V.23, nº 51 - 2025 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X


EDITORIAL TN 51


O TRABALHO NECESSÁRIO DA ARTE: PELO FIM DA JORNADA 6X11


Em Eros e Civilização, Herbert Marcuse (1968) afirma que, no capitalismo, o tempo livre torna-se o tempo necessário para repor as energias físicas e emocionais do trabalhador, cuja força de trabalho foi usurpada pelos homens-de-negócio. A redução do tempo de trabalho também foi preocupação de Paul Lafargue, genro de Marx, que escreveu O direito à preguiça, no qual dizia: “Trabalhem proletários, trabalhem para aumentar a fortuna social e as vossas misérias individuais, trabalhem, para que, ficando mais pobres, tenham mais razões para trabalhar e ser miseráveis (Lafargue, 1977, p. 25). No capitalismo, o “trabalho está na origem de toda uma degenerescência intelectual e de toda deformação orgânica”. É um mal, uma “estranha loucura” que atormenta a humanidade. (Lafargue, 1977, p. 11-15).

Desde a primeira revolução industrial, o desenvolvimento de tecnologias de produção e de gestão da força de trabalho repercutiu em uma nova notação do tempo: “O tempo é agora moeda: ninguém passa o tempo, e sim o gasta”. (Thompson, 1998, p. 272). Em tempos de ultraliberalismo, a compressão espaço/tempo (Harvey, 1992) é condição sine qua non para garantir a reprodução ampliada do capital, o que requer maior intensidade do trabalho.

Homens e mulheres não fazem história a seu bel prazer. Assim, no capitalismo, entendido por Marx como “sociedade produtora de mercadorias", os proprietários dos meios de produção da vida (ou, melhor, da morte), insistem em submeter a fogo e ferro a força de trabalho e as demais forças da natureza aos interesses do grande capital. O resultado é o aumento do adoecimento de homens e mulheres trabalhadoras, bem como o adoecimento do próprio Planeta Terra. A crise climática é a expressão maior da crise de um projeto civilizatório que tem por base a produção


1Editorial recebido em 04/08/2025. Aprovado pelos editores em 05/08/2025. Publicado em 06/08/2025. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.68780

destrutiva do capital. E, enquanto isso, o Congresso Nacional aplaude o PL da Devastação (Projeto de Lei 2159/21) e, alguns deputados e senadores, se alinham a Donald Trump, protetor dos golpistas, que impõe a super taxação de 50% sobre os produtos brasileiros.

No contexto da luta de classes, ganham expressão as palavras de ordem sem anistia para os golpistas, taxação dos super ricos e isenção do imposto de renda para quem ganha até 5 mil reais. Também ganha simpatia e aderência à luta pelo o fim escala 6X1. Ao contrário da perspectiva de “trabalhar menos para que todos trabalhem (e/ou para que todos possam ser explorados)”, o objetivo do movimento Vida Além do Trabalho (VAT) é assegurar tempo livre para cuidar da saúde, estudar, ir ao cinema, levar as crianças ao parque, participar de alguma manifestação de rua, acordar mais tarde, ou mesmo, para não fazer nada.

O plebiscito popular está sendo organizado por movimentos sociais, sindicatos, igrejas e organizações populares, que espalham urnas de votação em todos os cantos do país. Afinal, como dizem os Titãs, “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”, o que se torna impossível em apenas 24 horas de intervalo entre uma jornada semanal e outra. E é exatamente sobre arte que a Trabalho Necessário que se dedicar.

Em um contexto de tarifaço imperialista de Donald Trump, como chantagem da extrema-direita, que demonstra a inexistência de qualquer projeto nacionalista, com ataque direto à soberania nacional brasileira, a prisão de Bolsonaro aparece como força importante na defesa da democracia, diante dos crimes praticados pelo ex-presidente, em um momento em que o Congresso Nacional é o mais reacionário e conservador desde a redemocratização do país. Diante da barbárie, a história tem nos ensinado que a arte tem sido resistência, o grito dos excluídos, o sopro de vida em um tempo de genocídio televisionado do povo palestino e dos povos indigenas no Brasil.

Para Marx, a arte e a educação estão inseridas na estrutura social e histórica e refletem as contradições do seu tempo, podendo atuar na formação de um ser humano pleno em uma sociedade emancipada “Não se trata apenas de interpretar o mundo, mas de transformá-lo.” Nesse sentido, destacamos alguns nomes de artistas que por meio da arte exerceram importante papel na formação de sujeitos críticos e capazes de lutar pelo enfrentamento e superação das desigualdades.

Artistas como Bertolt Brecht e Vladimir Maiakovski, por exemplo, usaram suas obras para mobilizar o pensamento crítico e denunciar as injustiças do capitalismo. No caso de artistas brasileiros, o legado de Elza Soares para a arte e a cultura brasileira é profundo, múltiplo e atravessa décadas de resistência. Elza não foi apenas uma das maiores cantoras do Brasil, ela foi uma voz potente contra o racismo, o machismo e a desigualdade social, incorporando em sua arte uma postura de enfrentamento e transformação. O legado de Gonzaguinha para a arte e a cultura brasileira também é imenso e profundamente marcado pela consciência social, engajamento político, e sensibilidade poética. Filho de Luiz Gonzaga, o "Rei do Baião", Gonzaguinha trilhou seu próprio caminho, tornando-se um dos mais importantes compositores e intérpretes da música popular brasileira (MPB), especialmente nas décadas de 1970 e 1980. Cacá Diegues (Carlos Diegues), que nos deixou mais recentemente (2025), foi um dos mais importantes cineastas do Brasil, com um legado marcante tanto no cinema nacional quanto na cultura brasileira como um todo. Seu trabalho combina engajamento político, experimentação estética e um forte compromisso com a identidade brasileira. Foi um dos fundadores do movimento Cinema Novo nos anos 1960, ao lado de nomes como Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos.

Este movimento buscava romper com o cinema comercial tradicional e retratar a realidade social e política do Brasil com profundidade crítica. Filmes como "Ganga Zumba" (1963) e "A Grande Cidade" (1966) exemplificam. Em boa parte de sua obra, Diegues retratou personagens da classe trabalhadora e da cultura afro-brasileira. "Xica da Silva" (1976), protagonizada por Zezé Motta, é um marco por abordar a escravização e o papel da mulher negra com ousadia e irreverência. Diegues sempre buscou unir elementos da cultura de massa brasileira (como o carnaval, o futebol, a música popular), com narrativas sofisticadas e esteticamente refinadas. "Bye Bye Brasil" (1980) é um exemplo clássico dessa fusão, explorando o impacto da modernidade em comunidades tradicionais do Brasil. Preta Gil, vítima fatal de um câncer em meados de 2025, filha de Gilberto Gil, um grande ícone da música popular brasileira, deixou um legado muito além da sua atuação como cantora. Ela se destaca como uma figura de resistência, representatividade e inovação no cenário artístico e cultural do país, sendo uma representante da comunidade LGBTQIA+, tanto na arte quanto na militância. Seu bloco de carnaval, o “Bloco da Preta”, se tornou um espaço inclusivo e festivo, celebrando o amor, a liberdade e o respeito às diferenças. Estes

são alguns artistas que, num amplo universo, continuam atuando através da sua arte para ampliar a consciência crítica sobre a realidade concreta, pois, de acordo com Saramago, mesmo aqueles que não estão mais entre nós continuam nos educando com seus legados "a morte não é a ausência da vida, é a ausência da luta” (2005).

Sebastião Salgado deixou um grande legado na fotografia de denúncia, capaz de auxiliar na mobilização da classe trabalhadora, à exemplo da sua contribuição com a construção da Escola Nacional Florestan Fernandes do MST, ao repassar direitos autorais de suas fotografias para a Escola. Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo são representantes de uma literatra antirracista anticolonial, que também devem ser lembradas, ao retratarem as mazelas do racismo e da pobreza, mas também a criatividade dos personagens do cotidiano frente ás opressões. Ana Maria Gonçalves, autora consagrada com a obra “Um Defeito de Cor” tem despertado interesse pela literatura afro-brasileira e pela contribuição cultural de intelectuais negros.

É reconhecendo a importância da contribuição dos artistas acima citados, dentre tantos outros, e reconhecendo a importância da arte que apresentamos a TN 51 (Set-Dez) – MARXISMO, ARTE E EDUCAÇÃO. O número foi organizado por Maria Amélia Dalvi, do Grupo de Pesquisa Literatura e Educação (LitEdu / UFES), e por Maria Cristina da Rosa Fonseca da Silva, do Grupo de Pesquisa em Arte e Formação nos processos políticos contemporâneos (UDESC). Conforme a ementa:

A arte, por meio da experiência estética e concreta, assim como propõem as pedagogias socialistas que têm circulado na América Latina, nos últimos dois séculos, deve compor a formação humana que vise à omnilateralidade. N'O capital, de Karl Marx, há diversas menções a obras literárias e personagens ficcionais, evidenciando a dimensão expressiva da atividade teórico-formativa de nossa classe. Nas licenciaturas em educação do campo ou nas licenciaturas interculturais indígenas que vêm sendo implantadas em todo o Brasil, como resultado de lutas populares, o papel da arte tem sido central para a integração curricular e a elaboração multidimensional da crítica, a despeito de inúmeras contradições. Vladimir Ulianov (Lenin), em carta a Clara Zetkin, disse que “A arte pertence ao povo. Ela deve lançar suas raízes mais profundas nas grandes massas trabalhadoras. Deve ser compreendida por essas massas e apreciada por elas”. Convidamos pesquisadores afinados à teoria crítica e às diferentes correntes do pensamento marxista a apresentar suas reflexões sobre as relações entre marxismo, arte e educação, e suas manifestações em diversos espaços/tempos históricos: literatura, teatro, cinema, música, fotografia, dança, pintura, grafite, entre outras.”.

Para compor o número temático, recebemos uma grande quantidade de textos que versavam sobre literatura, cinema, teatro, fotografia, circo, música, e formação de professores/as de arte. Na perspectiva do materialismo histórico estão presentes estudos sobre estética e arte em Marx, Engels, Lukács, Benjamin, Boal. A cultura popular está presente, entre outros, na seção “homenagem”, dedicada a Jackson do Pandeiro. O número de submissões atesta a importância da arte na formação humana, o que requer concebê-la como trabalho-criação, mas que no capitalismo torna-se mercadoria. Daí a importância de defender o direito de todos/as à formação humana integral, ou seja, na sua omnilateralidade, o que requer a constituição de uma sociedade dos produtores livremente associados, onde coincidam trabalho e arte, reino da necessidade e reino da liberdade. Afinal, perguntava Marx, o que é a riqueza senão o desenvolvimento pleno de todas as faculdades humanas?

A quantidade de artigos submetidos também atesta que não são poucos os pesquisadores e pesquisadoras que, fundamentando-se no materialismo histórico, elegem a arte como objeto de investigação. Frente a isto, por uma questão editorial, optamos por organizá-los em Parte 1 (TN 51, maio-ago) e Parte 2 (TN 52, set-dez),

Queremos agradecer às organizadoras, e, também, à Olinda Evangelista, que, além de bordadeira de mão cheia, é professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), por presentear a Revista Trabalho Necessário com a lindíssima capa da TN 51 - Marxismo, arte e educação. Os detalhes do bordado de Olinda revelam muitas coisas, entre elas, a presença de pessoas com um livro na mão, ávidas de ler o mundo. Como disse recentemente, um agricultor familiar da região de Nova Friburgo (Rio de Janeiro), “o livro é bom porque assim a gente não esquece dos ensinamentos dos antigos”.

Boa leitura!


Adriana Barbosa, Lia Tiriba e Jacqueline Botelho

(Editoras da Revista Trabalho Necessário)

Referências

HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992. LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. Lisboa: Editorial Teorema, 1977.

MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.

THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.