V.23, nº 51 - 2025 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X


Dissertação de mestrado1


BRUM, João Paulo Galhardo2. O cinema em “A peculiaridade do estético” de György Lukács. 2024. 175f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – UFJF, Juiz de Fora.

Resumo expandido


A dissertação aqui apresentada teve como objetivo discutir as categorias estéticas da arte a partir da obra A Peculiaridade Do Estético, do filósofo húngaro György Lukács, assim como analisar o caso específico do Cinema e explicitar as categorias dessa forma particular de arte. Originalmente publicada em 1963, mas tendo sua tradução para o português realizada apenas em 20233 - ainda parcialmente, visto que apenas o primeiro volume dos quatro totais foi publicado no Brasil até o momento - tal obra possui uma riqueza inestimável pois contribui no debate da filosofia da arte, traçando um panorama histórico-crítico com a tradição estética prévia, desde Aristóteles até Hegel, dentre muitos outros. Tendo como base o materialismo histórico-dialético, a partir da incontornável ruptura de Marx na filosofia, Lukács busca responder: O que é, afinal, a arte? Tendo o seguinte questionamento como ponto de partida:

como daquele terreno comum das atividades humanas, relações, exteriorizações etc. se desprenderam as formas superiores das objetivações, antes de tudo a ciência e a arte, alcançando uma autonomia relativa; como sua forma de objetivação adquiriu a peculiaridade qualitativa, cuja existência e funcionamento se tornaram fatos óbvios da vida para nós. (Lukács, 2023, p. 221).


1Resumo expandido da Dissertação recebido em 14/07/2025. Aprovado pelas editoras em 16/07/2025. Publicado em 06/08/2025. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i51.67177.

2Doutorando em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Minas Gerais - Brasil.

E-mail: jpgbrum@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0667110785423181. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora. Aprovada em 03 de outubro de 2024.

3 Utilizamos quatro versões da Estética como base de utilização das citações aqui presentes. A principal é proveniente da versão espanhola da Estética (Lukács, 1966a, 1966b, 1967a, 1967b), com tradução de Manuel Sacristán. As traduções para a língua portuguesa das citações presentes aqui foram feitas por mim, admitindo toda responsabilidade por possíveis erros. Para mitigar tais erros, no entanto, foram consultados, com a ajuda do orientador, a versão original em alemão (Lukács, 1987) e a versão em italiano (Lukács, 1970), com tradução de Anna Marietti Solmi. A quarta e última versão é a em língua portuguesa (Lukács, 2023), que abarca, por enquanto, apenas a primeira parte da Estética original (Cap. 01 a 04), com tradução de Nélio Schneider e revisão técnica de Ronaldo Vielmi Fortes.

Já que a arte existe, surge a partir de necessidades sociais e é uma das possíveis formas de reação ao mundo exterior, seu estudo e análise fornecem uma compreensão rica e fundamental sobre o próprio gênero humano.

Lukács delimita bem a forma como seu estudo é empreendido. Segundo ele, a realidade e as relações que dela derivam podem ser apreendidas idealmente, racionalmente, mas para isso é necessário nos aproximarmos de sua infinitude de forma gradual, respeitando os princípios dialéticos da própria realidade. Por isso o autor rejeita trabalhar com definições, favorecendo a utilização de determinações, já que a definição “fixa a própria parcialidade como algo definitivo e, por isso, obrigatoriamente violenta o caráter fundamental dos fenômenos.” (2023, p. 170). Nisso se justifica o emprego da determinação, já que a mesma:

(...) é considerada desde o início algo provisório, carente de complementação, algo cuja essência precisa ser complementada, formada continuamente e concretizada, isto é, quando, nesta obra, um objeto, uma relação de objetividades ou uma categoria são expostos por meio de sua determinação à luz da compreensibilidade e da conceituação, sempre temos em mente e pretendemos duas coisas: caracterizar o respectivo objeto de tal maneira que ele seja inequivocamente conhecido, sem, contudo, pretender que o ser conhecido nesse estágio se aplique à sua totalidade e que, por essa razão, se poderia parar por aí. Só é possível aproximar-se gradativamente, passo a passo, do objeto, na medida em que esse objeto é analisado em diversos contextos, em diferentes relações com diversos outros objetos, na medida em que a determinação inicial não é invalidada por esses procedimentos - nesse caso, ela estaria errada

-, mas, ao contrário, é enriquecida ininterruptamente ou, poderíamos dizer, se aproxima sempre mais da infinitude do objeto para o qual está voltada, com astúcia. (...) O progresso assim obtido não é apenas andar para a frente, penetrar de maneira cada vez mais profunda na essência dos objetos a serem apreendidos, mas - quando ocorre de modo realmente correto, de modo realmente dialético - iluminará com uma nova luz o caminho passado, o caminho já percorrido, tornando- o só então realmente viável em sentido mais profundo. (Lukács, 2023, p. 170-1).


Dessa maneira, são respeitadas as propriedades específicas presentes em cada complexo, como o estético, derivando as categorias que o compõem a partir da realidade.

A arte surge de necessidades sociais, pois, como explica o filósofo húngaro: “A exemplo do trabalho, da ciência e de todas as atividades sociais do homem4, a arte é


4 O termo Homem aqui possui sentido de “ser social”, em referência a todo representante do gênero humano, em conformidade com a tradição filosófica que utiliza o termo nesse sentido há milênios. Não

produto do desenvolvimento social, do homem que se faz homem por meio do seu trabalho.” (Lukács, 2023, p. 166). As necessidades sociais, as quais a arte busca atender, estão firmadas na vida cotidiana, dela surgem e a ela devem retornar já como resposta, enriquecidas tanto na forma quanto no conteúdo. Satisfazer as necessidades sociais, fundadas historicamente, é, portanto, o papel primário da arte. Diz Lukács: “a essência da arte não pode ser dissociada de suas funções na sociedade e só pode ser tratada em estreita conexão com sua gênese, seus pressupostos e suas condições” (2023, p. 221).

Assim como a ciência, a arte é um tipo de recepção e reprodução da vida concreta. A riqueza e a complexidade da obra de Lukács surge justamente nas comparações com os diferentes tipos de reação à realidade, já que a partir disso tem- se uma gama ampla de debates sobre diferentes aspectos da vida humana. O autor justifica tais comparações ao afirmar:

Como, porém, os homens vivem em uma realidade unitária e se inter- relacionam com ela, a essência do estético só pode ser apreendida, ainda que apenas de modo aproximado, na constante comparação com outros tipos de reação. Nesse caso, a relação com a ciência é a mais importante; contudo é imprescindível investigar também a relação com a ética e a religião. Até os problemas psicológicos que afloram aqui resultam necessariamente de questionamentos direcionados à especificidade do pôr estético. (Lukács, 2023, p. 154).


O escopo da dissertação foi, por razões óbvias, muito menor. Ressalta-se aqui apenas a riqueza e amplitude da obra de Lukács na qual a dissertação tem sua base. De forma menos óbvia, ressalta-se também o legado filosófico do materialismo, principalmente de Marx, ao nos isentarmos de qualquer justificativa ou explicação sobre a afirmação de que a realidade é unitária, tendo como ponto de partida a assumpção de que tal debate já está, no âmbito marxista, superado. Considera-se aqui, a partir do materialismo, a prioridade do ser. Ou seja: “a constatação de um fato: existe ser sem consciência, mas não existe consciência sem ser.” (Lukács, 2023, p. 161). O debate com filosofias idealistas está presente ao longo do trabalho, mas já como ponto de crítica, e não como consideração válida de análise da realidade, já que, para o materialismo dialético: “a unidade material do mundo é um fato irrefutável.” (Lukács, 2023, p. 175).


nos referimos aqui, quanto utilizamos tal termo, a diferenciações de gênero masculino/feminino - homem/mulher. Quando este for o caso, será evidenciado.

O próprio Lukács deixa claro já no prefácio de sua Estética que tal obra nada mais é que uma continuação da tradição marxista, a partir do legado de Marx: “elas não passam da aplicação mais precisa possível do marxismo aos problemas da estética.” (Lukács, 2023, p.156). O caminho apontado pelo marxismo é o que permite que o conhecimento se aproxime da realidade como ela de fato é. Portanto:

(...) o método do materialismo dialético traçou de maneira prévia e clara quais são esses caminhos e como eles devem ser trilhados para se conceituar a realidade objetiva em sua verdadeira objetividade e investigar a fundo a essência de cada campo específico de acordo com sua verdade. Só se esse método, esse norteamento de caminhos, for cumprido e sustentado com autonomia por uma pesquisa própria haverá a possibilidade de se encontrar o que se busca, de estruturar corretamente a estética marxista ou, pelo menos, de aproximar-se de sua verdadeira essência. (Lukács, 2023, p. 158).


Isso não significa que a Estética de Lukács seja um manual proletário da arte socialista, que o debate nela contido é uma ferramenta de uso na luta pela revolução. Muito pelo contrário, sem nos adiantarmos no debate a ser feito, a arte, para o filósofo húngaro, não deve ser instrumentalizada e usada para fins políticos, pois assim o que se alcança é a ruína da própria arte, sua deformação e condenação ao ocaso. Como veremos, a arte não é crítica social, mas crítica da vida. O objetivo do autor é determinar o lugar que a arte ocupa em meio às diversas atividades do homem, a partir das contribuições incontornáveis de Marx, mas levando em consideração a profusa tradição filosófica acerca da arte. Por isso, o autor deixa claro sua dívida intelectual com Aristóteles, Hegel, Goethe, Epicuro, Bacon, Hobbes, Espinosa, Vico, Diderot, Lessing e muitos outros citados ao longo da Estética. A grandeza de sua obra, dentre vários outros motivos, é admitir que: “fidelidade ao marxismo significa também o reconhecimento das grandes tradições que até hoje procuraram dar conta da realidade.” (Lukács, 2023, p.158).

A partir desses esclarecimentos teóricos, cabe a nós explicitarmos os objetivos e a estrutura da dissertação. O objetivo central foi analisar o desenvolvimento histórico do cinema como gênero artístico e seu potencial de cumprir a missão social da arte, a partir do sistema de mediações categorias de Lukács em sua Estética. Para isso, separamos a dissertação em duas partes. A primeira parte, composta pelos capítulos de 1 a 5, é dedicada às mediações categoriais do estético, seguindo a trilha de Lukács, principalmente no volume 02 de sua obra, onde categorias importantes são analisadas, como o reflexo estético, a autoconsciência do gênero, o meio homogêneo

e a catarse. Tais categorias, originárias da própria existência, apresentam no âmbito da obra de arte configurações particulares, conformando o que de verdadeiramente estético possui uma obra. O mais importante, dentre tantas coisas importantes, é demonstrar o caráter antropomorfizador do reflexo estético, e, consequentemente, o seu caráter desfetichizador. Buscamos, assim, analisar categorias fundamentais do estético, suas mediações com as obras de arte e com a realidade, evidenciando o potencial desfetichizador da arte a partir do reflexo antropomorfizador da realidade.

Já a segunda parte, composta pelos capítulos de 6 a 8, propõe uma análise do desenvolvimento histórico do cinema e de algumas de suas principais obras, a fim de acompanhar, a partir de tal gênero artístico, o surgimento e a consolidação das categorias estéticas previamente analisadas. Analisamos também o sucesso ou fracasso na conformação artística de alguns filmes e movimentos artísticos de acordo com as leis estéticas. Tal empreendimento também acompanha a trilha de Lukács, pois o mesmo planejava completar sua estética com mais dois livros, sendo um deles especificamente para a análise de obras individuais em correlação com o desenvolvimento histórico-social da época nas quais elas se inseriram. Mesmo sem cumprir o projeto5, o volume único existente já nos fornece material suficiente para uma vida inteira de estudos. Coube a nós, porém, com certa ambição e atrevimento, correndo o risco de ultrapassar os limites do que o autor propôs, realizar a tarefa de análise por conta própria. O cinema foi a escolha da vez devido à escassez de publicações sobre o tema, além do interesse pessoal do autor da dissertação. Outro fator decisivo para a escolha do tema foi a publicação recente e inédita em português6 da obra de Guido Oldrini História do Cinema na Cultura do Século XX: Um Mapeamento Crítico, publicada em 2006 pelo italiano, um dos grandes estudiosos contemporâneos da obra de Lukács. Com isso, buscamos, na segunda parte, analisar a relação de algumas das categorias do estético em obras específicas a partir do


5 Lukács abandona o projeto com o objetivo de escrever sua Ética - que por fim redundou em sua obra mais decisiva: Para uma Ontologia do Ser Social.

6 A tradução inédita para o português da obra de Oldrini, feita de forma independente, é uma importante contribuição na divulgação do pensamento deste importante intelectual italiano. Contudo, é necessário ressaltar que uma revisão técnica mais apurada seria bem-vinda, já que a publicação incorre diversas vezes em erros de tradução e de diagramação. O exemplo mais grave talvez seja a incorreta tradução de sceneggiatura como cenário, e não como roteiro, em diversos momentos do texto. Com isso, escritores acabam sendo creditados como cenógrafos de um filme, quando na verdade são roteiristas. Corrigimos esses erros nas citações contidas na dissertação. Outro ponto importante é a falta de atualização das referências bibliográficas para as versões existentes em língua portuguesa, sendo possível encontrar apenas as referências originais em italiano feitas por Oldrini. Assim, consultamos com frequência a versão original em italiano para sanar tais falhas e eventuais dúvidas.

desenvolvimento histórico do cinema. O capítulo final, de número 8, se propõe a debater a alegoria enquanto categoria do esvaziamento do sentido na arte contemporânea, suas implicações e derivações filosóficas, e seu impacto no cinema enquanto arte.

As considerações finais têm como base a luta libertadora da arte, tão defendida por Lukács, enquanto possibilidade de sobrevivência da arte em relação ao capitalismo, na qual um horizonte livre de tal modo de produção é apontado como possibilidade real de emancipação, inclusive artística.

O trabalho proposto se mostra relevante na medida em que as obras tardias de György Lukács, tanto A Peculiaridade do Estético, quanto Para uma Ontologia do Ser Social, guarda em si uma enorme complexidade e riqueza, as quais ainda não foram analisadas de forma abundante. Nossa ambição é apenas a de contribuir com o cenário de estudos lukacsianos, pois acreditamos que suas contribuições ainda são fundamentais para compreender a realidade. Se tratando de estudos específicos sobre as contribuições de Lukács ao cinema, esses são ainda mais escassos e pouco explorados, principalmente no Brasil. Mais raros ainda são os estudos que não se limitam apenas ao pequeno trecho que Lukács dedicou ao cinema, mas que o relacionam com a obra completa. Compreender e explicitar as categorias estéticas de forma geral, tendo como atenção o inteiro desenvolvimento da obra de Lukács, é fundamental para uma compreensão adequada do seu tratamento específico sobre o cinema. Guido Oldrini é um dos principais estudiosos que se dedicou de forma exemplar no estudo de tal forma artística tendo como base a obra de Lukács, justificando seu papel relevante na segunda parte da dissertação. Com o auxílio do pensador italiano, nosso trabalho se torna mais robusto e relevante ao expandir o debate das categorias estéticas do cinema para o seu desenvolvimento histórico. Importante ressaltar que todas as análises e descrições das tramas dos filmes citados na Parte 2 da dissertação são de minha autoria, assim como a relação entre os filmes e as categorias estéticas da obra de Lukács. As contribuições de Oldrini estarão devidamente sinalizadas e citadas.

Outro esclarecimento necessário é o fato de a dissertação não conter, pelas limitações diversas que são próprias ao formato da pós-graduação, autores de grande relevância no debate estético do campo marxista ou de esquerda, como Raymond Williams, Frederic Jameson, Béla Balázs, Arnold Hauser, Terry Eagleton, Antonio

Candido, Theodor Adorno, dentre outros. As limitações impuseram uma escolha, a de focar quase exclusivamente em uma única obra de um único autor, abrindo exceções para autores que, ou foram citados de forma constante por Lukács e que se mostraram fundamentais no desenvolvimento teórico aqui utilizado, como Bertolt Brecht e Walter Benjamin, ou que, como no caso de Guido Oldrini, derivam diretamente do repertório lukacsiano.


Referências


LUKÁCS, G. Estética: a peculiaridade do estético v.1. Questões preliminares e de princípio. Trad. Nélio Schneider. Boitempo Editorial, 2023.


LUKÁCS, G. Estetica I: La peculiaridad de lo estetico. v. 2. Problemas de la mímesis. Traducción de Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1966b.


LUKÁCS, G. Estetica I: La peculiaridad de lo estetico. v. 3. Categorías psicológicas y filosóficas básicas de lo estético. Traducción de Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1967a.


LUKÁCS, G. Estetica I: La peculiaridad de lo estetico. v. 4. Cuestiones liminares de lo estético. Traducción de Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1967b.

LUKÁCS, G. Estetica. Volume primo. Trad. Anna Marietti Solmi. Torino, Giulio Einaudi Editore, 1970.

LUKÁCS, G. Die Eigenart des Ästhetischen, Band I-II; Berlin und Weimar: Aufbau- Verlag, 1987.

OLDRINI, G. História do cinema na cultura do século XX: um mapeamento crítico. Trad. Bruno Bianchi. Coletivo Veredas, 2023.


OLDRINI, G. Il cinema nella cultura del novecento. Firenze, Casa Editrice Le Lettere, 2006.