotográfica da superfície imediatamente perceptível do mundo exterior. (Lukács In: Marx; Engels, 2010, p. 24).
Nesse sentido, o “reflexo artístico” é compreendido como atividade humana que possui especificidades e que não se resume a uma observação unívoca e mecânica de uma “base”.
Por esse caminho, Lukács e seus discípulos buscam a partir dos escritos de Marx e Engels uma estética que responda à questão da “durabilidade da obra artística” – para utilizarmos o termo presente no clássico estudo de 1967 de Leandro Konder7
obra acabaria ganhando autonomia e seria publicada como Introdução a uma estética marxista. (Moreira; Maceno In: Lukács, 2018, p.10).
7 Essa foi uma importante obra na recepção das ideias de Lukács e Gramsci no Brasil, momento em
que as diretrizes do PCB apontavam uma ampla frente entre oposicionistas e democratas na qual encontravam-se diversos intelectuais comunistas como Leandro Konder. Nesse livro, a partir do “realismo lukacsiano”, o autor aponta o sucesso da “sobrevivência-durabilidade” de uma obra artística a partir de sua capacidade em alcançar as relações “reais” da sociedade, argumentando que: “Na medida em que uma determinada forma artística se estrutura de maneira a permitir que se experimente,
– a partir do “triunfo do realismo” engelsiano e da defesa do “humanismo” na arte (Konder, 2013, p.42). Nesse sentido, Lukács em seus diversos escritos da década de 1930 e 1940 debate a “grandeza artística”, o “realismo autêntico” e o “humanismo” como pontos indissociáveis de uma estética marxista, questionando que Marx jamais sustentou que as premissas históricas e sociais da gênese e do desenvolvimento da literatura exaurissem suas questões. Sustenta o filósofo que Marx teria formulado princípios fundamentais da estética em uma ampla perspectiva dialética, não apenas ligando “a arte e a epopeia gregas” a certo desenvolvimento social, mas questionando o porquê essas continuam a proporcionar “prazer estético” e mantêm “o valor de normas e modelos inacessíveis” na atualidade. Assim, para o Lukács desses anos a estética em Marx:
[...] suscita dois grandes complexos de problemas relativos à essência estética de toda obra de arte de toda e qualquer época: que significação possui o mundo assim representado do ponto de vista da evolução da humanidade? E de que modo o artista representa um dos seus estágios, no quadro geral dessa evolução? (Lukács In: Marx; Engels, 2010, p. 22).
Já em uma elaboração mais complexa, na qual os conceitos de uma “estética marxista” são ampliados e integrados a uma “ontologia do ser social”, Lukács argumenta em Estética um fundo “objetivo” de três formas de refiguração centrais na vida humana, argumentando que: “todas as formas de reflexo – das que analisamos antes de tudo a da vida cotidiana, a da ciência e da arte – reproduzem sempre a mesma realidade objetiva”8. Nessa perspectiva, apesar das especificidades dessas formas de “reflexo” e “reprodução”, todas elas se vinculariam ao processo de “hominização” e “humanização” que acompanham a história da humanidade e de seu desenvolvimento enquanto sociedade. Dessa forma, são marcantes os sentidos “ontológicos” do trabalho do último Lukács, o qual afirma em Estética: “Do mesmo modo que o trabalho, a ciência e que todas as atividades do homem, a arte é um produto da evolução social, do homem que se faz homem mediante seu trabalho”9. Observando as particularidades de diferentes formas do “sujeito” refigurar o mundo e
de modo imediato e concreto, as relações humanas reais enfocadas em uma obra de arte, tanto mais segura é a sobrevivência dessa obra.” (Konder, 2013, p.136).
8 Lukács, 1982, p.19 apud Duayer In: Miranda; Monfardini, 2015, p. 129.
9 Idem, p. 131.
a intrínseca “objetividade” dos objetos, o filósofo argumenta sobre o caráter “antropomorfizador” da arte e “desantropomorfizador” da ciência:
[...] o reflexo científico da realidade procura libertar-se de todas as determinações antropológicas, tanto as derivadas da sensibilidade como das de natureza intelectual, ou seja, se esforça por refigurar os objetos e suas relações como são em si independentes da consciência. Ao contrário, o reflexo estético parte do mundo humano e se orienta a ele. Isso não significa nenhum subjetivismo puro e simples. Pelo contrário, a objetividade dos objetos fica preservada de tal modo que contenha todas as referências típicas à vida humana. (Lukács apud Duayer In: Miranda; Monfardini, 2015, p. 132).
Nessa reflexão, Lukács afirma a dimensão objetiva do ser humano e da realidade para contrapor-se à “estética idealista”, entretanto, diferencia as formas de recepção, reprodução e conhecimento da ciência e da arte. A primeira propositaria reproduzir a “realidade em si”, se “desantropomorfizando” nessa busca. Já o estético, por ser um reflexo orientado exclusivamente ao mundo do homem, expressaria os elementos da realidade antropomorfizada, reprodução também passível de “objetividade”, uma vez que comprometidas com “referências típicas”. Em sua Estética, o filósofo argumenta ainda a arte como “mimeses” e atividade humana, e não como transcrição de uma “realidade bruta” ou de uma “base”. Apontando o caminho crítico de Lukács, Eagleton situa o desenvolvimento, as contradições e a superação da “teoria do reflexo” em sua obra tardia:
[...] o verdadeiro conhecimento, para Lenin e Lukács, não é constituído pelas impressões iniciais dos sentidos: ele é, como afirma Lukács, “uma reflexão mais profunda e abrangente da realidade objetiva do que é colocado à disposição pelas aparências”. [...] Essa é claramente a forma mais respeitável da teoria reflexionista, mas podemos questionar se ela deixa algum espaço para o “reflexo”. Se a mente é capaz de penetrar nas categorias que se encontram sob a experiência imediata, podemos concluir que a consciência é claramente uma atividade – uma prática que atua sobre a experiência para transformá- la em verdade. Não fica claro como o “reflexo” se encaixa aqui. Lukács, na verdade, pretende preservar a ideia de que a consciência é uma força ativa: em sua obra tardia sobre a estética marxista, ele vê a consciência como uma intervenção criativa no mundo e não como seu mero reflexo. (Eagleton, 2011, p. 93).
Assim, mesmo que Lukács trate em termos “reflexionistas”, não se trata de observar a arte como um “reflexo” unívoco de condições materiais ou de uma realidade imediatamente observável. Antes, o “reflexo artístico” é compreendido junto
ao debate sobre a necessidade de se apontar a ligação do campo das “ideias”, da “arte", das “ideologias” e das “representações”, com a materialidade da vida e das relações sociais, a partir do método histórico-dialético, sendo a consciência uma força ativa na compreensão da realidade.
Ainda no interior do marxismo, criticando a ideia de “reflexo” e advogando a necessidade de observar a cultura como “prática” e a arte como “objeto” e “prática”, Raymond Williams também contribuiu de forma significativa às questões da “determinação”. Seu caminho é marcado pela crítica ao marxismo britânico predominante em seu tempo, pelo impacto da Segunda Guerra Mundial, pela experiência militante e pedagógica nos cursos da Workers’s Educational Association para adultos, assim como pela participação na Nova Esquerda britânica. Nesse itinerário intelectual, Williams desenvolveu uma crítica férrea ao materialismo histórico preso a uma ideia de determinação rígida entre “base” e “superestrutura”. Também é central sua crítica a visões idealistas e conservadoras que enxergam a produção artística e cultural como campo de “grandes” obras e autores - a “alta cultura” -, e que descarta produções, contribuições simbólicas e práticas da classe trabalhadora e dos grupos subalternos.
Filho de um operário do Partido Trabalhista, Williams viveu as contradições de uma típica família de trabalhadores até seu ingresso em Cambridge. Sua obra como crítico literário é diversa, mas sempre teve como centralidade a indagação sobre relação “cultura e sociedade”. Junto a companheiros de trabalho, como Stuart Hall, Williams ampliou os objetos de estudo e crítica, abriu novos caminhos teórico- metodológicos e conformou o campo dos “Estudos Culturais”. Longe de fazer-se como “culturalismo” - compreendido aqui nos termos de Aijaz Ahmad (apud Mattos In: Melo, 2014, p.77) como “uma ideologia [...] que trata a ‘cultura’ não apenas como um forte aspecto de organização e comunicação social, mas como uma instância determinante” -, as indagações de Williams compreendem e aprofundam a “cultura” como parte de uma “totalidade social”, marcada por uma “intencionalidade de classe”, em uma rica trajetória ativa junto às ideias de Marx e do marxismo.
Segundo Williams (1979, p.8), seu itinerário intelectual é marcada por um “marxismo confiante, mas altamente seletivo” como estudante em Cambridge, no final da década de 1930, para uma posterior investigação cultural e literária “a certa distância consciente” do marxismo. Para o crítico, esse período e suas questões resumem-se na obra Cultura e Sociedade (1780-1950) (1958), em especial no capítulo Marxismo e Cultura, no qual debate a partir da citação do Prefácio de Contribuição à Economia Política a necessidade de encarar a questão da “determinação” e da metáfora sobre a base e a superestrutura.
Para Williams, Christopher Caudwell e a crítica literária de corte marxista inglesa da década de 1930, ao tratarem a literatura em termos de reflexo, representação ou expressão ideológica, não teriam conseguido compreender a complexidade das obras e dar respostas adequadas. Esse mecanicismo teria aberto espaço para a hegemonia do pensamento de F. R. Leavis e da revista Scrutiny, os quais observam o industrialismo e a sociedade de massa moderna como responsável por um declínio cultural, sendo a literatura passível de formular expressões culturais “superiores” a serem mantidas e compartilhadas pela análise e pelo índice dos “críticos” e de uma “elite cultural”.
Para Williams, em seu Cultura e Sociedade (1780-1950) já há um senso crítico à metáfora “base e estrutura”, por seu caráter rígido, abstrato e estático, o que observava como essencialmente burguês e uma posição do pensamento utilitarista. O crítico diz perceber que teria que “desistir, ou pelo menos deixar de lado” o que conhecia como tradição marxista para tentar desenvolver um tipo diferente de “teoria da totalidade social”, assim como:
[...] para visualizar o estudo da cultura como o estudo das relações entre elementos em todo um modo de vida; para encontrar formas de estudar a estrutura em obras e períodos particulares que poderiam manter-se em contato e clarificar obras de arte e formas específicas, mas também as formas e relações de uma vida social mais geral; e para substituir a fórmula da base e da superestrutura com a ideia mais ativa de um campo de forças mutuamente determinantes, embora desiguais. (Williams, 2011, p. 28).
Esse teria sido o projeto de Long Revolution [1961], o qual Williams aponta ter sido extraordinário escrever sem conhecer na época o relevante trabalho de Lukács e Lucien Goldmann, nem a “teoria da utilidade” de Marx em A Ideologia Alemã. Nesse trabalho o crítico argumenta uma “longa revolução” vivida na institucionalidade e pelos
indivíduos, a partir dos processos “desiguais” da revolução democrática, da revolução industrial e de uma revolução cultural, buscando definir a maneira orgânica como esses processos se relacionam.
Na década de 1960, Williams entraria em contato com novos autores e o intenso debate sobre a necessidade de um pensamento marxista afastado do que era difundido na URSS. Momento de busca para além do marxismo “tout court” de Plekhanov e da teoria literária marxista inglesa; também de contato com as obras finais de Lukács e de Sartre, com as ideias frankfurtianas, com os escritos de Gramsci, com a obra em evolução de Goldmann e de Althusser, com sínteses marxistas e formas de estruturalismo, e com a obra de Marx em nova tradução, especialmente, a do Grundrisse (Williams, 1979, p.10).
Em seu artigo Base e Superestrutura na Teoria da Cultura Marxista (1973) Williams sintetiza essa jornada e os pontos centrais de uma teoria materialista para pensar a cultura e a arte. Nesse escrito, o crítico literário indaga qual das proposições de Marx seria a mais interessante: a ideia de uma “base determinante” e uma “superestrutura determinada” ou a afirmação de que “o ser social determina a consciência”. Argumenta, então, que apesar de não serem excludentes, a ideia de base e superestrutura - com seu elemento figurativo e uma sugestão espacial fixa e definida - constituiu-se nas “mãos de alguns” uma versão “bastante especializada e, às vezes, inaceitável da outra proposição” (Williams, 2011, p.43). Essa metáfora, no desenvolvimento do marxismo e em sua versão mais difundida, teria se consolidado como a proposição chave da análise cultural marxista. Acrescentar-se-ia a isso, uma noção de base ou modo de produção “uniforme”, “estática” e restrita, sinônimo de “economia”, o que em Marx apareceria de outra forma, não como “estado”, mas sim como “relação”. Williams comenta a possibilidade de “descoberta” de uma determinada “fase da produção”, mas chama atenção para seu caráter não estático, nem uniforme:
A “base” é a existência social real do homem. “A base” são as relações reais de produção que correspondem a uma fase do desenvolvimento das forças produtivas materiais. “A base” é um modo de produção em um determinado estágio de seu desenvolvimento. Tomamos e repetimos proposições desse tipo, mas o seu uso é bastante divergente da ênfase de Marx nas atividades produtivas em relações estruturais específicas que constituem o alicerce de todas as outras atividades. Pois enquanto uma determinada fase do desenvolvimento da produção pode ser descoberta e especificada por meio da análise, ela nunca é, na prática, uniforme e estática. (Williams, 2011, p.46-7).
O crítico literário argumenta ainda o sentido que “superestrutura” adquiriu após Marx como “área unitária” na qual as atividades culturais e ideológicas podem ser colocadas. Nesse sentido, com base nas cartas de Engels e Marx e outros escritos, conformar-se-ia a noção de um “reflexo” como “imitação” ou “reprodução” da realidade da base na superestrutura, o que não deixaria de ser, para Williams, uma visão apoiada nas noções positivistas de “reflexo” e de “reprodução”.
Para o crítico, no desenvolvimento dos debates sobre o “reflexo”, tendo em vista que “base” e “estrutura” não se mostram sempre em conformidade, uma primeira “qualificação operacional” se daria, tanto junto à ideia de “defasagens” – atrasos entre superestrutura e estrutura -, como pela noção do “indireto” - quando certas atividades, como a filosofia, estão a uma maior distância da atividade econômica. Esses usos seriam substituídos pela noção moderna de “mediação” e “estruturas homólogas”, as quais se afastariam da ideia de similaridade, reflexo ou reprodução direta de uma “base”, preferindo-se falar em homologia ou correspondências essenciais entre estruturas, passíveis de serem descobertas pela análise. (Williams, 2011, p.45-6).
Diante dessas ideias, o crítico literário propõe que se observe a “determinação” como “limites e pressões”, além da revisão das noções restritivas de superestrutura e base, como comenta:
Temos de reavaliar a “determinação” para a fixação de limites e o exercício de pressões, afastando-a de um conteúdo previsto, prefigurado e controlado. Temos de reavaliar a “superestrutura” em direção a uma gama de práticas culturais relacionadas, afastando-a de um conteúdo refletido, reproduzido ou especificamente dependente. E, fundamentalmente, temos de reavaliar “a base”, afastando-a da noção de uma abstração econômica e tecnológica fixa e aproximando-a das atividades específicas de homens em relações sociais e econômicas reais, atividades que contêm contradições e variações fundamentais e, portanto, encontram-se sempre num estado de processo dinâmico. (Williams, 2011, p. 47).
Se Williams argumenta a necessidade de reavaliação da “superestrutura” como uma “gama de práticas culturais relacionadas”, é interessante observar sua compreensão sobre o que seria a arte e a cultura. Nesse sentido, em sua Palavras- chave: um vocabulário de cultura e sociedade (2007), ao observar o processo de desenvolvimento da palavra “cultura” em diversas línguas europeias, o marxista britânico atenta para sua definição como “obras” (i), como “práticas da atividade intelectual” (ii), e um terceiro sentido moderno, o qual seria:
(iii) o substantivo independente e abstrato que descreve as obras e as práticas da atividade intelectual e, particularmente, artística. (…) É difícil datá-lo com precisão porque é, na origem, uma forma aplicada do sentido (i): aplicou-se e transferiu-se a ideia de um processo geral de desenvolvimento intelectual, espiritual e estético às obras e práticas que o representam e sustentam. (Williams, 2007, p.121).
Assim, Williams aponta que no bojo das (re)definições de cultura, se desvinculou “práticas”, “objetos”, “modos de vida” e a totalidade da vida social. Nesse sentido, já desde o início de sua trajetória intelectual, o crítico observava a diferença no uso do termo cultura, termo referente a “arte” de forma restritiva – peças dramatúrgicas, literatura, etc. –, mas também a “um modo de vida”, campos inter- relacionados. O crítico definia a questão em debate na revista Essays in Criticism no ano de 1959:
“Cultura” = “modo de vida” e “cultura” = “arte” não representam alternativas antagônicas. Não importa o quanto isso seja difícil de entender de forma detalhada, a arte é parte do modo de vida, e o artista individual tem, anterior e interiormente, uma parcela importante de experiência social sem a qual ele não pode nem começar. [...] O valor de uma obra de arte, assim como do indivíduo, está na integração específica que é tanto uma seleção quanto uma resposta à complexidade da organização da vida, sem o que a arte não poderia ser comunicada e o indivíduo não poderia ter alcançado sua individualidade consciente. (Williams, apud Cevasco, 2001).
Dessa forma, ao conectar “arte” e “modo de vida”, Williams aponta a relação entre a criação de “objetos artísticos” e as formas de pensar e agir existentes no interior da sociedade. Ademais, seu apontamento sobre a experiência anterior e interior do artista confere historicidade à experiência dos indivíduos, e ecoa a passagem de O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte, na qual Marx afirma que a história é feita pelos homens - e mulheres -, mas sob circunstâncias transmitidas (Marx, 2011b, p. 25).
A crítica de Williams sobre a desvinculação entre práticas, obras e sociedade deve ser observada ainda em seu embate junto à teoria literária de I. A. Richards e a Nova Crítica. Nesse embate, o crítico afirma a necessidade de superar as “teorias do consumo”, como a do “gosto” e da “sensibilidade”, as quais observam a literatura e a arte como um “objeto em si mesmo”, isolando-o e pensando seu impacto ao leitor e ao crítico. Em outro sentido, argumenta que a observação de obras artísticas não pode ser feita descolada da crítica de suas convenções específicas e de seu entendimento como “atividade” e “prática”, afirmando:
A relação entre a feitura de uma obra de arte e sua recepção é sempre ativa e sujeita a convenções que são, elas mesmas, formas (em transformação) de organização social e de relacionamento, algo radicalmente distinto da produção e consumo de um objeto. Trata-se de uma atividade e de uma prática que, em suas formas disponíveis – embora possam, em algumas artes, ter o caráter de um objeto material
-, ainda são acessíveis apenas por meio da percepção e da interpretação ativa. [...] Quando nos vemos analisando uma obra particular, ou um grupo de obras, com frequência percebendo a da comunidade essencial de que faz parte e sua individualidade irredutível, devemos primeiros nos voltar para a realidade da sua prática e para as condições da prática tal como foi realizada. (Williams, 2011, p.66-7).
Williams acrescenta ainda que, deve-se fugir do perigo de partir dos “componentes”, identificar certo “gênero” e buscar seus componentes na história social específica, ou pior, entender os componentes como categorias constantes da mente. Em outro sentido, a busca deveria ser analisar um “modo coletivo” e os “projetos individuais” como “duas formas de um mesmo processo”, que em ambas as direções são uma “relação ativa complexa e em transformação”, não havendo um processo interno de caráter fixo de um objeto, sendo que:
o que estamos ativamente buscando é a prática efetiva que foi alienada em um objeto e as verdadeiras condições dessa prática – seja como convenção literária, seja como relações sociais – que foram alienadas em seus componentes ou em meros pano de fundo. (Williams, 2011, p. 67).
Imbuído da crítica ao caráter estático da metáfora “base x estrutura”, observando a arte e a cultura como “prática” e buscando relacionar os “modos coletivos” e os “projetos individuais”, Williams lançará mão da ideia de “estrutura de sentimento” para analisar a relação sociedade e cultura. Se esse termo aparece desde os trabalhos iniciais do crítico, é certo que ele se desenvolveu e articulou-se com outros conceitos nas análises literárias e (re)definições teóricas de Williams. Cevasco (2001, p.151) toma o surgimento de tal termo a partir do trabalho Preface to Film10, seguindo o apontamento do trabalho de Middleton (1989)11. Também corrobora esses
10 WILLIAMS, R; ORROM, M. Preface to Film. Londres: Film Drama Ltd, 1954.
11 MIDDLETON, P. Why Structure Feeling? News from Nowhere, n.6, p.50-57, 1989.
apontamentos Filmer12 (2009) que define ainda três fases para o termo: suas formulações iniciais e “aplicações prematuras” que se sustentam mais dão sensação de “tentativa e hesitação” (Williams; Orrom, 1954 e Williams, 1961); o momento de debate com a “totalidade” em Lukács e o reconhecimento/diferenciação com a ideia de “homologia estrutural” presente no “estruturalismo genético” de L. Goldmann (Williams, 2011, p.15-4213); por fim, a consolidação e revisão do termo presente em Marxismo e Literatura (1977) integrado agora ao conceito de hegemonia em Gramsci. Contribuindo ao debate, Oliveira (2016, p.59) alerta que Williams utiliza o termo “estrutura de sentimento” para desfazer compreensões equivocadas sobre a relação “base e superestrutura” em Marx. Primeiramente, em Cultura e Sociedade (1958), o crítico literário visita os “romances industriais” do século XIX capturando a “estrutura de sentimento” como um “espírito do processo” de resposta ao período da revolução industrial. Já em The Long Revolution (1961) uma definição mais clara emerge: “Em certo sentido, estrutura de sentimento é a cultura de um período: é o resultado da vida particular de todos os elementos em uma organização geral.” (Williams apud Oliveira, 2016, p.78). O termo seria utilizado nas análises literárias e sociológicas dos anos seguintes, sustentando um princípio metodológico e teórico que busca compreender as formas estéticas e literárias no interior de sentimentos compartilhados, forjados junto as mudanças amplas da organização social com o desenvolvimento das
relações capitalistas no século XIX.
Consensual aos comentadores da obra de Williams, é o momento de “maturidade” do termo “estrutura de sentimento”, presente em Marxismo e Literatura (1977). Nessa obra, o crítico afirma “estrutura de sentimento” como uma “hipótese cultural”, a qual busca compreender “significados e valores tal como são vividos e sentidos ativamente”, a partir de uma “geração ou período”. Argumentando fugir de ideias formais e sistemáticas como “visão de mundo” ou “ideologia” – referência à Goldmann, entre outros autores -, a “estrutura de sentimento” diz respeito a:
12 FILMER, P. A estrutura do sentimento e das formações socioculturais: o sentido de literatura e de experiência para a sociologia da cultura de Raymon Williams. Estudos de Sociologia, Araraquara, v.14, n.27, p.371-396, 2009.
13 Filmer refere-se ao artigo Literature and Sociology (New Left Review, v. 82, nov./dez. 1973) que foi
reproduzido na coletânea Problems in materialism and culture: selected essays (London: Verso, 1980) traduzida ao português em Cultura e Materialismo (São Paulo: Editora Unesp, 2011).
[...] elementos especificamente afetivos da consciência e das relações, e não de sentimento em contraposição ao pensamento, mas de pensamento tal como sentido e de sentimento tal como pensado: a consciência prática de um tipo presente, numa continuidade viva e inter-relacionada. Estamos então definindo esses elementos como uma “estrutura”: como uma série, com relações internas específicas, ao mesmo tempo engrenadas e em tensão. Não obstante, estamos também definindo uma experiência social que está ainda em processo, com frequência ainda não reconhecida como social, mas como privada, idiossincrática, e mesmo isoladora, mas que na análise (e raramente de outro modo) tem suas características emergentes, relacionadoras e dominantes, e na verdade suas hierarquias específicas. Essas são, com frequência, mais reconhecíveis numa fase posterior, quando foram (como ocorre muitas vezes) formalizadas, classificadas e em muitos casos incorporadas às instituições e formações. (Williams, 1979, p.134-5).
A “estrutura de sentimento” poderia ser observada na evidência de formas e convenções literárias e artísticas – “figuras semânticas” – que seriam, com frequência, os primeiros indícios da formação de uma nova estrutura (Williams, 1979, p.135). Ela não se colocaria de forma clara a quem está vivendo os “limites e pressões”, se tratando de uma experiência social “em processo”, observada a posteriori como própria a uma “geração”. Além disso, a “estrutura de sentimento” surgiria inicialmente de forma “emergente” e em “soluções”, podendo “precipitar-se” e tornar-se dominante, e com o passar do tempo, vir a ser “residual”, sendo que:
As formações efetivas da maior parte da arte presente se relacionam com formações sociais já manifestas, dominantes ou residuais, sendo principalmente com as formações emergentes (...) que a estrutura de sentimento, como solução, se relaciona. (Williams, 1979, p. 136).
Logo, “estrutura de sentimento” não trata de uma dimensão restritivamente individual e subjetiva, mas se relaciona com a experiência histórica específica de uma geração ou de um período. A compreensão dela advém da observação empírica de obras artísticas, intelectuais e práticas culturais, e a construção teórica sobre suas formas e convenções, as quais devem ser observadas conjuntamente aos “limites e pressões” vividos em certo momento histórico de forma ativa pelos sujeitos. Nesse sentido, as estruturas de sentimento estão envoltas sempre em uma formação social prévia, mas ao mesmo tempo, em processo, no qual a hegemonia opera conformando um “senso de realidade absoluto”, tanto sobre formações sociais “residuais” como nas que “emergem”, passíveis de incorporações e rearranjos, desde que não contradigam a cultura dominante, como comenta Cevasco (2001, p.158-9):
A estrutura de sentimento é então uma resposta a mudanças determinadas na organização social, é a articulação do emergente, do que escapa à força acachapante da hegemonia, que certamente trabalha sobre o emergente nos processos de incorporação, através dos quais transforma muitas de suas articulações para manter a centralidade de sua dominação.
Em relação ao uso do conceito “estrutura de sentimento” em trabalhos acadêmicos no Brasil, é possível observar que atualmente seus usos se dão em abordagens diversas e ecléticas e, no geral, não apresentam um escopo robusto de análise de obras literárias ou artísticas14. Exceção a isso são os trabalhos do sociólogo Marcelo Ridenti (2014), o qual, dialogando com Michael Löwy e Robert Sayre, analisa inúmeras obras artísticas e o debate crítico e cultural da época, e lança a tese da emergência de uma “estrutura de sentimento romântico revolucionária” nos setores progressistas e de esquerda no Brasil dos anos de 1960.
Também como exceção, e em diálogo com os trabalhos de Ridenti, defendo em minha tese de doutorado (Velden, 2022), a partir de análises estéticas e farta documentação, a emergência e o refluxo do “romantismo revolucionário” no cinema brasileiro no decorrer da década de 1960 e 1970. Nesse trabalho, também lanço a tese da emergência de uma nova “estrutura de sentimento”, após os anos 2000, nos setores progressistas e de esquerda, a qual denomino “ética-cidadã”. Essa estrutura emergente tem como centro a busca de “justiça social e simbólica” para a classe trabalhadora e os subalternos, em uma conjuntura de lutas e movimentos “contra- hegemônicos” apaziguados e domesticados, em um contexto neoliberal, no interior da “democracia representativa burguesa” e sem projetos alternativos a ela.
Como busquei demonstrar ao longo desse artigo, tanto as obras basilares de Karl Marx e Friedrich Engels, como as contribuições de György Lukács e Raymond Williams, nunca observaram as artes ou a cultura como um reflexo unívoco e
14 Cf. SOARES, E. V. Literatura e estruturas de sentimentos: fluxos entre Brasil e África. Revista Sociedade e Estado. v.26, n.2 mai./ago. 2011; GAJANIGO, Paulo. Delicadeza e conflito na música: Los Hermanos e outras ressonâncias. ALCEU. v. 16, n.32, p. 136-152, jan./jun. 2016; GOMES, Itania Maria Mota; ANTUNES, Elton. Repensar a comunicação com Raymond Williams: estrutura de sentimento, tecnocultura e paisagens afetivas. Galáxia. Especial 1 - Comunicação e Historicidades. p. 8-21, 2019; MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adelia. Raymond Williams e “estruturas de sentimentos”: os afetos como criatividade social. Resgate - Revista Interdisciplinar de Cultura. v. 28, p. 1-22, 2020; STEFFEN, Lauren; FILHO, Flavi Ferreira Lisboa. O discurso jornalístico e as estruturas de sentimento: relações e tensões de sentidos. Logos 47. v.24, n.2, 2017. De LACERDA VILAÇO, Fabiana. Pandemia e a nova (?) estrutura de sentimento: uma reflexão baseada em Kim Stanley Robinson e Raymond Williams. Revista X, n.17 p. v.4, p.1328–1340, 2002.
necessário de uma base. Central no pensamento desses autores é a compreensão da relação dialética entre o campo das “representações sociais” e dos “objetos artísticos e culturais”, com as formas como a humanidade produz e reproduz suas formas de vida. Nesse sentido, os autores buscam observar a sociedade como “síntese de múltiplas determinações”, sendo a cultura e a arte - atividades e práticas humanas ativas e criativas - parte dessa totalidade. Nesse sentido, o que houve de mais interessante no “marxismo cultural”, esteve distante de um “determinismo economicista”, perigo advertido em Engels, como na passagem já exposta: “o fator que em última instância determina a história é a produção e a reprodução da vida. [...] Se alguém o tergiversa, fazendo do fator econômico o único determinante, converte esta tese numa frase vazia, abstrata, absurda.” (Marx; Engels, 2010, p.103-4).
Além disso, se no campo da estética marxista há elaborações que incorrem em uma “teoria do reflexo”, a qual localiza, de forma estática, uma base, sobre a qual se ergue uma superestrutura “necessária”, a breve passagem pelo pensamento dos autores em questão demonstra não ser fácil essa caricatura sobre esses. Mesmo quando se debate nos termos da “teoria do reflexo” – como parte dos trabalhos de Lukács visitados aqui –, a arte e a cultura, como parte do “processo total” de desenvolvimento da humanidade, só se concretizam em uma “intrincada trama de interações”, não sendo possível observar esses campos como “reflexos fotográficos” de uma suposta base estática. Como demonstrado também, o pensamento do filósofo húngaro se distancia do “reflexionismo” para ganhar contornos ontológicos e de complexidade filosófica e vigor em sua monumental Estética.
Por fim, visitando o itinerário e as elaborações de Williams, demonstramos como tal autor contribuiu decisivamente na crítica de uma observação estática da relação sociedade e cultura, apontando a cultura como “prática” e a arte como “objeto” e “prática”, assim como legando a possibilidade teórica analítica da “estrutura de sentimento”.
Na brevidade deste artigo, e nas trilhas do “marxismo cultural” como posto por Iná Camargo Costa, espera-se ter contribuído, nos termos próprios ao materialismo dos autores, com o que vem a ser a cultura e a arte, e qual a relação dialética dessas com a sociedade. Em outro sentido, infelizmente, o atual cenário de crise estrutural e sistêmica do capital vem acompanhado de ofensivas políticas e ideologias conservadoras e reacionárias, as quais agitam mentiras e falsificações sobre
processos históricos, assim como negam o pensamento crítico e as evidências no campo das ciências naturais e humanas quando lhes convêm. Tais discursos buscam neutralizar a contribuição do marxismo sobre a relação “arte-cultura-ideologia e sociedade” e, também, sua crítica radical aos desafios postos à humanidade atualmente, como a crise social global, a emergência climática e o aumento das tensões geopolíticas.
Muitas vezes desqualificado como reducionismo econômico ou autoritarismo político, o marxismo continua sendo deslegitimado por aparelhos ideológicos comprometidos com a reprodução da ordem vigente. Ao percorrer os caminhos do que se convencionou chamar de “marxismo cultural”, esta reflexão buscou reafirmar a relevância e a atualidade da crítica cultural materialista como instrumento para desvelar as determinações históricas e sociais que moldam nossas formas de vida.
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