V.23, nº 51 - 2025 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
A primeira versão do ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de Walter Benjamin, completa, em 2025, 90 anos. Suas quatro versões foram escritas entre os anos de 1935 e 1939, durante o auge do fascismo na Europa. Na atualidade, continuam vivas suas análises sobre as transformações da obra de arte, tendo em conta a evolução de meios técnicos de sua produção e reprodução, o que favorece a sua mercantilização e, ao mesmo tempo, e em certa medida, sua reapropriação pela classe trabalhadora, que pode lhe conceder novos significados.
O texto é um convite para a compreensão da obra de arte como parte constituinte e constituidora do processo histórico que, no século XX, nos conduziu ao fascismo. Permanecem vivas suas contribuições sobre as relações entre arte e estetização da política e, portanto, da não neutralidade das tecnologias de informação e produção de cultura, hoje massivamente veiculadas nas redes sociais, na luta por hegemonia. Os chamados memes, que aqui queremos destacar, são criações da agência humana, amplamente veiculadas pela internet, que dão materialidade à luta de classes na atualidade.
Walter Benjamin nasceu em julho de 1982 em Berlin, Alemanha. Em 1924, por influência de Asja Lacis, uma dramaturga letã bolchevique por quem se apaixonou, conheceu a nova literatura marxista e leu obras como História e Consciência de Classe, do filósofo húngaro György Lukács. Foi através de Lukács que Benjamin aproximou-se do dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht. Passou parte de sua vida
1Artigo recebido em 28/07/2025. Primeira Avaliação em 29/07/2025. Segunda Avaliação em 30/07/2025. Aprovado em 04/08/2025. Publicado em 06/08/2025.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v23i51.68764
2Mestrando em Mídias Criativas no Programa de Pós-Graduação em Mídias Criativas (PPGMC) da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Jornalista.
Email: dtiriba@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5324161155643619. ORCID: https://orcid.org/0009-0006-1239-458X.
como um emigrante em diversos países europeus, para onde ia principalmente por oferecerem um custo de vida mais em conta do que Berlim. Porém, em 1933, com a ascensão do nazismo na Alemanha e a perseguição ao povo judeu, se exilou definitivamente e passou por graves problemas financeiros. Em 1940, com a iminente ocupação da França pelos nazistas, Benjamin, que morava em Paris, precisou fugir e tinha como objetivo ir para os Estados Unidos. Ao cruzar a fronteira para a Espanha, foi impedido pela polícia local de seguir viagem. A ameaça de deportação para a França e a possibilidade de ser capturado pela Gestapo, a polícia secreta do Estado Nazista, levou Benjamin a cometer suicídio.
No ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Benjamin nos conduz a um passeio histórico sobre o desenvolvimento dos meios e técnicas de reprodução da arte, passando, por exemplo, pela xilogravura, por meio da qual as artes gráficas tornaram-se, pela primeira vez reproduzíveis, e também pela litografia, que possibilitaram a produção gráfica sistematicamente renovada, aplicada em jornais diários, até chegar à fotografia e ao cinema.
Para Benjamin, com a expansão da imprensa, muitos jornais começaram a abrir espaço para cartas dos leitores. Quem antes fazia parte de uma massa que apenas lia, passou a ter acesso ao ato de escrever e ser publicado. O trabalhador tem, a partir daí, a oportunidade de publicar uma experiência profissional, fazendo com que o leitor se torne também um escritor.
O referido ensaio, que em nossa compreensão é, em si, uma “obra de arte”, pode ser considerado um clássico, uma vez que vem se apresentando, através do tempo, como referência para o estudo de mídias e da comunicação. Pode nos indicar a necessidade de considerar os elementos materiais e simbólicos da cultura que conformam os processos históricos nos séculos XX e XXI, quando, por exemplo, a reprodutibilidade da obra de arte, digitalizada, tornou-se possível pelos simples comandos “crtl+c e crtl+v” ou por pequenos botões que nos permitem compartilhar uma imagem com milhares de pessoas ao redor do mundo. Mais do que isso, vivemos o surgimento de ferramentas de inteligência artificial (IA) que “recriam” novas obras a partir da reinterpretação de material contido em bancos de dados que armazenam grande parte da arte produzida ao longo da história da humanidade.
O autor adverte que, mesmo na reprodução mais perfeita da obra de arte, um elemento está ausente: o seu aqui e agora, sua existência única, no lugar em que ela
se encontra. É nela onde reside a historicidade, tanto de sua produção quanto de sua duração enquanto tal em diversos espaços/tempos históricos. Em outras palavras, o momento de sua criação, segundo ele, é o que confere autenticidade a uma obra.
“Na medida em que ela multiplica a reprodução, substitui a existência única da obra por uma existência serial”. Assim descreveu Benjamin o efeito das transformações das técnicas de reprodutibilidade e complementa que: “na medida em que essa técnica permite à reprodução vir ao encontro do espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido” (Benjamin, 1994, p.168-9). Em outras palavras, a obra de arte muda de significado de acordo com o contexto e para quem ela, ou sua reprodução, é exibida.
Benjamin considera a fotografia o primeiro meio de reprodução efetivamente revolucionário. A arte reagiu a isso com a doutrina da arte pela arte que, segundo ele, é uma teologia da arte, por valorizar a beleza de uma obra como algo intrínseco a ela, que rejeita sua função social. Ele entende que a reprodutibilidade técnica emancipa a obra de arte de uma existência parasitária em relação ao ritual. “A obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de arte criada para ser reproduzida” (Benjamin, 1994, p.171), como acontece exatamente com os memes de internet.
Em tempos de reprodutibilidade em ambiente digital de redes sociais, podemos inferir que um espectador atualiza o objeto reproduzido (um meme, por exemplo) por meio de sua reinterpretação (a modificação dos significados políticos desse meme) e de reprodução (compartilhamento com seus amigos, por exemplo), após recebê-lo de alguém que já fez o mesmo processo de reinterpretação e reprodução.
A transformação relatada por Benjamin foi um protótipo do que viria acontecer com o surgimento da internet enquanto mediadora das relações de comunicação entre as pessoas, onde praticamente qualquer um passou a ter a possibilidade de produzir textos e vídeos e publicá-los para todo o mundo, seja através de um blog pessoal ou de redes sociais online. Isso conferiu um verniz de democratização a um cenário que se apresenta, por outro lado, e principalmente, como uma hiper-concentração de poder em algumas poucas empresas de tecnologia, as chamadas big techs.
O mesmo pode ser observado com o avanço das ferramentas de inteligência artificial, anteriormente citadas. Como se trata de IA generativas, está ao alcance de um número muito grande de pessoas a possibilidade de criar imagens que se
É fundamental, portanto, ter em mente o fato de que as plataformas de redes sociais na internet, assim como as ferramentas de inteligência artificial, têm dono(s), e que elas foram concebidas dentro de relações sociais capitalistas e, logo, não se trata de espaços neutros de debate público. Por isso, segundo Coutinho (2020), a classe trabalhadora, em luta pela hegemonia político-cultural, deve ser capaz de se apropriar dos eficazes meios políticos-ideológicos das classes dirigentes.
O que se pretende destacar aqui é como Benjamin aponta para o valor político e social da arte. Ao descrever a evolução das técnicas de reprodutibilidade, para além de configurar como aparato possibilitador da indústria cultural, ela se configura como espaço de luta de classes. Neste espaço, ele demonstra como o fascismo se apropria destas técnicas para estetizar a vida política, ou seja, de sua transformação em puro espetáculo e de como isso é utilizado para converter uma vontade revolucionária em manifestação pelas massas de sua natureza sem efeito transformador. Ressalta que:
A crescente proletarização dos homens contemporâneos e a crescente massificação são dois lados do mesmo processo. O fascismo tenta organizar as massas proletárias recém-surgidas sem alterar as relações de produção e propriedade que tais massas tendem a abolir. Ele vê sua salvação no fato de permitir às massas a expressão de sua natureza, mas certamente não a dos seus direitos. (Benjamin, 1994, p.194)
O autor afirma, ainda, que a lógica fascista de estetização da política e de mobilização popular sem que isso gere uma revolução, ou seja, mantendo inalteradas as relações de produção do capitalismo, conduz, inevitavelmente, para a guerra. Para demonstrar como é formulada a argumentação do fascismo, ele cita Filippo Tommaso Marinetti, escritor e poeta italiano fundador do futurismo, movimento que glorificava a tecnologia, as máquinas e as invenções da Segunda Revolução Industrial. Segundo Marinetti, citado por Benjamin, “A guerra é bela, porque inaugura a metalização onírica do corpo humano” (1994, p. 195).
3 Brasil de Fato. “‘IAs não geram arte’: trend de IA que recria estilo Ghibli evidencia apropriação de obras e perda de espaço para artistas”. Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2025/04/04/ias- nao-geram-arte-trend-de-ia-que-recria-estilo-ghibli-evidencia-apropriacao-de-obras-e-perda-de- espaco-para-artistas/. Acesso em 30 de julho de 2025.
O movimento de estetização da política parece nunca ter cessado, apesar de, adormecido em alguns momentos, a ponto de não parecer ser digno de preocupação. No Brasil, especificamente, desde slogans como “Ame-o ou deixe-o” ou jingles com “70 milhões em ação para frente Brasil”, utilizados como propaganda da ditadura, até a ascensão fascista do bolsonarismo. Cabe aqui o argumento de Benjamin de que a autoalienação permite viver a própria destruição com um prazer estético de primeira ordem. Ele conclui: “Eis a estetização da política, como a prática do fascismo. O comunismo responde com a politização da arte” (1994, p. 196).
A politização da arte, conforme propõe Benjamin, é uma maneira de contrapor a estetização da política e, assim, seja através do cinema, da fotografia ou até mesmo de memes da internet, constituir uma forma de disputar esse espaço e fazer frente ao fascismo. No último caso, chamam a atenção conteúdos produzidos como forma de estimular a consciência de classe entre trabalhadores. Por exemplo, em postagem feita no contexto dos apagões de energia elétrica no Estado de São Paulo em outubro de 2024 (Figura 1), o perfil de Instagram Memeria Gourmet faz uso de um famoso quadrinho da Turma da Mônica, alterando o diálogo entre os personagens Mônica e Cascão, para uma crítica ao argumento de que a solução para serviços públicos é a privatização. A mesma imagem tem sido utilizada para criação de memes inúmeras vezes, com diversas finalidades diferentes, o que demonstra que, como apontou Bakhtin (2006), o signo é uma arena onde se desenvolve a luta de classes.
Outro exemplo é a reinterpretação da ilustração de capa da revista em quadrinhos World’s Finest Comics nº 54, de outubro de 1951, postada pelo perfil de
4 Disponível em https://www.instagram.com/p/DJZb_jNu58O/. Acesso em 25 de julho de 2025.
Instagram Centralismo Democrático é Top, que mostra os personagens Batman, Super-homem e Robin em uma espécie de bicicleta tripla. Apenas Robin está pedalando, enquanto os outros dois cruzam as pernas e aproveitam a viagem (Figura 2). No meme, Robin aparece identificado como a classe trabalhadora, enquanto Super-homem e Batman são identificados, respectivamente, como dono da empresa e filho do dono da empresa que já nasce “gerente”. A bicicleta que tripulam é identificada como a empresa.
Coutinho (2020, p.31), em sintonia com o pensamento de Gramsci, aponta para a principal tarefa do intelectual coletivo com sendo a de articular o sentimento de revolta à consciência revolucionária, canalizando os afetos para um processo consciente de transformação da realidade. O meme em questão parece buscar exatamente isso, ou seja, dar contorno de consciência de classe ao elemento popular, que “sente”, mas não compreende nem sabe (Gramsci, 2024, p48). Tal processo comunicacional tem potencial, portanto, de convocar o trabalhador a refletir sobre como sua força de trabalho pode estar sendo explorada por grupos que nem sempre trabalham e que se utilizam da falácia de que ele precisa se “esforçar mais” para chegar à posição confortável que eles ocupam. Perfis de redes sociais começam a
5 Disponível em: https://www.instagram.com/p/DETg8nAPFUp/?igsh=MXF4anliODN1bGR3Zw%3D%3D. Acesso em 25 de julho de 2025.
utilizar ferramentas de inteligência artificial, uma materialização da apropriação, por parte da classe trabalhadora, dos meios utilizados pela classe dominante.
O clássico texto de Walter Benjamin segue atual, uma vez que a era da reprodutibilidade técnica da obra de arte parece ter chegado ao seu ápice. Sua reprodução, nesta edição da Revista Trabalho Necessário - TN 52 - 2025 (maio-ago), é um convite para leitura e, principalmente, para reflexão sobre este momento histórico em que a ‘politização da arte’ se faz a cada dia mais necessária para enfrentar a ‘estetização da política’, hoje, fortemente promovida por setores de direita e extrema-direita que detém o monopólio dos meios de comunicação de massa. Mediada pelas big techs, uma nova versão do fascismo bate à nossa porta.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política : ensaios sobre literatura e história da cultura. Brasiliense, 1994.
COUTINHO, Eduardo Granja. A paixão segundo Antonio Gramsci. Rio de Janeiro: Mórula, 2020.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere [livro eletrônico]: caderno 3 (XX): 1930: miscelânea. Tradução de Ivete Simionatto, Maria del Carmen Cortizo, Giovanni Semeraro. Rio de Janeiro: IGS-Brasil, 2024. Disponível em: https://storage.googleapis.com/production-hostgator-brasil-v1-0- 9/739/971739/23GwhSwA/bc1a350b6aed4d499f9caca220b74a0d?fileName=Cadern o%203.pdf. Acesso em 12 de março de 2025.