V.23, nº 51 - 2025 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
FOTOGRAFIA COMO ARTE E COMO FONTE DE PESQUISA: UMA INTRODUÇÃO AO TEMA1
Maria Ciavatta2 Maria Augusta Martiarena3
O fazer historiográfico, como o de todas as ciências, é um constante apelo a todo conhecimento acumulado, às evidências postas à luz da crítica das categorias e de conceitos que ordenam o mundo do conhecimento. Nesta segunda década do século XXI, a fotografia torna-se protagonista, tantas são as informações trazidas pelas artes e por toda manipulação digital das imagens visuais e sonoras. Dividimos o texto em três partes: primeiro, o objeto fotográfico, a memória e a verdade; depois, a fotografia como arte; a seguir, a fotografia como fonte de pesquisa e nossas considerações finais.
La labor historiográfica, como toda ciencia, es una apelación constante a todo el conocimiento acumulado, a las evidencias puestas a la luz de la crítica de las categorías y conceptos que ordenan el mundo del conocimiento. En esta segunda década del siglo XXI la fotografía pasa a ser protagonista, con tanta información aportada por las artes y por toda manipulación digital de imágenes visuales y sonoras. Dividimos el texto en tres partes: primero, el objeto fotográfico, la memoria y la verdad; luego, la fotografía como arte; a continuación, la fotografía como fuente deinvestigación y nuestras consideraciones finales.
Historiographical work, like all sciences, is a constant appeal to all accumulated knowledge, to evidence placed in the light of criticism of the categories and concepts that order the world of knowledge. In this second decade of the 21st century, photography has become a protagonist, given the amount of information brought by the arts and by all the digital manipulation of visual and sound images. We have divided the text into three parts: first, the photographic object, memory and truth; then, photography as art; then, photography as a source of research and our final considerations.
1Artigo recebido em 07/04/2025. Primeira Avaliação em 15/05/2025. Segunda Avaliação em 13/06/2025. Aprovado em 19/07/2025. Publicado em 06/08/2025. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i51.67287.
2Doutora em Ciências Humanas Educação Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) - Brasil.
Pós-doutorado na Universitá di Bologna (1995-96) - Itália e na Università di Roma (2017) - Itália; Professora Titular de Trabalho-Educação e Docente Sênior do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro - Brasil. Email: maria.ciavatta@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5368554854684382. ORCID: https://orcid.org/0000.0001.5854.6063.
3 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Rio grande do Sul - Brasil. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul - Brasil.
Email: augusta.martiarena@osorio.ifrs.edu.br. Lattes: https://lattes.cnpq.br/5041314532505554. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1118-3573.
O fazer historiográfico, como o de todas as ciências, é um constante apelo a todo conhecimento acumulado, às evidências postas à luz da crítica das categorias e de conceitos que ordenam o mundo do conhecimento. Nesta segunda década do século XXI, a fotografia torna-se protagonista em si mesma, tantas são as informações trazidas pelas artes plásticas e por toda manipulação digital das imagens visuais e sonoras que tem sido permitida pelo aperfeiçoamento técnico-científico dos meios de comunicação. (Ciavatta, 2023). Este texto busca sinalizar algumas questões que emergem das fotos como arte ou como fonte de pesquisa.
Há um halo de beleza e sedução que emana das imagens, principalmente, as fotográficas. Mesmo as mais cruéis atraem pelo que aproxima e distancia, cria admiração, atrai perdidamente pela beleza ou causa desconforto, repulsa, como mostra Susan Linfield (2010) no livro Cruel radience. A foto n. 1 revela os horrores cometidos no Congo Belga, na exploração de minérios. Havia metas de produção a serem cumpridas pelos trabalhadores africanos. Os castigos eram severos para quem não as cumpria, como mostra a fotografia. No livro “Coração das trevas”, Joseph Conrad (2011 - publicado originalmente, em 2002) denunciou o colonialismo no Congo no século XIX.
Fotografia n. 1
Fonte: Memuna Mansarah and her father; Murray Town Amputee Camp, Sierra Leone, 2000, photographer Candace Scharsu. In: LINFIELD, Susie. The Cruel Radience. Pjptography and cruel violence. Chicago and London: The University Chicago Press, 2010, p. 124.
O objeto fotográfico, a fotografia, arte ou fonte de pesquisa, documento ou monumento, é fruto de um conjunto de processos em que ciência, técnica e arte estão imbricados na criação de um mundo de possibilidades no domínio das imagens fotográficas, cinema ou vídeo. Neste texto, buscamos “a compreensão dessa porção da realidade muda e silenciosa, prenhe de significados” que emanam dos seres, ações e fenômenos da vida real, física, material e simbólica onde nos movemos (Ciavatta, 2002, p. 15).
Propomo-nos a refletir4 sobre dois campos nobres da produção humana, a arte e a ciência da história e suas fontes de pesquisa. Nas dimensões possíveis deste texto, iniciamos percorrendo alguns autores que tratam da fotografia e de seu estatuto como arte, técnica ou ciência.
O livro de Rouillé (2009) levanta questões importantes sobre a fotografia e sua relação com a arte. Talvez, a primeira e mais fundamental interrogação seja o estatuto ontológico da fotografia. Opondo-se a Roland Barthes e a outros autores que, na linha do paradigma indiciário de Peirce, veem a foto apenas como um índice, um sinal, uma representação abstrata do real, “Rouillé torna ubíqua a crítica à “indicialidade” que a reduz “ao seu dispositivo, a sua impressão luminosa” (Soares, 2010, p. 243).
O tratamento contextualizado da fotografia nos seus aspectos históricos revela uma complexidade que vai além da representação contida no objeto fotográfico. Nos limites deste texto, vamos tratar dos três aspectos destacados pela análise crítica de André Rouillé (2009): a redução da fotografia ao significado, “isto foi”; a negação de sua característica de memória de algo, alguém ou alguma coisa; e a relação da fotografia com a verdade.
Dividimos o texto em três partes: primeiro, o objeto fotográfico, a memória e a verdade; depois, a fotografia como arte, mediante alguns trabalhos teóricos sobre o tema; a seguir, a fotografia como fonte de pesquisa. Por fim, nossas considerações finais.
4 O texto faz parte do Projeto de Pesquisa “A fotografia em livros e artigos em periódicos especializados – Da História da Educação à História de Trabalho e Educação” (Proc. CNPq 313357/2022-6 coordenado por Maria Ciavatta); e do Projeto “História da Educação, da Educação Profissional e das relações Trabalho e Educação no Litoral norte do Rio Grande do Sul (séculos XIX, XX e XXI)”, coordenado por Maria Augusta Martiarena.
A fotografia é uma recriação da realidade, um simulacro que é e não é ao mesmo tempo o objeto real; a fotografia que dissimula, como conhecimento dissociado da experiência que redefine a própria realidade fotografada. Nas fotografias produzidas, buscamos a verdade dos fatos e nos encontramos com meras imagens da verdade, a aparência dos fatos, suas representações. Precisamos fazer a crítica interna das ideologias de legitimação de suas formas de apresentação; é necessário ir além do fragmento de realidade expresso na fotografia.
Kossoy aprofunda, em vários livros, a natureza social do objeto fotográfico. Em uma de suas análises diz sobre os tempos reais existentes em cada imagem criada:
Uma única fotografia e dois tempos: o tempo da criação, da primeira realidade, instante único da tomada de registro no passado, num determinado lugar e época, quando ocorre a gênese da fotografia; e o tempo da representação, o da segunda realidade, onde o elo imagético, codificado formal e culturalmente, persiste em sua trajetória de longa duração (Kossoy, 2007, p. 133).
A crítica de Rouillé (2009) ao pensamento indicial de Barthes, ocorre sobre a concepção da fotografia como apenas, ou basicamente, um indício da realidade, uma visão idealista do objeto fotográfico. Diferente do paradigma indicial de Charles Peirce6. Mas o objeto fotográfico possui uma materialidade própria, é produzido, manipulado, multiplicado, distribuído, preservado ou destruído. É fruto do trabalho humano, nos termos de Marx (1980), uma produção de valor de uso. Nos termos especificados por Lukács (1978), o trabalho nas duas acepções do materialismo histórico, pode ser valor de uso ou valor de troca.
Como valor de uso, ele compreende o trabalho como atividade ontológica, estruturante do ser social, como um valor intrínseco à vida humana e ao conhecimento, que ele proporciona para produzir os bens necessários à sobrevivência, para a criação artística, na relação com a natureza e na sociabilidade que se gera. É o trabalho como um princípio de cidadania, no sentido de participação
5 Esta seção recupera alguns aspectos da análise conduzida em “O mundo do trabalho em imagens” (Ciavatta, 2002).
6 O semiótico americano citado por Rouillé é PEIRCE, C. Écrits sur le signe. Paris: Seuil, 1978. “Seu propósito é recorrer à noção de rastro, como uma impressão digital, a fim de distinguir em essência, fotografia e desenho, este mais ligado ao ícone, a imitação; do outro, o registro, o índice, o rastro”. Pensamento que conduziu à abstração, ao essencialismo, ao idealismo. (Rouillé, 2009, p. 17).
legítima nos benefícios da riqueza social, que se distingue das formas históricas e alienantes do trabalho, como valor de troca, presente na produção capitalista.
Benjamin (1987, p. 174) reflete sobre a memória legada, quer tenha sido oral, escrita ou icônica (desenho, pintura, gravura, mapas) em séculos passados, em cópias únicas e de “valor de culto” como jóias, como os primeiros daguerreótipos. Na “era da reprodutibilidade técnica” da fotografia, passam a ter “valor de exposição”. Hoje, com muito mais reprodução tecnológica, seu valor de exposição pode ser valor de troca, simples mercadoria.
É importante tratar da concepção de Roland Barthes (1984), porque é um dos autores encontrados em muitos trabalhos sobre a fotografia no campo das ciências humanas, como a história da educação. É um autor clássico, no sentido de sua importância, particularmente, o livro Câmera clara (1984 – 1ª edição na França, em 1980), que o situa entre os primeiros e mais divulgados pensadores sobre a imagem fotográfica.
O pensamento de Barthes é sedutor, subjetivo, fenomenológico. “O nome do noema (νόημα = significado) da Fotografia será então “Isto foi”, ou ainda: o Intratável”. (...) em latim “Interfuit: isso que vejo encontrou-se lá, nesse lugar que se estende entre o sujeito e o infinito” [...] (Barthes, 1984, p. 115). Para Roland Barthes a fotografia é apenas um registro, “isto foi”, aconteceu. Por essa razão, seu pensamento deve ser alvo de nossa reflexão.
Kossoy (1989, p. 31) destaca em vários textos a condição de “resíduo do passado” que contém em si um fragmento da realidade registrado pela fotografia. Seus indícios são sua materialidade (assunto, fotógrafo, tecnologia), são constitutivos da imagem. Mas o registro visual, o que ele chama de “expressão”, obtido pelo olho humano com um aparelho analógico ou digital, constitui uma outra realidade, a “segunda realidade” como lembramos acima. Como outros resíduos do passado (documentos, obras de arte, objetos) a fotografia pode ser tornar uma fonte histórica, pode responder às questões do historiador na busca da memória e da história das múltiplas faces da trajetória humana no planeta.
Sobre a relação da fotografia com a memória, diz Barthes: “A fotografia não rememora o passado (não há nada de proustiano em uma foto). O efeito que ela produz em mim não é de restituir o que é abolido (pelo tempo, pela distância) mas o de atestar que o que vejo de fato existiu” (Barthes,1984, p. 123).
Um fato simples pode exemplificar nosso acordo com a crítica de Rouillé à negação da relação da fotografia com a memória. Descíamos a pé a Av. Presidente Vargas, rumo ao Centro do Rio de Janeiro. Havíamos saído do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (ACGR), falando das fotografias que havíamos visto para a pesquisa sobre os trabalhadores.7 De repente, a visão de um quiosque na calçada de uma daquelas ruas estreitas do Centro nos jogou em um sentimento perturbador... se o quiosque que víamos à nossa frente era real ou se era a força da memória da foto do quiosque antigo do Largo Santo Cristo, foto n. 2, que havíamos visto no AGCRJ. Passado e presente se misturavam na nossa mente, nos sentimentos da memória recente.
Fotografia n. 2
Fonte: “Largo do Santo Christo, kiosque e frequentadores”, Rio de Janeiro, 1911, fotógrafo Augusto Malta. In: CIAVATTA, M. O mundo do trabalho em imagens. A fotografia cono fonte histórica (Rio de Janeiro: 1900-1930). Rio de Janeiro: DP & A / FAPERJ, 2002, p. 22.
A imagem viva da memória da fotografia do quiosque preservada no AGCRJ era mais do que “isto foi” de Roland Barthes. Era uma imagem prenhe de história que haveríamos de desvelar indagando pelo seu tempo de existência do início do século
7 Maria Ciavatta e o bolsista de Iniciação Científica, hoje professor pesquisador, Dr. Hugo Belluco.
XX (1911) ao início do século XXI (anos 2000). Por eventos singulares como este, pela memória que testemunha situações transcorridas em tempos passados, Bodei (1995, p. 27) fala da memória e da esperança e pergunta: “O que foram, afinal, no longo período dos acontecimentos, as ideologias e crenças apagadas, as línguas mortas, as cidades desaparecidas, os povos exterminados?” De tudo que viveram não teria ficado nenhum traço, nenhum sinal apagado ou indecifrável?
Mauricio Lissovski (2008, p. 29) traz em sua análise o exemplo da transformação de imagens do colonialismo na Indonésia, na Austrália, que são apropriadas pelos descendentes para o conhecimento de seus ancestrais: “E o que eles começaram a ver nessas imagens não é mais a história da etnografia a serviço do colonialismo, ou os vestígios de práticas culturais desaparecidas, mas pessoas reais, seus próprios antepassados, suas famílias, seus avós e bisavós” .
Em qualquer um de seus estágios técnicos e estéticos, a fotografia tem uma articulação imanente subjetiva com a memória humana. “O olhar fixado no objeto fotográfico não é apenas uma característica do artefato, um aspecto do suporte que sustenta sua existência. Cada registro é parte de uma história e constitui ele próprio um princípio de memória “. (Ciavatta, 2002, p. 30).
O terceiro aspecto da crítica de Rouillé (2009) à concepção de Roland Barthes é a relação da fotografia com a verdade, objeto de nossa reflexão. Com a popularização das fotos de família, e sua semelhança com as pessoas fotografadas, da verossimilhança das imagens com os objetos reais, difundiu-se a inspiração positivista da ideia de uma cópia fiel, de uma neutralidade assegurada pela máquina fotográfica.
Kossoy (2000, p. 20) observa que desde seu surgimento até os dias atuais “a fotografia tem sido aceita e utilizada como prova definitiva, “testemunho da verdade” do fato ou dos fatos”. Exemplos abundantes existem na área jurídica, na fiscalização das leis de trânsito pelas câmaras. Mas cada época tem técnicas fotográficas diferentes que foram sendo aperfeiçoadas.
Rouillé (2009) argumenta que, na realidade não existe a relação binária entre o real e a imagem. Entre eles “sempre se interpõe uma série infinita de outras imagens, invisíveis, porém operantes, que se constituem em ordem visual, em prescrições icônicas, em esquemas estéticos.” (Soares, 2010, p. 246). A nosso ver, são as múltiplas mediações sociais, particularidades históricas que existem no objeto
real e são invisíveis na fotografia, mas se transformam nos escritos da luz pela seleção de aspectos do fotógrafo e a captação da técnica.
A aproximação com a realidade e seu reconhecimento coimo um saber verdadeiro continua gerando diferentes lógicas de construção do conhecimento. O pensamento de Barthes sobre a questão da fotografia como verdade já foi amplamente contestado, mas o sentimento de verdade que a fotografia provoca ainda atua impregnando o senso comum.
A ideia de verdade aplica-se aos diferentes objetos do conhecimento humano. Não nos deteremos no conceito de verdade absoluta que diz respeito a questões de fé ou crenças. Estas não são passíveis de contra-argumentos. Apoiamo-nos em Fontes (2001) que se detém no âmbito do universal, do que existe no campo da ciência, a exemplo da lei da gravidade. Em outras questões passiveis de interpretação, a aceitação da verdade liga-se às práticas sociais que podem ser atravessadas pela esfera do poder e da política. Tanto podem conduzir ao ceticismo de que não existe verdade, como ao relativismo, ao campo das opiniões, de que cada um tem a sua verdade.
Diferente da concepção que vê a fotografia como prova, pensamento amplamente difundido no senso comum e na área jurídica, concordamos com a crítica de Rouillé (2009) sobre a necessidade de uma visão contextualizada da fotografia, que é uma construção histórica, produzida pelo encontro do olhar do fotógrafo, suas ideologias e interesses, com a máquina analógica ou a comunicação digital. No mesmo sentido,
Oliveira (1994) crê que a “verdade empírica do processo fotográfico” ocorre não apenas por mediação físico-química, mas, principalmente, a partir de estratégias e convenções que regulam a produção e a recepção das imagens, através de formas de comunicação e de estética, codificadas social e historicamente” (apud Ciavatta, 2002, p. 28).
No campo da história, onde se situa nossa reflexão, a verdade depende da relação sujeito e objeto, das articulações sociais que ocorrem na produção da vida, na história como produção social da existência (Marx, 1979) que comporta o material e o simbólico.
Para Marx o acesso ao empírico se dá sempre tanto mediado pelas noções corriqueiras com as quais nos referimos a ele, o senso comum, como pelas modalidades precedentes de conhecimento científico (artístico, religioso, ideológico ou mesmo do tipo científico) que imprimem sentidos variados aos temas sociais (Fontes, 2001, p. 118).
Fontes (2001, p.120) conclui seu pensamento, dizendo que “Considerar a verdade como processo é admitir que tendemos a ela, mas que ela jamais está terminada. Significa também admitir que o contraditório exige discussão e debate, e não a imposição unilateral”.
Sobre este tema tão complexo e controverso, abordaremos alguns aspectos e autores que debatem questões sobre a fotografia como técnica, como arte, em sua relação com a beleza, como expressão de seu tempo histórico (Rouillé, 2009; Flores, 2005, Benjamin, 1987; Adams, 1995; Freund, 1995). André Rouillé (2009), desde o início de seu alentado livro, destaca as controvérsias que acompanham a fotografia, alvo de disputa para os artistas que apontavam a automação que viria competir com a arte, a pintura, as “belas artes”, a pintura de cavalete, a gravura, a escultura, a literatura, tão caras à intelectualidade francesa. Tudo se passa, basicamente, em solo francês, tanto a invenção de Daguerre em 1839, como o reconhecimento da invenção pelo Estado francês, quanto a crítica de pintores, poetas, intelectuais e a substantiva problematização de fotografia e arte, no século XX, feita por Rouillé (2009).8
O autor não se furta à discussão sobre a natureza da fotografia e os questionamentos que a cercaram desde o início. Sua posição se explicita e se reitera nos argumentos e na historicidade, como sintetiza Soares, para “permitir ao leitor tomar conhecimento não de uma ontologia da fotografia, mas sim de seu contexto histórico, social e de suas práticas” (Soares, 2010, p. 246).
Nas palavras do autor, apenas nos anos 1970, na França e no mundo ocidental, a fotografia adquiriu legitimidade cultural e artística. Foram inúmeras as atividades culturais, os estudos e pesquisas, os departamentos universitários, a coleções públicas e privadas, os museus e o “uso crescente de procedimentos fotográficos
8 André Rouillé é um” historiador e teórico francês da fotografia . É professor na Universidade Paris 8 , autor de um número significativo de livros sobre fotografia e arte contemporânea, e fundador e editor- chefe do Paris-Art , o primeiro site francês dedicado à cultura contemporânea”. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Andr%C3%A9_Rouill%C3%A9. Acesso em 26 de março de 2025.
pelos artistas, nascendo, assim, um mercado”. Foi um novo olhar para a fotografia que deixou de ser “simples ferramenta útil”. O caráter mecânico da fotografia serviu às necessidades da sociedade industrial no século XIX, “para documentá-la, servir-lhe de ferramenta e ser compatível com seus valores” (Rouillé, 2009, p. 15-16). Mas o autor reitera o tratamento da fotografia no contexto sociocultural dos artistas, refletindo sobre as transformações da arte contemporânea, traçando:
[...] uma linha histórica do uso da fotografia na arte em que passou de rejeitada, no período impressionista, para posteriormente tornar-se paradigma da arte, de ferramenta a vetor da arte. A união entre arte e fotografia, foi concretizada nos anos 1980, quando a fotografia deixa de ser apenas uma técnica útil e é reconhecida como arte, o que Rouillé chama de arte-fotografia. (Soares, 2010, p. 244).
Discute o que resume como a arte dos fotógrafos e a fotografia dos artistas, mostrando que são práticas distintas,
[...] tanto do ponto de vista técnico como do próprio universo em que elas se encontram. A arte dos fotógrafos está no campo da fotografia e significa um processo artístico dos fotógrafos, e a fotografia dos artistas, como já esclarece o nome, é o uso da prática fotográfica pelos artistas em resposta às indagações que surgem nesse meio (Soares, 2010, p, 245, grifos nossos).
Laura González Flores (2005, p. 17, grifos da autora), inicia sua exposição sobre fotografia e pintura, fazendo a distinção popularizada de que a pintura é manual e a fotografia é mecânica, depende da câmera. Os dicionários distinguem a pintura como a arte que “mediante linhas e cores representa sobre uma superfície as concepções do artista”. A fotografia é a “arte e ciência de obter imagens permanentes mediante substâncias que se transformam sob a ação da luz (brometo de prata etc.)” A autora conclui que são descrições técnicas, sobre o modo de fazer (Flores, 2005, p.18-19).
Entre os diversos aspectos da arte da pintura apresentada Flores (2005, p. 31- 32) em seu livro sobre o tema “Fotografia e pintura: dois meios diferentes?”, destacamos sua análise da “Visão objetiva” da pintura. Para a autora, da “visibilidade materializada na produção artística do século V a. C. ao início do presente século há um enorme abismo” que foi sendo construído ao longo dos séculos:
A ruptura da ruptura do cânon da “Visão objetiva” não foi repentina: ela se inicia com a introdução das visões subjetivas na filosofia e na ciência (...) Estas correntes subjetivas do pensamento – as primeiras que irrompem com alguma força no paradigma ocidental desde a Idade Antiga – chegarão a permear em maior ou menor medida em todas as áreas da produção intelectual e se materializarão na produção cultural do século XVIII (Flores, 2005, p.31-32).
Este não foi um fenômeno isolado. Seu impulso foi dado pelo romantismo, mas “a transgressão” ocorreu com a presença de outras forças sociais: o socialismo utópico, as revoluções de 1830 e 1848, a invenção da fotografia, a industrialização, “a concepção de arte em geral e, especificamente, erradicando os modos de representação visual dominantes por mais de vinte séculos”. (...) A “Visão objetiva” que era concebida como algo natural, passa a ser vista como produto da sociedade. Flores (2005, p. 33, aspas e grifos da autora) conclui que ainda hoje as imagens “realistas” são vistas como algo natural, de modo que “funcionam como apresentações e não como representações”.
Fotografia n. 3
Fonte: “Casal com cravo, sobre entalhe de Mudinho”, Cabo Frio, anos 1970. Fotógrafo Vicente Ciantar. Acervo Maria Ciavatta.
Trazemos a fotografia n. 3 porque expressa a arte do fotógrafo Vicente Ciantar sobre a arte do entalhe de um artista popular, dito Mudinho. O jogo de formas e de luz e sombras, revela o cuidado do artista em posicionar as duas figuras e criar com o cravo, oferecido pela mulher, uma relação amorosa entre os dois.
Flores (2005) percorre a história até a arte moderna. Sobre a fotografia, examina-se do ponto de vista da câmera, de ser uma imagem, em sua relação com a memória, como realidade construída. Destacamos algumas de suas ideias sobre a fotografia como arte. No século XIX, a função da fotografia era a cópia analógica. Qualquer desvio da função mimesis era criticado. A perfeição da cópia se deveria o grande sucesso do da técnica de Daguerre, a qualidade de “espelho da natureza”. Para Flores (2005, p. 156), teria sido
O primeiro fator – a perfeição analógico-mimética da realidade – se relaciona com os parâmetros filosóficos da Visão Objetiva, enquanto que o segundo fator – a necessidade de automatismo e de reprodutibilidade – se relaciona com a idiossincrasia da Revolução Industrial. Sobre a relação da fotografia com a arte, perguntava-se, como pode ser “artístico” algo produzido por uma máquina? Sua compreensão também era difícil por sua dupla qualidade reprodutiva: a possibilidade de fazer muitas cópias a partir de uma matriz; e a capacidade de reproduzir a realidade fotografada, criando uma imagem que a imita e que parece duplicá-la. Seu problema maior não era a quantidade infinita de cópias possíveis, nem saber qual era a cópia original para atribuir-lhe um valor. Era “cair, simultaneamente, em paradigmas epistemológicos na ciência e na arte” (Flores, 2005, p. 157).
O fato de associar-se a valores opostos, na ciência, por sua capacidade de ser documento e ser tecnologia; e na arte, por sua capacidade expressiva, criativa, trouxe à fotografia um problema ontológico: qual seria sua verdadeira essência, ciência ou arte?
O texto de Walter Benjamin (1987) “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” tem sido objeto de comentários de muitos autores, entre eles Flores (2005) que retoma argumentos de Adorno em alguns aspectos. Um deles é o que Adorno chama de otimismo:
[...]de seu determinismo tecnológico (graças à reprodutibilidade da imagem se amplia a capacidade de consumo popular). As técnicas de reprodução, sustentava Adorno, se desenvolveram dentro da estrutura capitalista, razão pela qual não é tão fácil desentranhá-las da idiossincrasia de produtividade e consumo (Flores, 2005, p. 159).
Se a história deu razão a Adorno, como destaca Flores em seu texto, podemos acrescentar que nos dias de hoje, a reprodutibilidade é um fato na disseminação do celular, no acesso a outros meios de informação visual pelo consumo popular. A questão não é simples. O acesso quase ilimitado às imagens fotográficas não parece ter trazido maior capacidade crítica aos segmentos populares carentes de
escolarização básica, enquanto são locupletados de imagens e informações falsas, mentirosas, falsificadas pelos recursos da Inteligência Artificial, pela liberdade de fotografar, exibir-se, falar sobre qualquer coisa que se torne vantajosa ou lucrativa.
Benjamin (1987, p. 165-170) também suscita debates sobre a aura da obra de arte que a fotografia não teria por sua reprodutibilidade técnica. A obra de arte sempre teve imitadores, mas a obra de arte tinha uma existência única, uma autenticidade, uma “aura” que desaparece com o processo da reprodução técnica em série. A aura da obra de arte é sua unicidade que é parte de uma tradição histórica.
Diz Benjamin (1987, p. 169) quando fala da destruição da aura: “O modo pelo qual se organiza a percepção humana, o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas também historicamente”. Na Grécia antiga, durante o Império Romano, na Europa onde viveu Benjamin, a aura das obras de arte está na expressão única de cada uma, que é objeto de culto. “Com a fotografia, o valor de culto começa a recuar, em todas as frentes, diante do valor da exposição”. O rosto humano seria “a última trincheira” do valor de culto que resiste em desaparecer (Benjamin, 1987, p. 174). Mas contesta Flores, a fotografia entrou nos museus:
Sem renunciar a sua dupla qualidade reprodutiva, isto é, ser reproduzível (multiplicar-se) e servir para a reprodução (para a cópia imitativa), a fotografia acomodou-se à possibilidade de ser artística [...] adquiriu aura, aquele valor de objeto único e irrepetível dos objetos históricos (Flores, 2005, p. 159-160).
Tratando de fotografia e arte, duas questões ainda merecem nossa atenção, sua relação com a beleza e com a sociedade. O livro “La belezza en fotografia” do fotógrafo Robert Adams (1995, p. 13), trata da fotografia como expressão de vida e, se abstendo de reflexões filosóficas sobre a beleza, diz que seu livro “é uma tentativa de definir a beleza em relação com a fotografia”.
Pensa que o trabalho do fotógrafo “não está em catalogar certos fatos, mas de buscar ser coerente na intuição e na esperança, o que não significa que não esteja interessado na verdade”. Admite que a beleza é a verdadeira finalidade da arte: “a beleza que o [fotógrafo] interessa é a beleza da forma, sinônimo da coerência e da estrutura implícita na vida”. É a estrutura que se encontra nas tragédias de Sófocles, de Shakespeare, nos romances de Joyce, na pintura de Cézanne, Matisse, na fotografia de Timothy O`Sullivan, Alfred Stieglitz, Edward Weston, Dorothea Lange (Adams, 1995, p. 14).
Sem abrir mão da técnica apurada de suas fotos de mestre da fotografia, Adams (1995, p.14-15) fala como um humanista: “Por que a forma é bela? Porque – eu penso-nos ajuda a enfrentar nosso medo maior, o temor que a vida não seja um caos e que nosso sofrimento não tenha sentido”. E continua com um pensamento subjetivo sobre a objetividade possível de se falar sobre forma da arte:
A beleza da arte não leva a nenhuma doutrina definida. Sua forma não é dedicada de modo nítido, ao menos quanto nossos olhos podem ver, e não leva imediatamente a um sistema ético (embora tenho viva em mim a sabedoria da humildade e da generosidade). William Carlos Williams dizia que os poetas escrevem por uma única razão: dar testemunho do esplendor (termo empregado também por Tomás de Aquino para definir o belo}. É uma palavra útil, especialmente para o fotógrafo, porque se refere à luz: a luz de irresistível intensidade. A forma à qual a arte aspira é de uma luminosidade absoluta, mas é também tão intensa a ponto de não poder ser olhada diretamente. Somos por isso constrangidos a intuí-la pelo reflexo fragmentado que deposita nos objetos cotidianos: a arte não poderá jamais definir plenamente a luz (Adams, 1995, p.14-15).
Selecionamos ainda para esta introdução, entre os artistas fotógrafos, a fotógrafa e socióloga Gisele Freund (1995) que defendeu a primeira tese na Europa, em 1936, publicada em livro em 1974, sobre Fotografia e Sociedade. Entre os diversos aspectos sobre a relação histórico-sociológica da fotografia (primeiros fotógrafos, os movimentos e os artistas face à fotografia, imprensa, fotojornalismo, mass media magazines e outros), selecionamos “A fotografia, meio de reprodução da obra de arte”. A fotografia inventada, oficialmente, por Daguerre, em 1935, mereceu o reconhecimento do Estado, ampla divulgação e a animosidade de artistas que a viam competindo com as obras de arte que, até então, era objeto de culto e restrita a raros possuidores. Reproduzida em quantidade, a fotografia tornou-se acessível às massas.
Para Freund (1995, p. 99) a fotografia muda a concepção do que é a obra de arte: “Se a fotografia exerceu uma influência profunda na visão do artista, ela mudou também a visão que o homem tem da arte”. E isso se deve, ao seu potencial de produzir alterações na representação dos objetos e das próprias obras de arte: “Ao mesmo em que falsificava a obra de arte, na medida em que suas dimensões deixavam de ser claramente reconhecíveis, a fotografia prestou o serviço imenso de a fazer sair do isolamento”.
A reprodução serviu também para negócios, como a reprodução de desenhos para fábricas têxteis. O ofício artesanal começou a passar para o estado industrial. Freund (1995, p, 100-102) relata que um desses homens de negócios “formou
operadores para fotografar museus. Foi o caso da Capela Sistina no Vaticano e de inúmeras outras igrejas de Roma. As técnicas de gravação e impressão são alteradas e “Braun et Cie. produz centenas de álbuns e milhões de postais em preto e branco e em cores (...)”. Por dados de 1910, “estima-se em 123 milhões o número de postais impressos só na França”, trinta e três mil operários nessa indústria e, na época, citando uma publicação diz a autora, “pode-se calcular em milhões os postais vendidos cada ano no Mundo inteiro”9. Os cartões postais tiveram também grande influência na formação de coleções, na publicidade e sobre a expansão do turismo.
Freund (1995) destaca, em sua conclusão, a importância da imagem para o conhecimento:
A imagem é fácil de compreender e acessível a toda a gente. A sua particularidade consiste em que ela se dirige à emotividade: não deixa tempo para a reflexão nem para o raciocínio, como é o caso com a conversação ou com a leitura de um livro (Freund, 1995, p. 200).
À luz do tempo histórico, da história das artes e, em específico, da história da fotografia, José Alves Linhares Filho (2004) construiu sua Dissertação de Mestrado em uma complexa produção de conexões para dar evidência ao objeto de estudo e revelar a importância de Cartier-Bresson, fotógrafo artista e um dos grandes expoentes da história da fotografia mundial. “O instante decisivo”, que inspirou outros profissionais da fotografia, está presente nas fotos singulares, nas suas frequentes alusões a essa conjugação do espaço-tempo do olhar, da mão e do coração do fotógrafo com o acontecimento, como ele reitera na entrevista a Giles Mora:
É para cada um de nós, a partir do olho, que começa o espaço que vai se ampliando até o infinito, espaço presente que nos toca com mais ou menos intensidade, que imediatamente se fechará em nossa lembrança e então será modificada. De todos os meios de expressão, a fotografia é o único que fixa um instante preciso (Cartier-Bresson, 1985, apud Linhares Filho, 2004, p. 132).
Na terceira parte deste texto pretendemos avançar na reflexão sobre a fotografia como parte da vida, da arte e do conhecimento, não apenas como objeto fotográfico e em sua relação com a arte, mas como fonte de pesquisa para a ciência, de modo específico, como fonte de pesquisa histórica.
9 A tese de doutorado, Da pedagogia da imagem às práticas do olhar em busca de caminhos analíticos, de Armando Martins de Barros (1997), parece ter sido a primeira no gênero, sobre cartões postais, no Brasil.
Pensar a fotografia como fonte de pesquisa requer a compreensão do significado de fonte no âmbito da historiografia. Saviani (2004) inicia sua reflexão sobre fontes para a história da educação, pelo significado do vocábulo fontes que, na língua portuguesa, tanto se refere à água que jorra de um ponto de origem, como no sentido de produções humanas para a construção historiográfica de objetos de estudo.
A pesquisa histórica a partir das considerações de Marc Bloch (2001) em sua obra “Apologia da História” tem como objeto a humanidade. No entanto, encontra na dimensão temporal uma subordinação intrínseca, tendo em vista, o que o referido historiador afirma sobre a inviabilidade de qualquer área do conhecimento de abstrair o tempo. O ofício de historiador, pensa, então, o humano a partir de uma perspectiva em que a categoria duração, possui papel fundamental. Ao mencionar outras ciências as quais se desintegra em fragmentos, Bloch (2001, p. 55) afirma que, “o tempo da história, ao contrário, é o próprio plasma em que se engastam os fenômenos e como o lugar de sua inteligibilidade”. De caráter fundamental para o exercício da prática historiográfica, o tempo histórico, não deve, conforme Koselleck (2006), ser compreendido como uno, mas ressalta o convívio concomitante de vários tempos históricos.
A questão da história no tempo tem um marco importante na criação da revista “Annales d`histoire économique e sociale” em 1929, por Marc Bloch e Lucien Febvre, em oposição à história positivista dos acontecimentos. Nos anos 1940, reúne-se a eles Fernand Braudel (1982, p.10-11; 38)10 que, situando o tempo na concepção de totalidade social, elabora a complexa concepção do tempo em três temporalidades: como longa duração das estruturas (para explicar a civilização e as mentalidades), como tempo médio das conjunturas, “períodos de dez, vinte ou cinquenta anos”, como o tempo breve dos acontecimentos e a simultaneidade desses tempos nas “águas mutáveis do tempo”, os tempos múltiplos.
Alcançar o passado, mesmo que cientes de sua incompletude e da impossibilidade de conhecê-lo em sua integridade, requer acesso às fontes, ou seja, aos vestígios, documentos, testemunhos que são elementos fundamentais para o
10 A publicação original de seu artigo na revista des Annales é de 1958.
estudo historiográfico. Koselleck (2006, p.13) aponta para o fato de que as fontes do passado “são capazes de nos dar notícia imediata sobre fatos e ideias, sobre planos e acontecimentos, mas não sobre o tempo histórico em si”.
Segundo o historiador alemão, os testemunhos atestam a forma como foi elaborada a experiência do passado em uma situação concreta, bem como registra que isso se dá da mesma maneira pela qual “expectativas, esperanças e prognósticos foram trazidos à superfície da linguagem” (Koselleck, 2006, p.15). O autor demonstra como os vestígios são permeados por concepções que incidiram diretamente em sua produção. No entanto, conforme Bloch:
Em nossa inevitável subordinação em relação ao passado, ficamos [portanto] pelo menos livres no sentido de que, condenados sempre a conhecê-lo exclusivamente por meio de [seus] vestígios, conseguimos, todavia, saber sobre ele muito mais do que ele julgara nos dar a conhecer (Bloch, 2001, p.78).
As afirmações de Bloch acenam para a necessidade de localização e identificação de vestígios, entretanto, atenta para as possibilidades que os mesmos nos oferecem a conhecer mais do que então se pretendia. E seguindo com as importantes reflexões legadas pelo historiador francês, mesmo os vestígios mais complacentes, são incapazes de falar se não forem questionados adequadamente.
Fotografia n. 4
Aceitando a concepção, de que é necessário saber perguntar para obter respostas, retomamos a centralidade de nosso texto para a temática da fotografia como fonte de pesquisa. A fotografia n. 4 registra um momento particular da história
do racismo e da presença da lei garantindo a entrada da aluna negra em uma escola pública. Mas precisamos de outras fontes, de outros documentos para fazer essa leitura do grupo de pessoas representadas.
Um aspecto formal do uso da fotografia como fonte histórica é sua identificação: título, local, data, fotógrafo (nome ou não identificado), acervo a que pertence. Superamos, assim, um uso tradicional, mas ainda existente, da fotografia como ilustração. No campo historiográfico, desde a década de 1980, utiliza-se o termo virada visual para se referir ao amplo status constituído em torno do testemunho das imagens que as retira do lugar de mera ilustração do narrado.
Na esteira da ampliação de fontes e métodos e na interlocução com outros campos do pensamento, de modo crescente, as imagens são entendidas como artefatos que possuem estatutos próprios de leitura e que reclamam uma articulação transdisciplinar em seu uso como fonte histórica. Sabe-se que elas são resultado de um trabalho social no qual está em jogo a produção de sentidos e, portanto, subjazem a códigos convencionalizados culturalmente (Ciavatta Franco, 2023) e que, para além de testemunho da história, a imagem é a própria história (Burke, 2004). A ilustração é um "adorno ilustrativo”, um componente de estilização; a fonte histórica é um "meio de conhecimento, instrumento de pesquisa, análise e reflexão" (Kossoy, 2021. p.12). A partir da École des Annales, da qual Marc Bloch foi um dos fundadores, ocorreu a ampliação da concepção de fontes, as quais restringiam-se, anteriormente, às fontes escritas. Bloch afirma, então, que tudo que fora produzido pela humanidade informa sobre ela e indica que as possibilidades são quase infinitas. A fotografia
passa, então, a constar entre tantos outros documentos.
Ao incluí-la, no entanto, no arcabouço de testemunhos a ser lançado mão pelas pessoas que desenvolvem pesquisa histórica, foi requerido um grande exercício para promover metodologias para a sua sistematização e posterior análise. Exercício importante foi realizado por Peter Burke (2004), em sua obra “Testemunha Ocular”, na qual dedicou-se a demonstrar as potencialidades do uso de imagens (não apenas a fotografia) em investigações de cunho histórico.
Nessa obra, o historiador britânico problematiza, inclusive, a utilização do termo “fontes de pesquisa” e sugere a sua substituição por “indícios” do passado. Burke (2004) critica a ideia de pureza das fontes na medida em que possibilitariam a proximidade com as origens e com a Verdade. O autor destaca a inviabilidade de um relato do passado não ser contaminado pela passagem por intermediários.
Independente de fazer uma opção por um termo ou outro, cabe ressaltar a necessidade de esmiuçar cada testemunho elencado para abordar determinada temática. Fazemos, portanto, eco, ao que Bloch (2001) afirma:
Do mesmo modo, até nos testemunhos mais resolutamente voluntários, o que os textos nos dizem expressamente deixou hoje em dia de ser objeto predileto de nossa atenção. Apegamo-nos, geralmente, com muito mais ardor ao que ele nos deixa entender, sem haver pretendido dizê-lo (Bloch, 2001, p.78).
A fotografia precisa, então, ser compreendida a partir de diversos elementos: sua materialidade11, seu contexto de produção, contratante, fotógrafo, se é original ou se é publicada pela imprensa, por livros, por periódicos especializados ou outras publicações. Nesse caso, por qual órgão, instituição ou sujeitos sociais individuais ou coletivos? Quais as vinculações ideológicas, partidárias, doutrinárias que o permeiam? Sua relação com a legenda, seja em álbuns, na imprensa, outras publicações ou em postagens nas mídias digitais? Há um longo caminho até chegar na própria fotografia a ser, então, descrita e analisada individualmente e como parte de um conjunto.
De acordo com Flüsser (2002, p. 7): “As imagens são, portanto, resultado do esforço de abstrair duas das quatro dimensões do espaço-tempo, para que se conservem apenas as dimensões do plano”12. E ressalta: “O caráter aparentemente não-simbólico, objetivo, das imagens técnicas faz com que seu observador as olhe como se fossem janelas e não imagens”. A confiança será justamente o elemento questionado pelas pessoas que se dedicam ao fazer historiográfico, cuja pauta reside na problematização, no cruzamento, no questionamento das fontes. A imagem técnica13 retrata elementos do real, contudo, o recorte é escolha, seleção, enquadramento e referência. Ainda segundo Flüsser:
O fotógrafo “escolhe” dentre as categorias disponíveis as que lhe parecem mais convenientes. Neste sentido, o aparelho funciona em função da interação do fotógrafo. Mas sua escolha é limitada pelo número de categorias inscritas no aparelho: escolha programada (Flüsser, 2002, p. 31).
11 Atualmente, com a difusão de acervos digitais e da inserção das mídias sociais como plataformas possíveis para a localização e identificação de fontes de pesquisa, a materialidade passa a ser uma dimensão a ser problematizada, e cabe aos pressupostos da História Digital pautar novas formas de compreender esses documentos.
12 Espaço-tempo como comprimento, largura, altura, profundidade e, na concepção da teoria da relatividade, tempo como movimento no espaço (Matsuura, 2003).
13 Em tempos de Inteligência Artificial, novos problemas serão demandados com relação à produção de imagens digitais.
A fotografia, então inserida na pesquisa histórica, será uma possibilidade para o estudo de urbanidades, de comemorações, de eventos individuais e coletivos. Tardaria um pouco mais a chegar no âmbito da História da Educação, área caracterizada pelo hibridismo entre História e Pedagogia. De acordo com Meda (2018) o uso de imagens na referida área ingressou no debate historiográfico internacional, apenas no ano 2000. Desde então, estudos que se dedicam à cultura escolar e patrimônio histórico-educativo avançam no sentido de promover maior destaque às fotografias.
Nestas considerações finais, queremos destacar a importância de estudos sobre a fotografia e seu papel nas diversas áreas do conhecimento, desde sua criação no século XIX, mas, particularmente, no século XXI, pelo avanço tecnológico das mídias digitais e por sua popularização nos computadores, tablets, celulares e tudo mais que ainda está sendo inventado.
Propomo-nos a resgatar alguns aspectos do desenvolvimento do tema, em dois campos nobres da produção humana, a arte e a ciência da história e suas fontes de pesquisa. Nas dimensões possíveis deste texto, iniciamos percorrendo alguns autores que tratam da fotografia e de seu estatuto como arte, técnica ou ciência. O tratamento contextualizado da fotografia nos seus aspectos históricos, revela uma complexidade que vai além da representação contida no objeto fotográfico e em sua relação com a crença da verdade dos fatos representados.
O objeto fotográfico, a fotografia, arte ou fonte de pesquisa, documento ou monumento, é fruto de um conjunto de processos em que ciência, técnica e arte estão imbricados no trabalho de criação de um mundo de possibilidades no domínio das imagens fotográficas, cinema ou vídeo. A fotografia é uma recriação da realidade, um simulacro que é e não é ao mesmo tempo o objeto real, que dissimula, como conhecimento dissociado da experiência, e redefine a própria realidade fotografada. Nas fotografias produzidas, buscamos a verdade dos fatos e nos encontramos com meras imagens da verdade, a aparência dos fatos, suas representações. Precisamos fazer a crítica interna das ideologias de legitimação de suas formas de apresentação e ir além do fragmento de realidade expresso na fotografia.
Sobre a fotografia como arte, um tema tão complexo e controverso, abordaremos alguns aspectos e autores que debatem questões sobre a fotografia como técnica, como arte, em sua relação com a beleza, como expressão de seu tempo histórico (Rouillé, 2009; Flores, 2005, Benjamin, 1987; Adams, 1995; Freund, 1995). Os dicionários distinguem a pintura como a arte que “mediante linhas e cores representa sobre uma superfície as concepções do artista”. A fotografia é a “arte e ciência de obter imagens permanentes mediante substâncias que se transformam sob a ação da luz (brometo de prata etc.)” (Flores, 2005, p. 18-19).
A “Visão objetiva” que era concebida como algo natural, passa a ser vista como como produto da sociedade. Flores (2005) percorre a história até a arte moderna e examina a fotografia do ponto de vista da câmera, de ser uma imagem, em sua relação com a memória, como realidade construída. Nos dias de hoje, a “reprodutibilidade técnica” de que fala Benjamin (1987), o acesso quase ilimitado às imagens fotográficas não parece ter trazido maior capacidade crítica aos segmentos populares carentes de escolarização básica, enquanto são locupletados de imagens e informações falsas, mentirosas, falsificadas pelos recursos da Inteligência Artificial, pela liberdade de fotografar, exibir-se, falar sobre qualquer coisa que se torne vantajosa ou lucrativa.
Pensar a fotografia como fonte de pesquisa requer a compreensão do significado de fonte no âmbito da historiografia. Saviani (2004) inicia sua reflexão sobre fontes para a história da educação, pelo significado do vocábulo fontes que, na língua portuguesa, tanto se refere à água que jorra de um ponto de origem, como no sentido de produções humanas para a construção historiográfica de objetos de estudo.
A pesquisa histórica encontra, na dimensão temporal, uma subordinação intrínseca, tendo vista, o que Marc Bloch (2001) afirma sobre a inviabilidade de qualquer área do conhecimento de abstrair o tempo. O ofício de historiador, pensa, então, o humano a partir de uma perspectiva em que a categoria duração, possui papel fundamental.
Alcançar o passado, mesmo que cientes de sua incompletude e da impossibilidade de conhecê-lo em sua integridade, requer acesso às fontes, ou seja, aos vestígios, documentos, testemunhos que são elementos fundamentais para o estudo historiográfico. Segundo Koselleck, (2006), os testemunhos atestam a forma
como foi elaborada a experiência do passado em uma situação concreta, bem como registram que isso se dá pela linguagem.
A partir da Escola dos Annales, da qual Marc Bloch foi um dos fundadores, ocorreu a ampliação da concepção de fontes, as quais restringiam-se, anteriormente, às fontes escritas. Bloch (2001) afirma que tudo que fora produzido pela humanidade informa sobre ela e indica que as possibilidades são quase infinitas. A fotografia passa, então, a constar entre tantos outros documentos. Inserida na pesquisa histórica, a fotografia será uma possibilidade para o estudo de urbanidades, de comemorações, de eventos individuais e coletivos. Tardaria um pouco mais a chegar no âmbito da História da Educação, área caracterizada pelo hibridismo entre História e Pedagogia. De acordo com Meda (2018) o uso de imagens nesta área ingressou no debate historiográfico internacional, apenas no ano 2000. Desde então, estudos que se dedicam à cultura escolar e ao patrimônio histórico-educativo avançam no sentido de promover maior destaque às fotografias.
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