V.23, nº 51 - 2025 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
CONHECIMENTO TRADICIONAL E CONHECIMENTO ACADÊMICO: A FORMAÇÃO DE KASSIA BORGES KARAJÁ1
(Kassia Borges Karajá, s.d. Acervo de Kassia Borges Karajá e Itamar Rios)
Ainda que de forma virtual, sinto como se estivesse na casa da Kassia Borges Karajá, a nossa Kassinha, nossa “Mamãe Oxum”; axé! Ainda que a distância, consigo sentir o frescor da sombra da caramboleira onde nos sentávamos, circularmente, para prosearmos e relembrarmos os velhos tempos em que partilhamos da vida em meio a diversidade de rios, florestas e animais, mas também à precariedade do modo de vida: esses gigantes da Amazônia!
1Entrevista recebida em 15/04/2025. Aprovada pelos editores em 23/07/2025. Publicada em 06/08/2025. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i51.67408.
2Doutora em Educação pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) - Brasil. Professora do Instituto de Educação Física e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro - Brasil. Email: elizandragarcia@hotmail.com.
Lattes: https://lattes.cnpq.br/1822479471813746. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1580-156X.
Essa entrevista, pretensa à publicação na Revista Trabalho Necessário 51, cujo temário é Marxismo, Arte e Educação, busca conhecer Kassia Borges Karajá, discutindo questões acerca de seus modos de vida que se expressam em sua formação e produção artística.
Kassia Borges Karajá, do povo Karajá, margeado pelo Rio Araguaia e também do povo Huni Kuin, na foz do Jordão, no Acre, é artista visual, pesquisadora, professora e curadora. Carrega em seu corpo o barro e a ancestralidade da mulher indígena, objetos de sua produção mais expressiva, e também as cores, compartilhadas com seus “parentes” no interior do coletivo MAHKU (Movimento dos Artistas Huni Kuin). O trabalho da artista/curadora/docente/pesquisadora tem expressividade nacional, em salões e museus como o CCBB (Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Belo Horizonte), Pinacoteca e MASP, de São Paulo, e também internacionalmente, como a Haus der Kunst (Alemanha), Museum Tinguely (Suíça), Bienal de Veneza (Itália), Centre Tignous D’art Contemporain (França), dentre outros.
Kassinha: Na verdade, eu não nasci na aldeia, eu tive contato com eles bem mais tarde. Eu tinha mais de 18 anos.
Kassinha: Ah sim! Você fala da formação tradicional e não acadêmica.
Kassinha: Na verdade, eu sempre brinquei com cerâmica, com argila, com terra… eu era pobre, eu não tinha dinheiro para comprar brinquedo, minha mãe não
tinha. Então, eu sempre brinquei com barro, e eu lembro que desde pequenininha, desde meus dois anos de idade eu fazia cenários com sementinha, fazia buraco na terra, fazia um laguinho, como se fosse peixinhos. E aí, um dia descobri uma caixa de fósforo e aí comecei a fazer tijolinho, é terra com água, sabe, e botava na forminha do tijolinho. Eu era criança, deveria ter uns 3 anos de idade, não sei como é que eu pensei em fazer tijolinho. Não sei. Só sei que lembro que uma vez, eu tinha mais ou menos 4 anos de idade, eu fiz um castelo, um castelo com tijolinho, acredita? Então, essa coisa está no meu sangue desde muito tempo. Só que não sabia que isso era arte. Eu lembro que todas as vezes que a gente mudava de lugar, a gente tinha que fazer uma nova casa. Não tinha casa, aí a gente fazia de pau a pique, pegava os barros e enfiava na parede. Desde criança, eu vejo a minha mãe e meu pai fazendo isso. Meu pai, por exemplo, quando não tinha cama, ele fazia o estrado, e a minha mãe pegava milho e enfiava dentro de um saco e virava colchão. Sempre fizemos as nossas construções, talvez seja por isso que fazíamos também. Eu lembro uma vez que construímos uma casinha, não tinha fogão, aí a mamãe fez um fogão, e todo dia a mamãe barreava de barro branco, para ficar bonitinho, a única coisa que tinha na casa era um fogão, era um fogão feito de barro. E todo dia a gente lameava ele de barro branco pra ficar bonitinho. Então é isso, é a vida, comecei assim; vendo meu pai e minha mãe fazendo essas coisas, e eu reproduzia.
(Kassia Borges Karajá, s.d. Acervo de Kassia Borges Karajá e Itamar Rios)
Kassinha: Então, quando fiz faculdade e estava me formando, o meu psiquiatra achava que eu tinha que encontrar meu pai porque achava que eu estava com algumas crises existenciais. Lá na universidade, eu comecei a fazer o curso de arte, e a fazer esculturas com pedaços de mulher. E aí meu psiquiatra achou que eu precisava procurar o meu pai, que tinha me abandonado com 5 anos de idade. Ele achava que eu tinha que ir atrás dessa minha raiz, para poder entender o porquê dessas esculturas com mulheres cortadas. Falaram que meu pai estava lá no Rio Araguaia, e eu fui pra aldeia. Cheguei lá, e ele não estava. Mas eu encontrei com a família toda lá. Mas quando cheguei lá, as meninas não estavam mais fazendo as bonecas, que são as bonecas mais representativas do povo Karajá.
(Fragmento da instalação Femme Jibóia, s.d. Acervo de Kassia Borges Karajá e Itamar Rios)
Kassinha: Ritxòkò. Porque eu fui, inclusive, para procurar o meu pai. Mas quando cheguei lá, eu sabia que elas faziam bonecas, as Karajás. Só que quando cheguei lá elas não estavam fazendo mais bonecas e pintura corporal. Falei: não gente, vamos lá, vamos, eu quero aprender! Aí a avó Alice me ensinou a fazer as Ritxòkò e foi aí que um antropólogo que estava lá falou: “você viu que bonito que você fez”? Eu falei: o que que eu fiz? Eu fiz sem saber que estava fazendo, sabe? Porque era normal chegar e, “ô, vamos pintar”! Eu sempre gostei disso! “Vamos pintar, vamos fazer cerâmica e tal!” E elas retomaram a linguagem da cerâmica, voltaram a fazer, lá na aldeia. E as últimas que minha irmã fez, está aqui comigo, ela morreu, tem um mês...
Kassinha: As últimas, olha que coisa, né? Deus é um negócio interessante... a gente pode falar outras coisas... mas... eu fui lá e comprei todas as bonecas que ela tinha feito. Na época, a gente não sabia que ela ia morrer.
Kassinha: Isso! Depois que eu fiquei um tempo na aldeia, convivendo e tal, eu comecei a fazer uma coisa, que eu chamava, de “cor/potes” que eram potes, mas que ao mesmo tempo era corpo, sabe, que esteve exposta no CCBB do Rio há pouco tempo atrás. Agora ela está exposta lá em Brasília.
Kassinha: não, são potes mesmo! São potes, mas não tem função de potes porque não tem abertura, não tem saída, mas tem tipo um formato, sabe?
Kassinha: potes! Porque era corpo com pote emendado, entendeu? Era um corpo que tinha memória.
(Instalação Corpotes, s.d. Acervo de Kassia Borges Karajá e Itamar Rios)
Kassinha: Sim, fiquei fazendo esses corpotes, eu achatei esses corpotes e virou placas. O que eram essas placas pra mim? Eram vários corpos que se transformaram em placas, porque eram corpos todos machucados, eram corpos esfacelados. Essa dor, Eliz, essa dor sempre esteve comigo. A dor do corpo, sabe? Corpo maltratado. [...] Porque isso pra mim também é complicado, porque isso são os estupros. E depois fiquei sabendo que eu tinha sido abusada com dois anos de idade. Tudo tem a ver. O corpo não esquece. Os maltratos, a gente talvez, a gente não consiga dizer, mas a gente como artista, a gente fala nas imagens. Às vezes a gente nem tem consciência, sabe? Era toda essa dor do corpo indígena maltratado.
Kassinha: É.... foi difícil pra mim... eu enfrentei muita dificuldade na faculdade. Porque assim, isso foi muito doído pra mim, a faculdade foi doída pra caramba, com muito preconceito. Esse final de semana encontrei uma amiga minha, que agora está dando aula lá na UFMG, ela foi minha colega aqui, e aí ela estava falando sobre isso. Como que me impediram muitas coisas. Teve muito preconceito comigo, muito preconceito. Foi difícil fazer faculdade. No começo falavam que eu não sabia desenhar, que eu só não ia tomar bomba no primeiro período porque não se dá bomba no primeiro período, que eu não servia para ser artista. Teve um professor que me falou isso. Uma professora chegou a me dizer “Ó Kassia, sinto muito, mas eu não te vejo como artista.” Olha que loucura: “eu não te vejo como artista, você para ser artista demora demaaaaais... Existem preconceitos enorrrrmes na faculdade. Então, se eu não servia para ser artista, poderia fazer qualquer coisa, aí eu fazia qualquer coisa! Lembro que teve uma vez que eu fiz uma exposição com uma cobra jibóia em placa, aí teve um curador que chegou e falou assim: “e aí?” Eu olhei para ele e falei: “aí!” (no sentido de uma resposta retórica, risos).
(Fragmento da instalação Femme Jibóia, s.d. Acervo de Kassia Borges Karajá e Itamar Rios)
Kassinha: Ele queria saber por que eu tinha feito aquilo, sabe? Eu falei: “é isso aí mesmo, é uma cobra jibóia!” O povo não entendia muito, mas ao mesmo tempo eu sabia conversar muito bem com a linguagem dos brancos e com a minha linguagem. Isso eu sempre soube instintivamente. Eu não aprendi isso. A universidade foi boa porque aprendi a ter o mesmo vocabulário que o branco, nem sempre muito, mas eu aprendi isso. Mas isso foi muito importante. Porque eu convivo nessa vibe de boa, dos brancos e dos indígenas. Ô, aquela exposição você não viu, né, mas eu fiz uma exposição que eram os barcos flutuando.
(Instalação Amazone-se, s.d. Acervo de Kassia Borges Karajá e Itamar Rios)
Kassinha: Isso! Então, aquela exposição é um tapa na cara de qualquer pessoa, porque é indígena, mas é totalmente branco também. É uma instalação. Ontem fui dar uma aula sobre instalação e falei “que tem gente que quer fazer instalação e não dá conta, viu gente?” Instalação você tem que ter, o instalador... tem
que conviver lá dentro do trabalho, tem que ir lá dentro do trabalho. E, aquela
exposição, nossa, aquele mostra direitinho, que eu convivo muito bem com as duas linguagens, e que consigo fazer essa junção muito bem. Porque não é aquele estereótipo de arte indígena na naïfe3, não é, de jeito nenhum. Assim, é uma linguagem indígena, sem ser estereotipada, e é uma linguagem que os brancos muito bem entendem.
Kassinha: Não, acho que essa é a questão, o tempo todo mexi com barro! O que aconteceu comigo é que o barro sempre esteve presente, o que eu tive que aprender foram as outras linguagens. Tanto é que quando comecei a fazer o curso de artes, eu já tinha todo o domínio, sem saber que eu tinha o domínio, com a cerâmica nunca tive nenhum problema. A cerâmica para mim é tão tranquila “que eu não preciso nem pedir permissão”. As outras coisas não, quando eu vou fazer uma pintura, eu faço meditação, peço permissão, mas a cerâmica não, parece que sou eu, tenho muita liberdade.
Kassinha: Desde que eu comecei a fazer arte, é o lado indígena que está aflorado. O primeiro salão que eu entrei foi com pintura corporal indígena, foi em 1989. O primeiro salão que eu entrei em São Paulo, era muito diferente, sabe? É isso que eu acho interessante. Ninguém estava fazendo aquilo e eu fiz, era um objeto.
3 No Dicionário Priberam naïfe se refere à um adjetivo de dois gêneros, “que se caracteriza pelas formas simples e pala fácil compreensão do que esta representado (ex.: arte naïf). Disponível em https://dicionario.priberam.org/na%C3%AFf. Acessado em 14 de abril de 2025.
(Instalação Femme Jibóia, s.d. Acervo de Kassia Borges Karajá e Itamar Rios)
Kassinha: Então, eram pinturas corporais que eu transformava em objetos, por exemplo de uma cobra jibóia. Teve uma outra, deixa ver se lembro o nome, que eu entrei lá [referência ao Salão de Arte de São Paulo], era Peixe Tucunaré na Noite de Lua Cheia, um negócio assim, entendeu? É assim. A única coisa que mudou é que eu comecei a usar essas linguagens do branco. Aí eu fiz esse ligamento, assim, entre o branco e isso.
entendendo que você já tinha uma formação artística na comunidade em que vivia, como foi, já possuindo essa formação artística tradicional, sua formação artística acadêmica/universitária?
Kassinha: Então, eu não sabia que isso chamava arte, a arte só entra na minha vida quando eu vou fazer faculdade. Porque antes, por exemplo, a primeira curadoria foi com 11 anos de idade, foi a primeira curadoria. Como é que eu vou achar que isso é arte? Eu nem sabia que existia isso. Aquilo que eu fiz foi uma curadoria. Isso está no meu sangue e eu nem sabia que existia. Porque eu só vou saber que isso existe, depois que eu começo a faculdade. Porque essa palavra era muito nova pra mim, foi muito nova pra mim. Mas esse trem estava dentro do meu sangue. Que loucura! Eu acho isso muito estranho, porque isso sempre esteve comigo, mas eu sem saber que isso se chamava arte. Sabe por quê? Acho que tem coisa, tem coisa que tem que ser, que nem Kant fala; tinha que sê! Kant fala isso. Tinha que ser, então essa questão da arte para mim tinha que ser! Eu acho! É lógico que depois eu vou denominar isso de outra coisa, vou denominar isso de uma coisa que que vou aprender com os brancos, que isso se chama arte. Não é estranho, assim, a gente fazer, sem saber que está fazendo, mas depois que você descobre que aquilo é arte, você fica apaixonada!
Kassinha: Eu fui convidada para dar uma palestra num seminário de estética e eles me perguntaram sobre educação. Eu falei assim; “Ainda esta muito, ainda é muito complicada a educação no Brasil, inclusive, introduzir a arte indígena dentro da universidade”. Porque a universidade ainda é muito elitizada. E, muito europeizada. Eu nunca estudei artista brasileiro. Só estudava artista mundial, Mondrian, sabe, esse povo, esse povo que deu o nome de arte, eu acho. E aí a gente só estudou isso, só que hoje há uma grande mudança, há uma grande mudança, e tem gente discutindo a questão do decolonialismo, mas isso não chegou muito de boa na universidade não.
Parece que a gente é um patinho feio tentando ser um cisne. Quantos professores pretos tem na sua faculdade? Pois é, aqui também não. Não tem um professor preto aqui também. Indígena, então, eles nem passam perto dessa questão, entendeu? Preconceitos o tempo todo. E aí você discutir isso dentro da academia ainda é complicado! E não só aqui. Até Parintins era, você lembra? [em alusão ao tempo em que fomos docentes na Universidade Federal do Amazonas]. Já que Parintins é a cidade dos indígenas, né? Só que eles acham que não é também [expressão...] Um dia, não sei se você estava junto, mas estávamos na Praça, ali do Mercado, e o cara teve a capacidade de falar assim; aqui no Amazonas não teve nenhum preto! [risos]. Gente, ele era preto! Você imagina se eu enfrentei isso lá em Parintins, aqui, mais ainda! É um conhecimento elevado à décima categoria do nada. Horrível! Então, eu sei que o dia que eu dei essa palestra lá na estética, que eu falei sabe, eu falei assim; olha, a universidade tem muito, muito, muito o que andar ainda, tem muuuuuuito o que mostrar, ela não é ainda, ela é um braço da Europa.
Kassinha: não, não, essa semana uma aluna minha me perguntou assim: “professora, o que que é se sentir f***?” Eu falei assim: “nunca me senti f***.” Mas eu sei que isso é f***. Mas o que que significa isso pra eles? Entendeu! É f*** porque eu sei, porque eu tô na Bienal de Veneza! E isso nunca ninguém teve aqui! Nunca! Ninguém aqui de Uberlândia expôs na Bienal de Veneza como eu expus! Eu expus na Fachada Central, do Prédio Central. Mas, mesmo assim, eu enfrento preconceito pra c***** Então assim, eu já tive muitos problemas, inclusive com o sucesso, fazer sucesso é perigoso.
(Fachada do Pavilhão Central da Bienal de Veneza, 2024. Acervo de Kassia Borges Karajá e Itamar Rios)
Kassinha: Tanto é que esses dias me contaram assim: que alguém escutou um professor falando assim; “mas porque ela e não eu?
tomar conta disso, a gente vai perder mesmo. Então assim, ontem na minha aula,
Kassinha: Porque hoje eu penso as coisas mais importantes que tem que ser pensadas hoje! No cenário nacional e internacional. Essa é minha resposta! Porque hoje eu falo das questões mais nevrálgicas do que que é arte hoje, entendeu? Toco na questão do preconceito contra a mulher, contra a mulher indígena, eu toco na questão ambiental, porque quando eu faço um painel, e eu mostro um canto de cura, estou inclusive trazendo, buscando cura, para mim e para todo mundo, mas também é uma preservação dessa natureza, uma preservação das árvores, preservação da água, preservação dos bichos, isso tudo eu falo. E, principalmente, se a gente não
inclusive, eu estava falando; “gente, a universidade não prepara a gente para ser artista, sabe, no sentido, assim, não fala pra gente que que é o mercado, não fala pra gente como você coloca preço, essas coisas a universidade parece ter um ranço assim, eu to falando isso que eu sou, eu sei que eu sei que eu já tive muito preconceito com isso, de preço de obra de arte, essas coisas, mas é uma profissão como qualquer outra, você precisa comer, se vestir, morar, e isso é dinheiro. É claro que não tô interessada no capitalismo, selvagem, mas a questão é, a universidade não prepara a gente para isso, não é verdade? E outra coisa que a universidade também não prepara é o que os artistas estão discutindo hoje, agora, nesse momento. O que é? Pois é o que você vai fazer sem entender o que que se fala hoje, o que se discute, tudo. Hoje não dá pra falar no quadrado, não dá pra falar do quadrado como a gente falava na arte moderna, hoje a gente fala do ser humano que está inserido nesse contexto, do meio ambiente, [...] estamos num momento catastrófico, e o artista está tão interessado com essa discussão como qualquer outro cientista. A gente tá! Não vamos tapar o sol com a peneira, a gente tá num momento catastrófico, e o artista está tão interessado com essa discussão como qualquer outro cientista, sabe, e eu to no meio dessa discussão.
Kassinha: Ah, ainda não pensaram nisso não. Agora que os Huni Kuin estão pensando na importância do Mahku (Movimento dos Artistas Huni Kuin). O que que é o Mahku, ainda não tem, ainda não caiu a ficha, entendeu? Porque depois da pandemia que a internet entrou mais. Não deu muito bem pra captar aqui. Não deu pra captar ainda direitinho, não é que não deu pra captar, eu acho que nós estamos num momento, assim, de descobrir o que é que está acontecendo, sabe?
Kassinha: Então, acho que dentro do Coletivo Mahku, eu sou o lado feminino do grupo.
(Coletivo Mahku na Bienal de Veneza, 2024. Acervo de Kassia Borges Karajá e Itamar Rios)
Kassinha: Sabe, agora, tá entrando a Ritinha, a filha do Ibã, Ritinha e a Yaka (se referindo a Yaka Huni Kuin, irmã da Rita Huni Kuin), que estão pegando meu discurso. Elas pegarem esse discurso porque é o movimento do Mahku, porque os meninos só colocam os homens para a pintura dos homens[...]. Então, quando eu entro pro Mahku, eu começo a falar dos mitos, mas em relação ao feminino. Eu achei isso muito importante falar sobre o feminino, começo a transportar alguns mitos, refazer alguns mitos, mas de uma maneira mais feminista, olhar para o lado feminino da coisa. Em 2005, 2006, eu fui para França fazer duas residências artísticas. E aí, numa delas, eu fiz um livro, e o livro que eu fiz, em francês, foi contar o mito de origem do Karajá, mas de uma perspectiva feminina. Então, quando no meu mito, por exemplo, é a mulher que surge primeiro e ela vai fazendo o homem, vai construindo o
homem, e aí ela e ele constroem o resto. Então a minha visão é sempre feminino dentro do Coletivo, mas não só dentro do coletivo; qualquer lugar que eu vá! Eu coloco a mulher em primeiro lugar, porque eu tenho essas discussões. E, hoje, a Ritinha e a Yaka, estão mais ou menos no meu discurso falando sobre a mulher. Antigamente eu falava sobre a dor da mulher, hoje, eu falo da mulher também que cura, então, assim, tem uma série de esculturas que eu chamo de Rezo da Vovó Pajé. Então quando eu faço alguns trabalhos meus, principalmente esses últimos, que são a Vovó Pajé; aquela que cura! Porque eu preciso também ser curada, ainda mais quando a gente está ficando velha.
Agradeço, fraternalmente, à Kassia Borges Karajá por ter-me fornecido tão especial entrevista, que foi também uma revisita às suas memórias, tantas vezes partilhadas entre nós!