Retorno ao futuro: utopias, retrotopias e heterotopias nos projetos de regeneração do bairro de Marvila

Resumen

Marvila é um bairro pós-industrial da cidade de Lisboa, geograficamente muito central, mas socialmente percebido como muito distante devido a uma longa história de pobreza, discriminação e estigmatização da população residente. Na última década, Marvila tem passado por um processo de regeneração urbana em larga escala que viu projetos de habitação de luxo, a abertura de restaurantes, galerias de arte e clubes, bem como indústrias “inteligentes” e “criativas” transformando os edifícios industriais abandonados. A relevância deste estudo reside na análise crítica dessas transformações, que frequentemente agravam desigualdades preexistentes. O objetivo deste artigo, baseado em pesquisa antropológica realizada no bairro de Marvila (Lisboa, Portugal) como parte do projeto H2020 ROCK, é apresentar as áreas de intervenção do projeto, com os seus imaginários distópicos, utópicos e retrotópicos. Metodologicamente, a investigação combinou observação participante, entrevistas, grupos focais e análise documental, permitindo o cruzamento entre dados empíricos e análise teórica. Ao revelar os diferentes tipos de utopia que orientam a imaginação de futuros que não foram, mas poderiam ter sido, e ao criticar as perspectivas políticas dominantes sobre o lugar, este artigo apresenta as preocupações sociais vivenciadas pelas pessoas em seu cotidiano, causadas por mudanças demográficas, econômicas e urbanas. Em particular, examina-se como o passado é mobilizado — ora como memória traumática a ser apagada, ora como retrotopia idealizada — e como certos projetos urbanísticos funcionam como mecanismos de esquecimento ou reconfiguração da história local.  Esses processos oferecem uma perspectiva privilegiada para imaginar futuros alternativos em que ‘já estivemos no ainda não’, além de possibilidades aparentes, e para provocar caminhos alternativos que possam valer a pena seguir. Conclui-se que os processos de regeneração urbana em Marvila operam como instrumentos de reconfiguração social e de apagamento seletivo do passado, exigindo um olhar etnográfico atento às tensões entre memória, desejo e exclusão.