V.23, nº 51 - 2025 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
Em O crisântemo e a espada, Ruth Benedict afirma que “a cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo”. Fazedores de suas próprias lentes, de muitos tipos e diversas, os humanos, no seu infinito intercâmbio com a natureza e com os outros humanos, fotografam mentalmente a sua existência em movimento, atribuindo-lhe interpretação e vontade. Retratistas dos sentidos e da razão, o corpo inteiro, o nosso e os dos outros, é a nossa máquina de tirar retratos. É inescapável não fotografar. Assim somos nós, os humanos – Guaranis, Kaingangs, yorubas,
1Ensaio recebido em 25/04/2025. Aprovado pelos editores em 11/06/2025. Publicado em 06/08/2025. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i51.68701.
2 Doutora em Ciências Humanas – Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) - Brasil. Professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro - Brasil. Email: rummert@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9928452814893376. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1187-8786.
cariocas de qualquer lugar -, artesãos das imagens, operários das ideias, cativos da imaginação.
Armados de câmeras, essas engenhocas humanas de eternizar o efêmero, e de uma imagem na cabeça, os humanos, por um instante, transformam-se em senhores do tempo; poderosas e, às vezes, incômodas criaturas a perenizar nas nossas finitas retinas os prazeres, as indiferenças e as dores da nossa condição humana. Nos sussurra Sebastião Salgado, o que grita em sua fotografia, "Você não fotografa com a sua câmera e sim com toda a sua cultura".
É sobre o outro, é sobre ser o outro em mim a motivação desse ensaio. Com as imagens reunidas aqui, inspiradas na tragédia das queimadas das terras indígenas, a fotografa e professora Sonia Rummert nos presenteia com um grito de angústia do humano que teima a nos unir.
A escolha da paleta de cores, que flutua febrilmente entre os sóbrios e intensos tons e matizes do vermelho e do branco, com rupturas vigorosamente marcadas, quase sempre, pelas linhas do horizonte, e pitadas de amarelo solar aqui e acolá, anunciam, com suas cores quentes e abrasivas, a asfixiante sensação de ambiente traumatizado pelo ardor das chamas. O abuso na granulação das imagens invoca a distorção própria de cenários consumidos pelo fogo; que, associado à forma fantasmagórica da flora, intensificam os sentimentos de desolação e impotência provocados pelas queimadas. É perturbadora e tensa a junção entre as sensações de calma e estabilidade, valorizadas pelo predomínio de linhas horizontais nas imagens, o sentimento de monotonia, reação subjetiva à técnica de posicionar a linha do horizonte no centro das fotografias, e a ardente atmosfera de devastação: o inevitável futuro consumido pelas chamas; a resignação reflexiva ante o drama; uma certa e angustiante eternização do momento que precede a pergunta, “Não faremos nada”?
Apelamos quase que como ao fragmento de um poema ainda a emboscar o seu poeta, bricolagem de versos de Renato Russo e de Antônio Cícero a formar uma crível e épica estrofe, “A linha do horizonte me distrai”, “o céu reuniu-se à terra um instante [...] Pouco antes do ocidente se assombrar”, para expressar a melancolia inquietante, a angustia insurgente, o grito que se prepara na garganta que emanam de cada fotografia; a desesperança contida pelo otimismo da vontade ante à exploração extrema, à extrema opressão, ao desespero e à privação, próprios do tempo que vivemos.
Vestidos com a insegura ousadia dos anônimos, fazendo uma miúda ressalva à frase de Sebastião Salgado, “Você não fotografa com a sua câmera e sim com toda a sua [civilização]”.
Francisco Gilson Rodrigues Oliveira3 Jaqueline Pereira Ventura4
3Doutor em Educação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - Brasil. Professor da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) - Brasil e professor da Rede Municipal de Educação de Duque de Caxias.
Email: francisco.oliveira.uerj@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3783859598038158. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1125-5709.
4Doutora em Educação (UFF). Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. Email: jaquelineventura@id.uff.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8217768981005318. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9548-253X.