V.23, nº 51 - 2025 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X


Dissertação de mestrado1


HEIN, Renata Masini2. O cinema documental de Sara Gómez à luz de uma análise feminista. 2025. 175f. Dissertação (Mestrado em Cinema e Audiovisual) – UFF, Niterói.

Resumo expandido


A dissertação O cinema documental de Sara Gómez à luz de uma análise feminista, realizada no Programa de Pós-graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense (PPGCine-UFF), com orientação da professora Drª Marina Cavalcanti Tedesco, é a nossa contribuição ao atual esforço coletivo e feminista de reconhecer, diante do profundo apagamento histórico, a presença de mulheres no cinema latino-americano.3 Neste trabalho, buscamos jogar luz à filmografia documental da cineasta afro-cubana Sara Gómez (1942-1974), compreendendo-a em seu contexto de produção. Defendemos que, mesmo à margem da historiografia consagrada, a diretora desenvolveu um pensamento próprio e crítico de cinema, tendo em vista o documentário revolucionário cubano e o Nuevo Cine Latinoamericano (NCL).

Sara Gómez nasceu em 1942, em Havana, em uma família de classe média negra. De sua bibliografia, neste resumo, destacamos a sua formação no I Seminario de Etnología y Folklore, entre novembro de 1960 e maio de 1961, o qual propunha, a partir da recuperação da forte tradição da ilha em estudos do seu folclore4 e de uma renovação metodológica, que tivesse a sua base no materialismo histórico-dialético, que os integrantes investigassem as transformações no próprio


1Resumo expandido da dissertação recebido em 29/03/2025. Aprovado pelas editoras em 16/07/2025. Publicado em 06/08/2025. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i51.67177.

2Doutoranda em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro - Brasil. Email: renata.m.hein@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7038872152298329.

ORCID: https://orcid.org/0009-0008-4018-9908.

3O empenho se evidencia pelo número crescente de pesquisas sobre o cinema de cineastas mulheres latino-americanas. Trazemos, como exemplos, as publicações de Karla Holanda e Marina Tedesco (2017) e de Isabel Seguí (2018), as quais propõem análises de fôlego sobre a presença das mulheres no cinema brasileiro e andino, respectivamente.

4Fernando Ortiz, Lydia Cabrera e Romulo Lachatañeré são importantes referências dessa tradição.

presente, momento no qual se enfrentava a complexa tarefa de construir uma nova sociedade. O curso foi determinante para Sara Gómez: ao inseri-la no campo da antropologia e da etnografia, ofereceu-lhe algumas das bases teórico-práticas por meio das quais realizaria o seu cinema (Yero 2017).

Também ressaltamos que a cineasta, a partir de agosto de 1961 até a sua morte, em junho de 1974,5 trabalhou como cineasta no Instituto Cubano del Arte e Indústria Cinematográficos (ICAIC), onde desenvolveu uma prolífica carreira: realizou, como diretora, 17 curtas e médias-metragens documentais e um longa-metragem de ficção.6 Já em seus primeiros filmes como diretora, percebemos a sua contribuição para a construção da linguagem do documentário revolucionário cubano (Tedesco, 2019). Sara Gómez é considerada a primeira mulher cubana a dirigir um filme na ilha e, até onde a historiografia alcança, a primeira mulher negra a dirigir um filme na América Latina.

Apesar de todas as suas contribuições e do seu pioneirismo, a diretora não teve, em vida, o reconhecimento que merecia: de acordo com Olga García Yero (2017), nenhuma de suas películas foi enviada para qualquer festival de cinema e, de suas obras, nenhuma recebeu, pela crítica de cinema cubana, uma análise aprofundada, apenas breves menções. Além disso, várias de suas obras não foram exibidas na ilha em seu tempo. Nesse sentido, é importante enfatizar que o cinema da cineasta tocava em questões bastante polêmicas no período, sobretudo em relação à presença do racismo e do machismo na ilha, indo na contramão do discurso oficial de que essas opressões não existiam mais em Cuba.7

Entendemos que Sara Gómez, ao apresentar, em toda a sua filmografia, as difíceis contradições do processo revolucionário em curso, não tinha outro objetivo a não ser fazer com que o socialismo avançasse. Em outras palavras: compreendemos que a diretora, ao sondar e buscar entender o seu presente histórico, apresentando suas complexidades e impasses, visava jogar luz a alguns problemas inadiáveis, os quais precisavam ser verdadeiramente encarados para


5A cineasta morreu devido a uma forte crise de asma.

6Por ser um formato de maior destaque e prestígio, o seu único longa-metragem de ficção, o filme De cierta manera (1974/1977), é a sua película mais estudada no Brasil. Assim, de forma a contribuir com os estudos sobre a Sara Gómez em nosso país, nos debruçamos sobre todos os seus curtas e médias-metragens documentais, realizados entre 1962 e 1973.

7Na Segunda Declaração de Havana, em 1962, Fidel Castro afirmou que as discriminações por raça e sexo haviam sido eliminadas em Cuba. Segundo a bibliografia especializada, tal afirmação fez com que essas questões fossem silenciadas na ilha (MIGLIOLI; COELHO, 2021).

serem superados.8 Além disso, a nosso ver, o posicionamento crítico de Sara Gómez também acabava por humanizar o socialismo cubano, distanciando-se de discursos triunfalistas e heróicos, e nos convidando, a todo instante, para o cotidiano das pessoas comuns, o qual, dialeticamente, era o que (e quem) construía a Revolução.

Neste trabalho, nós também reivindicamos uma perspectiva feminista – e buscamos jogar luz a como entendemos que a diretora escolheu retratar as determinações sociais de gênero, raça e classe em sua filmografia. É importante apontar, porém, que a cineasta – assim como tantas mulheres de seu tempo – nunca se reconheceu como feminista, uma vez que o feminismo era visto pela esquerda com desconfiança. Portanto, ressaltamos que é o nosso olhar para o seu cinema que é feminista, e não o seu cinema em si. Com isso, queremos dizer que buscamos compreender de que forma gênero, raça e classe formam um todo em sua obra a partir das reflexões do seu próprio tempo histórico, sem cairmos em algumas análises que assumem o cinema da diretora como se ele estivesse à frente de seu tempo. A nosso ver, Sara Gómez esteve e produziu a sua obra no mais profundo comprometimento com o seu presente histórico – e a sua pertinência, ainda hoje, é graças a isso.

A dissertação é dividida em três capítulos. No primeiro, intitulado Breve contextualização sobre Cuba e a América Latina durante as décadas de 1960 e 1970, buscamos apresentar alguns aspectos que consideramos importantes para, nos capítulos seguintes, mergulharmos na obra da diretora. Assim, apresentamos três principais pontos: primeiro, o que é o ICAIC e como ele foi palco de importantes polêmicas para a definição do papel revolucionário da arte e do artista/intelectual na ilha socialista; segundo, o que é a Federación de Mujeres Cubanas (FMC) e como podemos entender o tratamento dado às questões das mulheres em Cuba nos anos 1960 e 1970; terceiro, o que foi o NCL e quais foram os fatores objetivos e subjetivos que levaram à exclusão das mulheres da história e do cânone desse importantíssimo movimento cinematográfico subcontinental (TEDESCO, 2020).

No segundo capítulo, denominado Os primeiros 10 anos da carreira de Sara Gómez (1962-1971), analisamos toda a filmografia da diretora realizada no período


8Vale também mencionar que esses problemas levantados por ela eram relevantes por serem concretos, por afetarem, de distintas maneiras, a forma como as pessoas viviam e produziam as suas subjetividades, dependendo de sua posição social.

mencionado, localizando-a no contexto de importantes debates no campo político-cultural cubano. Afirmamos que Sara Gómez nunca esteve à margem das discussões e polêmicas, posicionando-se por meio de seus filmes e de outros documentos assinados por ela. Também enfatizamos e examinamos a importância da obra de Frantz Fanon para o cinema da diretora: tendo em vista também as discussões sobre Homem Novo na ilha, Sara Gómez se importou com os processos de transformação de consciência dos indivíduos frente à Revolução em curso, compreendendo-os em sua complexidade. Em toda a sua obra, a diretora apresentou a diversidade do povo cubano, chamando a atenção para a contribuição negra na formação da cultura e da identidade nacional.

No terceiro capítulo, chamado A mirada de Sara Gómez para o gênero, analisamos os seus documentários restantes, realizados em 1972 e 1973, focando em Mi aporte (1972). Encomendado pela FMC para falar sobre a inserção da mulher no trabalho remunerado, o filme faz justamente o contrário, e nos apresenta os fatores objetivos e subjetivos que impediam essa incorporação, jogando luz ao trabalho reprodutivo realizado pelas mulheres no interior de seus lares. Em nossa análise fílmica, trazemos tanto o pensamento de Isabel Larguía e John Dumoulin, intelectuais pioneiros que pensaram, em Cuba, sobre a opressão da mulher à luz da lei do valor marxiana, quanto outros filmes do NCL, buscando mostrar possíveis diálogos com o cinema da Sara Gómez. Em Mi aporte, a diretora também apresenta as mulheres a partir de sua diversidade.

Concluímos que os principais aportes da cineasta foram: a sua abordagem sociológica e antropológica de cinema, preocupada com a análise de seu presente histórico sem abrir mão de experimentações de linguagem; a sua concepção de que a classe trabalhadora não existe de forma abstrata, mas que ela é, necessariamente, racializada e generificada – e que ter isso em conta é fundamental para o avanço do socialismo na ilha –; e o seu compromisso frente ao povo cubano e à Revolução, a partir de seu cinema fortemente humanista (Yero, 2017).


Referências


HOLANDA, K; TEDESCO, M. Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro. Campinas: Papirus Editora, 2017.

MIGLIOLI, A; COELHO, S. de C. Racismo e Revolução Cubana: contribuições para um debate marxista. Cadernos Cemarx, n.14, p. 1-19, 2021.

SEGUÍ, I. Auteurism, machismo-leninismo and other issues: women's labor in Andean Oppositional Film Production. Feminist Media Histories, v.4, n.1, p.11-36, 2018.

TEDESCO, M. C. A contribuição de Sara Gómez para a linguagem do documentário cubano pós-Revolução de 1959: uma análise de Historia de la piratería. Doc On-line, p.104-119, 2019.

TEDESCO, M. C. Nuevo Cine Latinoamericano: uma análise do cânone a partir do gênero. Aletria, v.30, n.3, p.39-62, 2020.

YERO, O. G. Sara Gómez: un cine diferente. La Habana: Ediciones ICAIC, 2017.